terça-feira, 16 de agosto de 2011

E UMA TRISTEZA


Imagem da Internet - Cena do filme Melancolia

 
"Melancolia", novo filme em cartaz, chama a atenção para um conceito que hoje se confunde com o da depressão, mas vai bem além da doença


O cineasta dinamarquês Lars von Trier trouxe à cena a melancolia, que estava escondida num canto escuro da casa, encoberta pelo termo médico "depressão".
Seu novo filme é um retrato desse estado de ânimo em todos os aspectos: dos psiquiátricos (sintomas da depressão) aos filosóficos (a tristeza como consciência da solidão humana no universo).
O tema está na ordem do dia, afirma o psicólogo Marco Antônio Rotta Teixeira, que faz sua tese sobre melancolia e depressão na tradição do pensamento ocidental. "Mas a melancolia vem sendo falada com a roupa da depressão."
O atual conceito médico da depressão usa dados mensuráveis para definir esse estado, como tempo de duração de sintomas.
Para a psicanálise, a melancolia é o estágio mais extremo da depressão. A apatia do melancólico é fruto da perda de algo ou de alguém, que precisa ser compreendida e superada, em um processo semelhante ao do luto. A diferença é que, enquanto no luto a perda é compreendida, na melancolia ela é inconsciente: não se sabe o que foi perdido.
"Nada atrai o melancólico, a não ser o próprio sofrimento. Ele está absorvido nele mesmo", diz Sandra Edler, autora de "Luto e Melancolia: À Sombra do Espetáculo" (Civilização Brasileira, R$ 19). A cultura atual conspira contra o melancólico, diz a psicanalista. "Se a pessoa perde algo, precisa se recolher, mas a vida a chama para um eterno desempenho, se não quiser perder espaço."
É o que pensa, também, a psicóloga Ana Cleide Moreira, autora de "Clínica da Melancolia" (Escuta, R$ 37). "Se não temos tempo nem de pensar, não percebemos a perda de algo importante."
Nesse caso, é mais fácil aliviar o sofrimento com remédios. "A sociedade não assimila os estados de tristeza. Precisamos eliminá-los rapidamente para continuar trabalhando", diz Teixeira.
Essa crítica não significa, ressalta ele, fazer apologia da tristeza ou rejeitar as chances dadas pela ciência para lidar com ela.
"As pessoas falam que há um aumento dos casos de depressão, mas o que as pesquisas mostram é um aumento na prescrição de antidepressivos", diz o psiquiatra Ricardo Moreno, do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Mas psiquiatras, psicanalistas e psicólogos concordam que drogas têm um papel importante.
"Muitas vezes é necessário tratar a melancolia com remédios. Sem eles, alguns não conseguem nem chegar ao consultório", diz a psicanalista Sandra Edler.

TEMPERAMENTO DE GÊNIOS

No filme de Trier, as referências aos sintomas de depressão são explícitas. Como na cena em que Justine (personagem baseada na experiência pessoal do cineasta) não consegue nem entrar no banho.
Os clichês usados para abarcar a tristeza profunda também estão lá: noite, lua, sombras, noiva.
É a retomada da concepção de melancolia como algo que tem uma manifestação doentia (a depressão), mas não é só isso, não pode ser explicado só pela ciência e transcende o indivíduo.
Mesmo sem dizer seu nome, as pessoas reconhecem o sentimento de melancolia. Está na hora em que você percebe não fazer parte da festa, no banzo da noite de domingo, na lembrança da morte.
"A melancolia ganhou diferentes definições na história e até hoje é assim, dependendo de quem fala dela" diz Teixeira.
Hipócrates (460-377 a.C.) a definiu como doença causada por acúmulo da bile negra, que resultaria no temperamento melancólico. O vocábulo vem do grego "melas" (negro) e "kholé" (bile).
O filósofo Aristóteles (384-322 a.C.) levou o conceito para outro plano: a melancolia era uma característica da genialidade, associada ao conhecimento e à intelectualidade.
O professor e crítico de arte Rodrigo Naves lembra que a associação entre genialidade e melancolia é de uma época em que o conceito de individualidade não existia.
"A melancolia era uma deusa, que regia as artes liberais. Nessa noção, a pessoa é preenchida por algo que vem de fora, é regida por entidades, planetas", diz Naves.
Na mitologia e na astrologia, é Saturno, deus do tempo, que devora seus filhos, que traz a morte. No filme de Trier, é o planeta que vem acabar com o mundo.
"A grande ideia da melancolia é justamente a de embaralhar as fronteiras entre dois temperamentos que parecem opostos: o da pessoa deprimida e o da pessoa criativa", diz Frédéric René Guy Petitdemange, professor de História da Arte da Universidade Anhembi Morumbi.
Na semana passada, Petitdemange deu uma aula sobre a iconografia da melancolia na arte do Ocidente, baseada em uma exposição sobre esse tema realizada em Paris e Berlim, em 2006.
Para ele, a essência da melancolia -tristeza profunda ligada ao sentimento de vazio, à perda e à impossibilidade de encontrar sentido nos rituais sociais- não mudou. "A maneira de se discutir o tema pode mudar, mas são questões universais."

É DEPRESSÃO OU MELANCOLIA?

DEFINIÇÕES
Depressão é uma doença, segundo critérios do 'Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos Mentais'. A 'depressão melancólica' (marcada por despertar precoce, piora do quadro pela manhã, prostração e anorexia) é um subtipo entre outros como depressão psicótica, sazonal ou pós-parto
Melancolia pode ser doença, estado de espírito ou temperamento, depende da corrente. Caracteriza-se por tristeza profunda, mas com atributos como tendência à atividade intelectual. Na psicanálise, toda melancolia é depressão, mas nem toda depressão é melancolia

CAUSAS
Até o séc.18 achava-se que a causa era uma falha na estrutura do cérebro. No séc.20, a origem da doença passa a ser atribuída a um desequilíbrio bioquímico (falhas nos neurotransmissores, que transmitem informações entre os neurônios)
Para Freud (1856-1939), melancolia é resultado de perda e neurose narcísica (a pessoa fica tão voltada para o interior que não age); para o grego Hipócrates (460-377 a.C.), o acúmulo da bile negra resultaria no temperamento melancólico

BOOM
Nas décadas de 1980-90, com a descoberta de novos medicamentos antidepressivos, como o Prozac, há um aumento dos diagnósticos de depressão
No fim do séc.18 e século 19, a melancolia foi valorizada pelo Romantismo, movimento marcado por sentimentalismo e subjetividade. Esse estado de espírito era atributo do herói

OBRA
Nas telas do americano Edward Hopper (1882-1967) não faltam espaços vazios, pessoas sozinhas e olhares que contemplam o nada. A vida na cidade é solitária e monótona, como na tela acima, "Office in a Small City", de 1953.

"Melencolia I" , gravura de 1514 do pintor, gravurista e arquiteto alemão Albrecht Dürer (1471-1528), em que a melancolia é associada à alma criativa e ao temperamento dos gênios e grandes artistas

ANÁLISE


Uma bela visão do apocalipse

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

O que é a melancolia? Talvez uma maneira de perceber o mundo. Algo próximo àquilo que sente Justine, a personagem de Kirsten Dunst no filme de Lars von Trier, durante a festa de seu casamento: uma tristeza profunda, um sentimento de ausência de sentido na vida.
Hoje considera-se a melancolia um fato médico: algo que se traduz por depressão.
É provável que "Melancolia" esteja mais próximo de um sentido não médico (ou psicanalítico). É como se Justine perguntasse por que as coisas deveriam ter sentido. O que significam eventos como casamento ou promoção no emprego? São questões que o filme nos endereça (já que não é um estudo clínico).
Na segunda parte do filme estamos com Claire, a personagem de Charlotte Gainsbourg. Um planeta chamado Melancolia deve passar muito próximo da Terra. O marido de Claire se anima com a ideia. Mas ela vai à maior fonte de equívocos do mundo, a internet, e constata que o Melancolia trombará com a Terra. Será o fim dos tempos.
Não é preciso ser um gênio para adivinhar que os curandeiros e curiosos da internet estarão com a razão.
O magnífico espetáculo da passagem se tornará um desastre cósmico irreparável.
Esse sentimento de fim dos tempos, de finitude humana, enfim, também é associado à melancolia e parece ser seu complemento obrigatório: a ausência de sentido da vida se consuma pela morte.
Não será mérito menor de "Melancolia" criar uma visão do apocalipse e, ao mesmo tempo, sua beleza: o homem indefeso diante de um universo em que mesmo os movimentos planetários não fazem sentido talvez seja a tradução da ideia de melancolia que Von Trier aqui expressa.


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Reportagem por IARA BIDERMAN GUILHERME GENESTRETI DE SÃO PAULO
Fonte: Folha On line, 16/08/2011
Imagens da Internet

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