Montserrat Martins*
Eles parecem grandes porque
estamos abaixados.
Proudhon
Assista “fique rico ou morra tentando”, filme baseado na história do rapper Fifty Cent (50 Cent), para sentir como é “por dentro” a vida dos jovens que passam pela FASE. Na língua deles, “não aceitar” quer dizer algo como “não levar desaforo pra casa”, brigar por sua honra, e o que eles geralmente fazem é “não aceitar pros outros”, resultando em tantas brigas e tiroteios entre as próprias gangues. Pelo mesmo princípio, quando saem da FASE até “dão um tempo” com a família, com o passar do tempo voltam a “não aceitar” e se envolvem novamente com as gangues.
Não lembro de ver adolescentes de classe média na FASE, quase que invariavelmente são moradores de periferia onde o “governo” territorial é dominado pelo tráfico e o próprio Estado tem receio de entrar. Conheço suas vidas porque é meu trabalho, enquanto psiquiatra da infância e da juventude, avaliando e acompanhando o atendimento que recebem nas instituições. A eles se aplica o diagnóstico do terapeuta de famílias Nathan Ackermann: “O pior não é que as pessoas se acomodem à ideologia dominante, o pior é que elas não tenham motivo para se adaptar”. Falando direto: tenha medo dos que não tem mais nada a perder. É quando eles passam a “não aceitar”.
Na primavera árabe, milhares perderam suas vidas porque não estavam mais dispostos a levar a vida que lhes era destinada, por aquelas ditaduras. E nós, que não vivemos uma ditadura política, não temos por acaso nossas próprias formas de ditadura do poder econômico e cultural ? “Fique rico ou morra tentando” nem mesmo é uma ideologia criada por rebeldes, é apenas o desespero em ser valorizado dentro do próprio sistema no qual vivemos. Repetimos diariamente e das mais diversas formas a ideologia dos vitoriosos – “winners”, contra os perdedores – “losers”, copiada do “american way of live”, o que não consideramos como violência econômica, cultural, psicossocial. Violentos são apenas eles, os que nos roubam e ameaçam nossas vidas com armas, que mandamos para a FASE. Eles, que nos aterrorizam e nos humilham sob a mira de armas, não são humilhados pelo dia a dia sob nossa ideologia ? Mal comparando, como Proudhon ou os jovens árabes, eles também não querem mais “se abaixar”.
“O pior não é que as pessoas
se acomodem à ideologia dominante,
o pior é que elas
se acomodem à ideologia dominante,
o pior é que elas
não tenham motivo para se adaptar”.
Falando direto: tenha medo dos que
não tem mais nada a perder. É quando eles
passam a “não aceitar”.
Os altos índices de reincidência no crime não podem ser vistos no contexto estrito da FASE, tem de ser estudados no contexto mais amplo da sociedade. “Somos todos responsáveis” não pode ser apenas uma frase bonita, tem de ser um guia ético para nossa análise e interação com as realidades sociais específicas. Compreender e praticar isso é mais que uma escolha, é uma obrigação moral. Assim como a lei estabelece diferentes graus de responsabilidade (os incapazes, por exemplo um esquizofrênico, não são legalmente responsáveis), também dita a moral que a responsabilidade de cada um é proporcional à sua capacidade. Se temos capacidade de compreender que o problema é social – e não apenas institucional da FASE – nossa obrigação é participar das soluções, mais que apontar problemas.
Sim, a FASE deve mudar para dar melhor resposta ao problema da reincidência, mas não basta investigar as insuficiências da instituição na qual “depositamos” um grave problema social. A violência não se resolve por melhores prédios para a instituição – por mais que esses sejam necessários – porque não será esta forma de tutela um instrumento suficiente para dar novos rumos a suas vidas. Vidas que na realidade não se definem ali, mas na casa deles, na vila deles, onde eles realmente vivem.
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* Montserrat Martins, colunista do Portal EcoDebate, é Psiquiatra
Fonte: EcoDebate, 03/02/2012
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