Paulo Ghiraldelli Jr*
Se há alguém que irrita conjuntamente feministas assanhadas, esquerdistas empedernidos e até os da direita que usam cueca samba
canção, esse alguém é o filósofo Pondé. Esse meu amigo consegue tal
proeza porque ele desobedece francamente meu outro amigo, já falecido, o
filósofo americano Richard Rorty.
O lema rortiano para ler filosofia e, de
certo modo, para fazer filosofia, prega que devemos saber que alguns
filósofos procuram justiça social enquanto que outros procuram
autocriação. Filósofos como Marx, Mill, Habermas e Rawls são do primeiro
tipo, filósofos como Nietzsche, Heidegger e Derrida são do segundo
tipo. Platão unifica justiça e autocriação segundo um vínculo de
necessidade por meio da sua metafísica. Ensinou muitos a agirem assim.
Por sua vez, Rorty é antiplatônico à medida que não vê nenhuma
necessidade de cimento entre uma coisa e outra, e, por isso mesmo, saúda
todos os filósofos citados, contanto que eles sejam lidos em seus
pontos fortes, e não por suas periferias.
Como filósofo que se pretende trágico,
Pondé está na linha que vem da própria concepção de tragédia grega.
Ei-la: a vida é marcada pelo destino que acontece segundo acasos, e não
por necessidade, mas ainda assim acontece. Acreditando nisso, Pondé sai
(ou nem entra) dos gregos e vem para os autores modernos e
contemporâneos. Pascal, Schopenhauer e Nietzsche são suas principais
torres de escuta e visão. Então, na conta de Rorty, ele deveria ser lido
como um filósofo da autocriação. Eu creio que é assim mesmo que ele se
imagina. Pois ele próprio diz que não leva a política a sério. Todavia,
uma vez que sua atividade filosófica se exerce na imprensa e esta é
marcada pela política, ele acaba enveredando pelos temas que são dos
filósofos do primeiro grupo, os que Rorty diz que evocam a justiça
social. Eis que Pondé começa a invadir essa área com instrumentos de
outra. Esse seu “erro” é fonte de seu sucesso. Ele engana a direita e
irrita a esquerda. Todo mundo grita, e assim ele faz o que todos nós
filósofos não ricos queremos fazer: vender livro.
Ele irrita a esquerda porque ao aplicar
uma filosofia de autocriação para o campo da justiça, praticamente faz
tudo, menos justiça. Ou digamos assim: faz a justiça, não a justiça
social. Sem apreço pela igualdade, não há justiça social alguma. Pondé
chega a odiar a igualdade, ou ao menos a propaganda dela. Recebe o ódio
de volta dos igualitaristas.
Ele engana a direita porque esta o pega
pela política, não pela filosofia. A direita se pensa ultraliberal, se
imagina querendo a liberdade, mas fica logo amante de golpes de estado e
se torna bastante conservadora, até meio fascista, quando no combate ao
que ela imagina que ainda existe, o “comunismo”. Teme o igualitarismo e
então se insurge contra a social democracia. Todavia, a direita
abandona seus princípios libertários e chama o Dulce ou o Fürer quando
teme pelo seu bolso e, desse modo, deixa a liberdade sem pai e sem mãe
quando esta mais precisa. Às vezes volta – como Carlos Lacerda fez
durante a “Frente Ampla” – arrependida, para compor com adversários de
esquerda ou liberais autênticos, e quase que pede perdão por ter apoiado
golpes que fazem o tiro sair pela culatra, instaurando algo nada
igualitário que é a massificação. “Massa” não é resultado de
igualitarismo, mas de completa indiferença para com igualdade, diferença
e liberdade. Ora, essa direita não sabe que Pondé, justamente pelo seu
ideal de autocriação, jamais se daria bem em qualquer ditadura ou
qualquer regime de força.
Pondé poderia ser antes um polemista que
um polêmico, e então responder a alguns de seus críticos. Mas ele
prefere deixar por isso mesmo. Escreve na imprensa e deve imaginar o
seguinte: quem quiser que procure a base sobre a qual falo e veja se a
filosofia trágica é boa filosofia ou não. Não é meu método de agir. Não
agiria assim. Sou aquele filósofo que ainda tem um pouco do professor. O
leitor burro me irrita, sim, mas sempre acabo achando que há também
apenas o leitor leigo, que merece explicação a mais do que artigos
curtos e aforismos. Então escrevo e rescrevo compulsivamente. Um pouco é
isso que faço aqui agora.
Conto como é um filósofo trágico. Vamos a
Pascal, segundo uma leitura que agrada Pondé, a de Clément Rosset. Este
filósofo diz que em Pascal, como em Lucrécio, não há “natureza”. Ou
seja, não há natureza boa (Rousseau) ou má (Sade). De modo que não
havendo natureza não há de se pensar o mundo segundo leis. O mundo não é
um cosmos, mas um caos. Cosmético (palavra que vem de cosmos) seria uma
palavra vazia. Segundo essa visão não se pode organizar um rosto pela
maquiagem e chamar uma tal substância de cosmético, de substância para a
organização geral, a harmonização. Pode-se apenas criar a maquiagem e
pronto. Nada que imite o mundo pode falar em harmonia e leis. Por isso
Pascal pode fazer a aposta que faz, sobre Deus. Pode acreditar em
milagres. Pois se não há regras na natureza, não há o que se possa
quebrar. O milagre é apenas um feito pontual, um feito não costumeiro,
não um elemento sobrenatural no sentido ontológico da palavra. Assim,
racionalmente, Pascal pode colocar como um dos lados da aposta, o Deus
do cristianismo.
Essa postura de Pascal é a postura que
Pondé busca na sua autocriação. Ele quer ser um indivíduo que pode
fracassar. Ele diz conhecer o fracasso. Ele vê o mundo como o que lhe
reserva um destino que ele não sabe qual será, mas que pode muito bem
lhe mostrar novamente o fracasso. Então, ele se vê segundo a
humildade pascaliana. Ele se vê corajoso por aceitar essa forma de
compreender o mundo. Ele levanta todo dia para mais um dia, querendo se
ver salvo pelo convívio de amigos, mas se mantendo amargurado, mas não
ressentido, sabendo que tudo pode lhe dar novos fracassos e assim fazer
dele mais humano ainda. Pois só o fracasso humaniza, segundo ele.
Nenhuma pessoa da direita política pensa
assim. A direita, pela sua própria plataforma, e não necessariamente
por desvios de personalidade de seus membros, tem de ser composta por
gente que acaba por humilha os mais pobres, uma vez que não os reconhece
como pobres, mas como vagabundos. Mas, não entendendo patavina do que
Pondé diz, a direita olha para ele, quando ele aplica tais noções à
política, e o vê como um adorável conservador, como um ídolo. Acham que
encontraram, finalmente, um filósofo que devem apoiar porque tal
filósofo estaria falando o que querem ouvir. Colocam Pondé em capas de
revista. A burrice da direita não percebe que Pondé é lobo na pele de
cordeiro. Ele não tem a ver com “neoliberais”, mas com Pascal. Ainda vamos rir disso!
Vamos rir porque por enquanto Pondé fala
mal de Obama. Ora, qualquer social democrata – e Obama é um deles –
acha que existe leis na natureza e que também a sociedade pode ser
pensada assim, e, portanto, não vai acreditar em milagres. Os social
democratas são planejadores. Quem opta pelo acaso e pelos caos (mesmo
acreditando em destino trágico) vai contra, na política, ao social
democrata. O certo seria não ir nem contra e nem a favor. Mas Pondé,
estando no jornal, fala muito e acaba pondo a filosofia no lugar da
política. Nega conquistas igualitárias e fala uma língua que não é a do
liberalismo progressista, mas do liberalismo tradicional que, um dia, a
esquerda chamou de “darwinismo social”. Ora, isso deixa a esquerda
furiosa e a direita contente. A direita mal sabe que isso não é
política, muito menos filosofia política, isso é apenas Pondé dando
palpite num terreno que pouco lhe importa. Por isso, dependendo da
situação, Pondé pode, a qualquer momento, falar coisas que irá espantar a
direita, se é que já não faz isso.
Bem, pode ser que tudo que eu disse aqui
não se verifique. Ninguém sabe como um homem agirá. Pondé pode começar a
gostar de política e realmente iniciar uma filosofia política com
instrumentos que não são próprios dela, indo bater em um conservadorismo
não contingencial, mas estrutural. Isso não seria nem um pouco
pascaliano ou nietzschiano. Pondé pode ser engolido pelos seus
aduladores. Todavia, eu rezo para o Deus cristão de Pascal que tal coisa
não ocorra.
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* Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
Nota do Blog: Luiz Felipé Pondé é filósofo, escritor e prof. universitário, colunista da Folha de São Paulo.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/11/06/2013
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