A constatação da vulnerabilidade do mundo, da natureza e da vida humana compõe o grande legado de Hans Jonas, aponta o filósofo Lourenço Zancanaro na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Frente a essa fragilidade, “a única saída é o cuidado, a responsabilidade. Ao cuidarmos das gerações presentes, também estaremos cuidando das futuras”. Assim como Kant, Jonas também aposta na autonomia como norte para o agir:
“Somos autônomos para buscar o melhor e este deve ser sempre mais desejável que o pior. A autonomia é tomar posse da realidade como algo que precisa ser cuidado diante do excesso de poderes que a ciência nos dá. Somos chamados a deliberar sobre os novos podes que a tecnologia nos fornece”. Zancanaro esclarece que Jonas não se contrapõe à tecnologia ou à ética: “Uma boa ética pode fazer uma boa ciência e isto está no âmbito da deliberação em relação ao nosso poder”. A ética jonasiana é baseada nos limites, no cuidado, renúncia, previsão, prevenção e antecipação dos riscos “ante a possibilidade dos efeitos tecnológicos conduzirem o planeta a consequências imprevisíveis”.
Lourenço Zancanaro é graduado pelas Faculdades Associadas do Ipiranga, especialista em Estudos Brasileiros pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, especialista em Filosofia Brasileira pela Universidade Estadual de Londrina – UEL e mestre em Filosofia Social pela Pontifícia Univrersidade Católica de Campinas – PUC-Campinas. Cursou doutorado em Educação na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, com a tese O conceito de responsabilidade em Hans Jonas. Autor de Bioética – estudos e reflexões 3 (Londrina: CEFIL, 2002), leciona na UEL.
IHU On-Line – Como analisa a importância do legado filosófico de Hans Jonas?
Lourenço Zancanaro – Hans Jonas é um filósofo que pensa a ética a partir das exigências do nosso tempo. Não critica a ética tradicional, apenas mostra que esta não deixou, nem poderia ter deixado, regras para as modalidades inteiramente novas do poder tecnológico, já que sempre analisou a ação humana voltada para o “agir próximo”. Sua preocupação se limitava à discussão da “qualidade do ato moral momentâneo” e não da previsão ou do tempo das gerações futuras agora ameaçadas pelo progresso técnico.
É uma reflexão sobre a ética dos limites, do cuidado, da renúncia, da previsão, da prevenção, da antecipação dos riscos, ante a possibilidade dos efeitos tecnológicos conduzirem o planeta a consequências imprevisíveis. A obra “The imperative of responsibility” – In search of an ethics for the technological age é básica para a compreensão do tema da responsabilidade.
Influências e “fenômeno da vida”
Sua trajetória filosófica recebe influência heideggeriana, além do liame entre os estudos históricos, especialmente a gnose, em seguida a filosofia da biologia e, finalmente, a ética de responsabilidade. O objeto de análise será a magnitude das consequências dos processos tecnológicos potencializados que afetam o agir.
Parte da constatação de que “se a natureza do agir mudou, também deverá haver mudanças na ética”. Portanto, o empreendimento objetiva a investigação do conceito de responsabilidade, seu significado para as tarefas atuais da humanidade, cada vez mais influenciadas pelas transformações tecnológicas que criam dioturnamente novos “espaços de ação”. Chama a atenção para os exageros do poder ilimitado da moderna tecnologia, defende a existência de uma eticidade para o mundo da natureza e declara que o fenômeno da vida necessita ser colocado novamente no seu lugar de honra.
"O excesso de poder da tecnologia
se converteu em ameaça e perigo
porquanto sua consistência está associada
à ideia de “promessa, utopia,
sucesso e bem-estar”.
O novo princípio de responsabilidade terá como objeto concreto de entendimento a possibilidade de perpetuação indefinida da humanidade no futuro que poderá estar comprometida pela degradação do meio ambiente, pelos perigos da energia nuclear, pelos avanços e possibilidades da engenharia genética e da biotecnologia. A humanidade encontra-se diante da “ameaça” dos novos poderes que ultrapassam a legislação e as prescrições morais. É esse vácuo que necessita ser preenchido pela reflexão, um vazio ético que é, para Jonas, “o vazio do atual relativismo dos valores”.
O excesso de poder da tecnologia se converteu em ameaça e perigo porquanto sua consistência está associada à ideia de “promessa, utopia, sucesso e bem-estar”. A utopia acompanha a técnica porque ela revela poder, onipotência e dominação. Os êxitos e os grandes avanços “afetaram a própria natureza humana” onde o “medo” e o “perigo” levantam a possibilidade de uma catástrofe. Portanto, se o homem tem “poder” e se este foi possível pelo avanço do conhecimento científico, a ética fundada na doutrina do ser abre espaço para dizer “não” ao “não ser” e isto significa “sim à vida”. Jonas deixou-nos um legado importante: o mundo é vulnerável, a natureza é vulnerável assim como a vida humana. Diante da vulnerabilidade a única saída é o cuidado, a responsabilidade. Ao cuidarmos das gerações presentes, também estaremos cuidado das futuras.
IHU On-Line – Quais são as suas maiores contribuições para o campo da educação?
Lourenço Zancanaro – No campo da educação, a teoria da responsabilidade ajudará a levantar questões que poderão contribuir para a filosofia da educação. Não obstante, não poderá referir-se à escola como a única responsável pelo sucesso ou fracasso da vida em sociedade. A educação perfaz a totalidade das ações, desde aquelas veiculadas pelos meios de comunicação, das ações públicas dos legisladores, do respeito intersubjetivo dentro do espaço público e da responsabilidade paterna como arquétipo de toda a responsabilidade.
Posto que a tarefa da educação no seu sentido amplo é dar uma formação global de conhecimentos que auxiliam a gestão da vida no mundo, a ética de responsabilidade poderá ser um bom instrumento na valorização da vida, do meio ambiente e de tudo que deve existir. Nesse sentido, as “obrigações” partem exatamente deste contexto e da análise das ações presentes. A responsabilidade para com o futuro terá como causa o apelo da situação presente. Se tivermos um “poder” de qualquer tipo, deste originar-se-á uma “obrigação” com o futuro. Não podemos comprometer o futuro, dando prioridade ao “pior” sobre o “melhor”, ao mais “ínfimo” sobre o mais “elevado”.
IHU On-Line – Em que medida o princípio de responsabilidade é, também, uma proposição que dialoga com a autonomia do ser humano?
Lourenço Zancanaro – O imperativo da responsabilidade – “Age de tal maneira que o efeito das tuas ações não coloquem em risco a possibilidade de vida no futuro” – representa o que há de mais fundamental na reflexão bioética. Somos autônomos para buscar o melhor e este deve ser sempre mais desejável que o pior. A autonomia é tomar posse da realidade como algo que precisa ser cuidado diante do excesso de poderes que a ciência nos dá. Somos chamados a deliberar sobre os novos podes que a tecnologia nos fornece. Portanto, a autonomia tem o sentido de deliberação sobre o uso das tecnologias, no sentido de análise das consequências futuras do seu uso. Jonas não é contra a tecnologia, nem muito menos a ética: uma boa ética pode fazer uma boa ciência e isto está no âmbito da deliberação em relação ao nosso poder.
IHU On-Line – Poderia comentar a proximidade entre o pensamento desse filósofo com o sistema kantiano, na medida em que Jonas postula um “imperativo ambiental”?
Lourenço Zancanaro – Referindo-se aos antigos imperativos, Hans Jonas destaca o kantiano – “Age de tal maneira que possas também querer que a máxima do teu agir se converta em lei universal da natureza” –; faz isso tecendo algumas observações.
A afirmação kantiana “que possas” expressa a razão, de acordo consigo mesma. Numa comunidade de seres racionais, a ação deve ser tal que, sem se contradizer, deixe-se apresentar como prática universal dessa comunidade. Para Jonas, a proposição “não é moral, mas lógica”. O “poder-querer” ou o “não poder-querer” exprime mais “compatibilidade (ou incompatibilidade) lógica, e não aprovação (ou desaprovação) moral”. Tal formulação é incompatível com o propósito da nova ética onde a esfera da ação não é mais o agir individual, mas coletivo. Considera que sua proposição não contém nenhuma autocontradição, pois está orientada para o domínio da esfera pública, onde os efeitos últimos das ações podem colocar em risco a possibilidade de vida futura.
O imperativo de Jonas não contém contradição de ordem racional porque está adaptado ao agir coletivo. A moralidade do querer consiste efetivamente em exercer um poder sobre aquilo que está em nossas mãos. Em Jonas está o caráter público e objetivo da responsabilidade direcionada à existência concreta contra a escolha privada e subjetiva em Kant. Em Kant, a universalização é hipotética; em Jonas, a responsabilidade é com as “políticas públicas” e o bem comum. Sève lembra que, em Jonas: “A política é o coração da ética de responsabilidade porque está endereçada muito mais à política pública que a conduta privada”. Todavia essa discussão mereceria um debate maior.
"O excesso de poder e a onipotência
que a ciência nos dá poderão colocar
em risco nossa existência e também a da natureza.
Por isso a responsabilidade é com a vida,
com sua continuidade para sempre.
Nossa relação com o mundo deve
ser de complementaridade."
IHU On-Line – Quais podem ser as relações a serem estabelecidas entre ética ambiental e responsabilidade antropocósmica?
Lourenço Zancanaro – A ética tradicional está fundada em injunções que colocam em evidência os fundamentos e obrigações que justifiquem a obediência em princípios, tais como: “Ama teu próximo como a ti mesmo; não consideres jamais o próximo como um meio, mas como um fim em si”, Jonas mostra, ao apresentar a ideia de uma “natureza estável”, onde tudo o que era bom para o homem devia ser aceito sem dificuldade. A responsabilidade humana estava igualmente definida, a partir da condição dada pela natureza. A essência constante estabelecida pela natureza colocava o homem numa condição de dependência, a obrigação estava direcionada ao aperfeiçoamento da potencialidade natural, e os projetos, definidos de acordo com a norma eterna. A essência constante é um traço característico para a ação do homem metafísico que não pode ser considerado objeto de transformação pela técnica e, muito menos, objeto de responsabilidade futura. Resumimos a questão em três aspectos fundamentais.
Jonas mostra que as proposições do agir próximo são insuficientes e pergunta pelo seu significado moral ante as enormes transformações tecnológicas. Pela sequência de certos desenvolvimentos provocados pelo poder, a natureza do agir humano se transformou. Diante disso, faz-se necessário buscar novas vias interpretativas sobre as consequências desses poderes não mais restritos ao espaço da pólis, e limitados ao tempo futuro enquanto eternidade, mas como possibilidades a longo prazo. Esse entendimento requer adaptação aos novos tempos, uma vez que a ampliação do poder tecnológico modificou a natureza do agir. O argumento que exige transformação da ética está nos novos significados dos objetos culturais para o homem. Se são poderosos e causaram transformações na natureza do agir, logo o argumento é procedente.
Resignação
A visão “antropocêntrica” caracteriza-se pelo significado efetivo da reciprocidade do homem a partir das suas necessidades. Além do mais, ele é possuidor de uma essência constante que não pode ser considerada objeto de transformação. Finalmente, o espaço da ação no agir próximo é determinado pela ideia de perfeição quase imediata. A longo prazo, as consequências eram abandonadas ao “acaso, ao destino, à providência”. A ética se ocupava com “as situações repetitivas típicas da vida pública e privada”. Nesse contexto situa-se o conceito de “homem bom”, que respondia com virtude e sabedoria às situações próximas da vida pública e privada, de um lado, e, de outro, resignava-se ante o desconhecido. Mandamentos e máximas preocupavam-se com o imediato da ação e revelavam o campo de ação da moralidade, enfatizando a práxis cotidiana, o alcance imediato, e excluindo a previsão a longo prazo. “A moralidade ficava restrita ao estreito campo da ação”.
IHU On-Line – A partir da filosofia de Jonas, quais são as principais dificuldades em se propor uma ética dentro da civilização tecnológica em que vivemos?
Lourenço Zancanaro – Uma das principais dificuldades da teoria da responsabilidade está na sua fundamentação a partir da metafísica, especialmente quando recorre a pré-modernos. Fundar uma ética a partir do ser SER ou do ponto de vista metafísico ainda não foi suficientemente aprofundado e é o ponto onde são feitas as maiores críticas a ele. Todavia, Jonas faz isso propositadamente para chamar a atenção dos modernos sobre o quanto a vida foi banalizada e, sobretudo, de quanto deixamos de ser pastores do ser. A vida é tudo o que temos. O excesso de poder e a onipotência que a ciência nos dá poderão colocar em risco nossa existência e também a da natureza. Por isso a responsabilidade é com a vida, com sua continuidade para sempre. Nossa relação com o mundo deve ser de complementaridade.
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Fonte: IHU on line, 27/08/2011
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