Rubem Alves*
Chegou-me pela internet. Deliciosa crônica do blogueiro uruguaio Marciano Durán (que vem sendo atribuída ao jornalista e escritor Eduardo Galeano, seu conterrâneo). No lugar da minha vai a dele, verdadeira, leve, divertida.
Os jovens não vão acreditar. Os velhos, como eu, vão concordar gravemente... Ele me perdoará por não ter pedido licença. Eu não conseguiria escrever melhor...
"O que acontece comigo é que não consigo andar pelo mundo pegando coisas e trocando-as pelo modelo seguinte só por que alguém adicionou uma nova função ou a diminuiu um pouco...
Não faz muito, com minha mulher, lavávamos as fraldas dos filhos, pendurávamos na corda junto com outras roupinhas, passávamos, dobrávamos e as preparávamos para que voltassem a serem sujadas.
E eles, nossos nenês, apenas cresceram, tiveram seus próprios filhos e se encarregaram de atirar tudo fora, incluindo as fraldas. Se entregaram, inescrupulosamente, às descartáveis!
Sim, já sei. À nossa geração sempre foi difícil jogar fora. Nem os defeituosos conseguíamos descartar! E, assim, andamos pelas ruas, guardando o muco no lenço de tecido, de bolso.
Nããão! Eu não digo que isso era melhor. O que digo é que, em algum momento, me distraí, caí do mundo e, agora, não sei por onde se volta.
O mais provável é que o de agora esteja bem, isto não discuto. O que acontece é que não consigo trocar os instrumentos musicais uma vez por ano, o celular a cada três meses ou o monitor do computador por todas as novidades.
Guardo os copos descartáveis! Lavo as luvas de látex que eram para usar uma só vez.
(...) E acontece que em nosso, nem tão longo matrimônio, tivemos mais cozinhas do que as que haviam em todo o bairro em minha infância, e trocamos de refrigeração três vezes.
Fazem de propósito! Tudo se lasca, se gasta, se oxida, se quebra ou se consome em pouco tempo para que possamos trocar. Nada se arruma. O obsoleto é da fábrica.
Aonde estão os sapateiros fazendo meias-solas dos tênis Nike? Tudo se joga fora, tudo se descarta e, entretanto, produzimos mais e mais e mais lixo.
"Mas, como sou lento para transitar
este mundo da reposição e corro o risco
de que a bruxa me ganhe a mão e
seja eu o entregue..."
Quem tem menos de 30 anos não vai acreditar: quando eu era pequeno, pela minha casa não passava o caminhão que recolhe o lixo! Todos os descartáveis eram orgânicos e iam parar no galinheiro, aos patos ou aos coelhos. Não existia o plástico, nem o náilon. Os poucos descartáveis que não eram comidos pelos animais, serviam de adubo ou se queimava...
Troca-se de carro a cada 3 anos, no máximo, por que, caso contrário, és um pobretão. Ainda que o carro que tenhas esteja em bom estado... E precisamos viver endividados, eternamente, para pagar o novo!!! Agora, meus parentes e os filhos de meus amigos não só trocam de celular uma vez por semana, como, além disso, trocam o número, o endereço eletrônico e, até, o endereço real.
E a mim que me preparam para viver com o mesmo número, a mesma mulher e o mesmo nome ( e vá que era um nome para trocar)... Me educaram para guardar tudo. Tuuuudo! O que servia e o que não servia. Por que, algum dia, as coisas poderiam voltar a servir.
(...)
Tuuudo guardávamos! Enquanto o mundo espremia o cérebro para inventar acendedores descartáveis ao término de seu tempo, inventávamos a recarga para acendedores descartáveis. E as Gillette até partidas ao meio se transformavam em apontadores por todo o tempo escolar. E nossas gavetas guardavam as chavezinhas das latas de sardinhas ou de corned-beef, na possibilidade de que alguma lata viesse sem sua chave. As coisas não eram descartáveis. Eram guardáveis.
(...) Às vezes sabíamos alguma notícia lendo o jornal tirado de um pedaço de carne!!! E guardávamos o papel de alumínio dos chocolates e dos cigarros para fazer guias de enfeites de natal, e as páginas dos almanaques para fazer quadros, e os conta-gotas dos remédios para algum medicamento que não o trouxesse...
Nos custava muito declarar a morte de nossos objetos. Assim como hoje as novas gerações decidem matá-los tão-logo aparentem deixar de ser úteis, aqueles tempos eram de não se declarar nada morto...!!!
Morro por dizer que hoje não só os eletrodomésticos são descartáveis; também o matrimônio e até a amizade são descartáveis. Mas não cometerei a imprudência de comparar objetos com pessoas.
Me mordo para não falar da identidade que se vai perdendo, da memória coletiva que se vai descartando, do passado efêmero. Não vou fazer.
Não vou misturar os temas, não vou dizer que ao eterno tornaram caduco e ao caduco fizeram eterno.
Não vou dizer que aos velhos se declara a morte apenas começam a falhar em suas funções, que aos cônjuges se trocam por modelos novos, que as pessoas a que lhes falta alguma função se discrimina o que se valoriza aos mais bonitos, com brilhos, com brilhantina no cabelo e glamour.
Está só é uma crônica que fala de fraldas e de celulares. Do contrário, se misturariam as coisas, teria que pensar seriamente em entregar à bruxa, como parte do pagamento de uma senhora com menos quilômetros e alguma função nova. Mas, como sou lento para transitar este mundo da reposição e corro o risco de que a bruxa me ganhe a mão e seja eu o entregue..."
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* Escritor. Teólogo e educador.
Fonte: Correio Popular on line, 28/08/2011
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