Antonio Delfim Netto*
É cada vez mais claro que os EUA não souberam lidar com os descalabros produzidos pelo seu setor financeiro com estímulos explícitos do governo e sob os olhos complacentes do Fed. Pior, agiram com inacreditável miopia na solução do Lehman Brothers.
Por outro lado, a "corrida" bancária iluminou o que estava escondido na Comunidade Econômica Europeia: os truques fiscais (feitos também com a conivência do setor financeiro e das agências de risco) para ilidir os compromissos assumidos pelos países-membros no acordo de Maastricht. Ninguém, nem o G-20, o Tesouro Americano, os governos da CEE, o Fed, o BCE e o FMI, e nem os mais sofisticados analistas econômicos que "surfaram" a grande onda da aparente "moderação" do ciclo econômico, entendeu o que estava se passando...
Talvez a prova mais irrecusável dessa absoluta inconsistência sobre o que estava ocorrendo no mundo, e o que se pensava dele, seja a frase pronunciada pelo Chanceller of the Exchequer britânico, Gordon Brown, ao apresentar o projeto de orçamento na Câmara dos Comuns, em 2007. Disse ele: "Estamos vivendo uma era de desenvolvimento econômico continuado e jamais retornaremos às velhas flutuações de expansão e retração do passado". Pois bem. Antes de terminar 2007, elas estavam de volta, fortes como raramente haviam sido.
Os bancos continuam a desconfiar
uns dos outros...
e com razão!
Surpreendidos, todos agiram, mas a falta de coordenação desperdiçou os enormes esforços para debelá-la: o G-20 é apenas um parlatório sem consequência; a disfuncionalidade da política dos EUA tornou seu Congresso um produtor de volatilidade, incapaz de dar confiança a produtores e consumidores; o Fed e o BEC, lidando com taxas de juros reais negativas, continuam tão perdidos como o cachorro que caiu do caminhão de mudança, e o FMI, com "cara de paisagem", assiste a tudo, produzindo "papers" que ninguém leva a sério...
O resultado final desse lamentável processo é que as custosas medidas não conseguiram cooptar a confiança dos agentes que movem o "circuito econômico" e, portanto, não conseguiram regularizá-lo: os consumidores, com medo do desemprego, aceleram a redução das suas dívidas; as empresas (com quase US$ 2 bilhões em caixa) preferem comprar papéis da dívida do governo a investir, porque não têm garantia que existirá demanda e, quando investem, o fazem em tecnologias poupadoras de mão de obra. Os bancos (com reservas gigantescas) continuam a desconfiar uns dos outros... e com razão!
O que ameaça a economia é a possibilidade de que a morna resposta do sistema econômico às políticas econômicas descoordenadas e sem eficiência (porque sem credibilidade!), acabará reduzindo o crescimento durante muitos anos, impedindo a solução do problema fiscal criado por elas mesmas. Hoje, o remédio tecnocrático (despesas públicas e juro real negativo) esgotou sua potencialidade. Os balanços do Fed e do BCE estão em limites preocupantes e os Tesouros dos EUA e dos países da CEE estão tão endividados que não se pode esperar deles muita coisa.
Essa visão pessimista da situação da economia mundial estimula alguns ingênuos, persistentes e generosos otimistas a acreditarem (pela décima vez, nos últimos 170 anos) que chegamos, enfim, ao fim do capitalismo e vamos entrar na era do solidarismo, onde o lucro será anátema e os mercados serão sociais.
A história mostra que talvez seja um pouco prematuro declarar tal morte. Capitalismo é o codinome da "economia de mercado", que foi lentamente construída ao longo da história, por uma seleção quase biológica na procura, pelo homem, de uma organização social que lhe desse, ao mesmo tempo, liberdade individual e eficiência produtiva. Ele nunca é o mesmo e modernamente tem evoluído num jogo dialético entre a escolha democrática nas urnas (onde cada cidadão tem um voto) e o mercado (onde cada um tem tantos votos quanto seja seu patrimônio).
Quando a urna erra, impondo restrições ao mercado que não cabem na contabilidade nacional, o sofrimento do eleitor leva-o a corrigir o poder incumbente; quando o mercado erra e impõe mais sofrimento do que benefícios, o eleitor é levado a corrigi-lo nas urnas.
É a urna, no fundo, que garante o aperfeiçoamento contínuo do processo de busca simultânea da liberdade de iniciativa individual e da eficiência produtiva. É a urna que vai restabelecer a "credibilidade" perdida que impediu o funcionamento da solução tecnocrática. A boa notícia é que, nos próximos 12 meses, teremos eleições livres em 24 países! O capitalismo não vai acabar. Vai dar mais um passo na mesma direção do lento processo civilizatório, como tem feito nos últimos 170 anos...
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* Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras
Fonte: Valor Econômico on line, 23/08/2011
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