Luiz Felipe Ponde*
A primeira causa do impulso eugênico é o fato de que a vida é um escândalo de sofrimento
Anos atrás, tive o prazer de conhecer o filósofo alemão Peter
Sloterdijk. Encontrei com ele algumas vezes em sua casa em Karlsruhe,
Alemanha.
Partilhamos o gosto pelo charuto cubano, pelo vinho branco em grandes
quantidades, pelo frango que sua esposa faz, pela visão trágica de
mundo, pela heresia cristã pessimista conhecida por gnosticismo e pela
pré-história. E também por usar palavras feias na filosofia e no debate
público.
Cheguei a entrevistá-lo para esta Folha duas vezes. Em uma delas,
em 1999, a pauta era a acusação que outro filósofo alemão, Jürgen
Habermas, fazia a ele de retomar a palavra "eugenia" em solo alemão.
Eugenia quer dizer criar jovens belos, bons e perfeitos. Esta
controvérsia chegou até nós e ficou conhecida com o título do livro
causador dela, "Regras para o Parque Humano", publicado entre nós pela
editora Estação Liberdade. "Parque Humano" aqui significa parque num
sentido quase zoológico.
Nesta peça filosófica, Sloterdijk dizia que o projeto eugênico ocidental
é filho de Platão ("A República", por exemplo), e que se ele não deu
certo nas engenharias político-sociais utópicas modernas, nem na
educação formal propriamente, estava dando certo na biotecnologia e nas
tecnologias de otimização da saúde.
Alguém duvida que academias de ginástica, consultoras em nutrição,
espiritualidades narcísicas ao portador (como a Nova Era e sua salada de
budismo, decoração de interiores e física quântica), cirurgias e
tratamentos estéticos, checkups anuais, ambulatórios de qualidade de
vida, pré-natal genético e interrupção aconselhada da gravidez de fetos
indesejáveis sejam eugenia?
E a primeira causa do impulso eugênico é o fato de que a vida é um escândalo de sofrimento, miséria física e mental.
Mas, a reação a Sloterdijk na época não foi propriamente uma negação de
seus postulados (difíceis de serem negados), mas sim uma reação pautada
pela covardia filosófica e política diante da palavra feia que ele
falava.
Esta palavra feia era sua recusa em negar nossa natureza eugênica e a
opção contemporânea pós-nazismo por realizar a eugenia no silêncio de
uma razão cínica que nega suas motivações morais: tornar a vida perfeita
sem dizer que está fazendo isso.
Ao tentar por "na conta do nazismo" a fala de Sloterdijk, Habermas e
seus discípulos fugiam do debate, negando a fuga da agonia humana diante
do sofrimento via nossa decisão (silenciosa) de tornar a vida perfeita a
qualquer custo, mesmo que esta decisão venha empacotada em conceitos
baratos como "qualidade de vida", "felicidade interna bruta" ou "direito
a autoestima".
Mas, engana-se quem pensar que Sloterdijk está querendo "aliviar" a
intenção eugênica ao remetê-la a miséria estrutural da vida. Sloterdijk é
um filósofo trágico, e por isso ele parte da aporia (impasse) da
condição humana para pensar sua história, sua moral, sua política.
Sua intenção é trazer à luz aquilo que não se quer trazer à luz, ou
seja, que nossa cultura e nossa ciência são eugênicas apesar de dizer
que não são. A palavra feia aqui é um grito contra o cinismo dos que
negam a intenção eugênica.
Mesmo que alguns intelectuais de esquerda tentem afirmar que o projeto
político utópico revive nas mãos dos árabes e suas eleições islamitas,
ou da crise do Euro, ou de desocupados que ocupam os espaços públicos
dos que têm o que fazer, intelectuais estes que se apropriam de modo
quase oportunista das constantes crises que acometem o mundo, sejam elas
capitalistas, sejam elas de qualquer outra natureza, a verdadeira
"esquerda" hoje é a afirmação do direito humano a ser mestre do seu
destino através das ciências biotecnológicas e seu inegável impacto
sobre as condições imediatas da vida cotidiana: longevidade, cirurgias
transformadoras do corpo "original", vacinas, antibióticos,
psicofármacos, contraceptivos, Viagras, terapias genéticas preventivas.
Diante do cinismo, Sloterdijk me disse uma vez que nos restava o
"terrorismo pedagógico": dizer palavras feias que as pessoas não querem
ouvir em seu sono dogmático.
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* Filósofo. Prof. Universitário. Escritor. Colunista da Folha
ponde.folha@uol.com.br Fonte: Folha on line, 30/04/2012
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