José Frazão Correia, SJ*
Recuperar o contacto com a densidade elementar e
biográfica da existência humana, com todas as suas limitações,
ambiguidades e tensões, deveria ser uma das preocupações centrais do
testemunho cristão: das formas de vida e de celebração, de organização,
de criação artística e de pensamento. Para tal, precisaríamos de
abandonar chavões grandiloquentes, moralismos fáceis, paternalismos
irrelevantes, falsos consensos, boas intenções que, no fundo, nem
acolhem a força transformadora do Evangelho, nem recolhem a riqueza da
Tradição eclesial, nem enfrentam o concreto da realidade, com as suas
ambiguidades e promessas.
Ocorrerá recuperar a densidade dos grandes
lugares e movimentos da vida humana (curiosamente, as artes e, entre
elas, a literatura ou o cinema, parecem perceber isso melhor que muita
catequese): nascimento e morte, sexo e trabalho, celebração e dor,
educação e economia, as coisas primeiras e últimas da existência. Estes
são os ritmos e os lugares onde a vida de cada um se decide e a carne,
na qual o mistério de Deus incide, na qual se diz e age, se é que a
verdade cristã se apresenta como manifestação real e não apenas como
afirmação formal de uma verdade intemporal. Mas nós, nas nossas
catequeses e iniciativas, no nosso estilo de vida comunitário, na nossa
prática litúrgica, parece que perdemos o contacto com eles e a
sabedoria para os viver como lugares de bênção e de graça. Porém, sem
eles, o cristianismo tornar-se-á abstrato, banal, patético até.
Portanto, sem densidade. Finalmente, irrelevante. Precisará, por isso,
de reaprender a realizar-se entre Deus e os ritmos e lugares do viver
quotidiano, entre a transcendência e o mundo, o absoluto e o particular,
a origem e o destino.
O cristianismo estará à altura do seu tempo se
for capaz de viver, de celebrar, de pensar e, assim, de realizar o
Evangelho como palavra e gesto que saiba a vida e que faça viver. Não a
vida ideal, mas a vida pequena, ferial, quotidiana. Para isso, precisa
de usar formas de vida, de linguagem e de pensamento nas quais homens e
mulheres, social e culturalmente situados, se revejam. No entanto,
não poderá deixar de realizar a contestação profética de fixações,
idolatrias, abstrações e não deixará de forçar os limites, de alargar o
horizonte, de escavar novas profundidades. Mas fá-lo-á como bênção capaz
de recolher, descrever e promover o que de melhor cada biografia e
cada grupo tem para dar em contacto com a graça que salva.
O cristianismo será presença qualificadora se for presença qualificada
Quando o espaço do viver comum já não aceita ser
plasmado pelo laço íntimo entre o cristianismo e o corpo social, resta à
fé aquilo que, na realidade, lhe é essencial e que, talvez, pela
segurança de um reconhecimento social garantido, tinha descurado: o
testemunho. Este é a sua fragilidade e a sua força.
O cristianismo só poderá qualificar o viver
individual e comum se se oferecer no testemunho de biografias e de
grupos qualificados pelo Evangelho. Se Jesus é a entrega de Deus ao
crédito que o ser humano lhe queira reconhecer (este é o modo que Deus
escolheu para Se revelar), a Igreja não tem outro modo de manifestar o
seu Senhor que não seja o de se expor ao crédito alheio, oferecendo-se
à liberdade de cada um de O reconhecer como digno de confiança. Assim,
reaprenderemos que a verdade de que vivemos não é de ordem
lógico-gramatical ou de estatuto social, mas de ordem vital: é o
reconhecimento e a adesão coerente Àquele - Jesus de Nazaré - que se
apresenta historicamente na fragilidade de um corpo humano, exposto,
por isso, à contingência de lugares, de tempos, de relações concretas.
É pedido ao cristianismo que esteja à altura do
Evangelho que anuncia, não como ideologia, mas como graça que salva
enquanto incide e transforma biografias e grupos, concretamente
situados, assumindo, também ele, uma configuração histórica determinada
(um corpo). Ao mesmo tempo, não poderá aceitar ficar abaixo das
realizações do momento presente, nos mais variados campos: das artes às
ciências, da filosofia à economia, do pensamento ético às políticas
sociais.
A pobreza determina a qualidade da presença do cristianismo
A percepção da nudez e da confusão poderá dar
lugar à consciência do dom. Quando parecia que estávamos a perder algo
de essencial, afinal, estávamos a ser agraciados com a dádiva
maior da pobreza, lugar propício para riquezas maiores. É verdade que no
mundo ocidental nos estamos a tornar uma minoria sem esplendor
particular, expostos a um tempo que muda vertiginosamente e que não nos
pede opinião e, ainda menos, autorização. Por vezes, parece que
deveríamos pedir desculpa por ainda existirmos, já que, do nosso
passado, só chegariam, até hoje, malfeitorias. Mas, ad intra, também
nos faltam formas de oração, de linguagem, de celebração e de
representação da presença de Deus. Estamos, por isso, entregues a nós
próprios. E isto parece muito pouco.
Ficamos expostos à nossa nudez que também passa,
hoje, por acolher muitas diferenças, às vezes as mais bizarras, e a
estranheza de tantas coisas e pessoas. Dar lugar ao outro -uma pessoa
ou um momento histórico - é sempre dar lugar à morte. Na realidade, o
que me chega com o outro é a minha morte, porque ele é radicalmente o
não-eu. A experiência do outro, como a experiência de Deus, em muitas
passagens da Escritura, é terrível, precisamente, porque não suporta
ser tratada com o sentimentalismo ou a ideologia daquele diálogo que,
na verdade, o nega, procurando seduzi-lo, neutralizá-lo, capturá-lo ou
evitá-lo (M. de Certeau). Porém, no cristianismo, o encontro com o
outro parte da confiança de que se receberá dele, não só a morte, mas a
vida. Dar-lhe lugar é também receber a graça de participar numa vida
que se supera a si própria para ir mais longe. Uma vida que não é feita
para ser capitalizada para a eternidade, mas para ser dada e perdida
no mesmo momento em que é servida (S. Morra). Não existe experiência
cristã que não atravesse o combate de uma hospitalidade ferida e
jubilante, de uma vida ligada a um desaparecimento. Estaremos à altura
desta perda? Queremos atravessá-la e receber dela outras formas de
visibilidade? Este é o risco real da dura prova da morte. O que
seremos? A Deus nos confiamos, nossa força, nossa esperança.
Neste movimento de perda pelo caminho mais longo
da diferença do momento histórico, poderemos redescobrir a pobreza
como essência do cristianismo. Será o anonimato a pobreza
espiritual que hoje nos será pedida? Será, talvez, um tempo de deserto e
de jejum para deixar respirar a fé; um ritmo de silêncio e de
abrandamento do nosso dizer, das nossas afirmações demasiado seguras e
englobantes; um compasso de espera e de acesso renovado ao tesouro ao
qual procuramos dar corpo; uma oportunidade para recompor fórmulas
breves de fé, histórias biográficas de Deus conosco que exponham o que
nos é caro, o que nos toca a alma e alimenta o coração e o intelecto.
Sim, poderá tratar-se de uma pobreza profética
que já não passará tanto pela posse de coisas e de propriedades, para
ser pobreza de lugares e de identidade religiosa, psicológica ou social
(S. Morra). Passará a ser a voz de um corpo em trânsito, exposto à
instabilidade das muitas fronteiras que hoje cruzamos. Não contará com a
segurança do sistema, a reserva da identidade garantida e
reconhecida, a glória da tradição, o reconhecimento público da
instituição e da sua autoridade, mas ganhará forma e articular-se-á,
de modo mais modesto, na biografia de cada crente, no ritmo de cada
grupo. Reaprenderemos, assim, a viver mais de Deus e da frescura do
Evangelho que do reconhecimento público, dos benefícios sociais, da
grandeza das realizações. A ausência far-nos-á agir, criar, gerar,
escrever...de modo mais livre e fecundo. O que nos falta poderá
tornar-se condição de possibilidade para o que ainda virá.
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O autor deste artigo, padre José Frazão Correia, é um dos intervenientes na 9.ª Jornada Nacional da Pastoral da Cultura, que a 21 de junho debate em Fátima o tema "Culturas Juvenis Emergentes".
José Frazão Correia, SJ
Teólogo, professor da Universidade Católica Portuguesa
In Brotéria (outubro 2011)
11.06.13
Teólogo, professor da Universidade Católica Portuguesa
In Brotéria (outubro 2011)
11.06.13
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