quarta-feira, 12 de junho de 2013

Três prioridades para a Igreja: recuperar o contacto com o essencial da vida humana, dar testemunho, ser pobre

José Frazão Correia, SJ*
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Recuperar o contacto com a densidade elementar e biográfica da existência humana, com todas as suas limitações, ambiguidades e tensões, deveria ser uma das preocupações centrais do testemunho cristão: das formas de vida e de celebração, de organização, de criação artística e de pensamento. Para tal, precisaríamos de abandonar chavões grandiloquentes, moralismos fáceis, paternalismos irrelevantes, falsos consensos, boas intenções que, no fundo, nem acolhem a força transformadora do Evangelho, nem recolhem a riqueza da Tradição eclesial, nem enfrentam o concreto da realidade, com as suas ambiguidades e promessas.

Ocorrerá recuperar a densidade dos grandes lugares e movimentos da vida humana (curiosamente, as artes e, entre elas, a literatura ou o cinema, parecem perceber isso melhor que muita catequese): nascimento e morte, sexo e trabalho, celebração e dor, educação e economia, as coisas primeiras e últimas da existência. Estes são os ritmos e os lugares onde a vida de cada um se decide e a carne, na qual o mistério de Deus incide, na qual se diz e age, se é que a verdade cristã se apresenta como manifestação real e não apenas como afirmação formal de uma verdade intemporal. Mas nós, nas nossas catequeses e iniciativas, no nosso estilo de vida comunitário, na nossa prática litúrgica, parece que perdemos o contacto com eles e a sabedoria para os viver como lugares de bênção e de graça. Porém, sem eles, o cristianismo tornar-se-á abstrato, banal, patético até. Portanto, sem densidade. Finalmente, irrelevante. Precisará, por isso, de reaprender a realizar-se entre Deus e os ritmos e lugares do viver quotidiano, entre a transcendência e o mundo, o absoluto e o particular, a origem e o destino.

O cristianismo estará à altura do seu tempo se for capaz de viver, de celebrar, de pensar e, assim, de realizar o Evangelho como palavra e gesto que saiba a vida e que faça viver. Não a vida ideal, mas a vida pequena, ferial, quotidiana. Para isso, precisa de usar formas de vida, de linguagem e de pensamento nas quais homens e mulheres, social e culturalmente situados, se revejam. No entanto, não poderá deixar de realizar a contestação profética de fixações, idolatrias, abstrações e não deixará de forçar os limites, de alargar o horizonte, de escavar novas profundidades. Mas fá-lo-á como bênção capaz de recolher, descrever e promover o que de melhor cada biografia e cada grupo tem para dar em contacto com a graça que salva.

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O cristianismo será presença qualificadora se for presença qualificada

Quando o espaço do viver comum já não aceita ser plasmado pelo laço íntimo entre o cristianismo e o corpo social, resta à fé aquilo que, na realidade, lhe é essencial e que, talvez, pela segurança de um reconhecimento social garantido, tinha descurado: o testemunho. Este é a sua fragilidade e a sua força.

O cristianismo só poderá qualificar o viver individual e comum se se oferecer no testemunho de biografias e de grupos qualificados pelo Evangelho. Se Jesus é a entrega de Deus ao crédito que o ser humano lhe queira reconhecer (este é o modo que Deus escolheu para Se revelar), a Igreja não tem outro modo de manifestar o seu Senhor que não seja o de se expor ao crédito alheio, oferecendo-se à liberdade de cada um de O reconhecer como digno de confiança. Assim, reaprenderemos que a verdade de que vivemos não é de ordem lógico-gramatical ou de estatuto social, mas de ordem vital: é o reconhecimento e a adesão coerente Àquele - Jesus de Nazaré - que se apresenta historicamente na fragilidade de um corpo humano, exposto, por isso, à contingência de lugares, de tempos, de relações concretas.

É pedido ao cristianismo que esteja à altura do Evangelho que anuncia, não como ideologia, mas como graça que salva enquanto incide e transforma biografias e grupos, concretamente situados, assumindo, também ele, uma configuração histórica determinada (um corpo). Ao mesmo tempo, não poderá aceitar ficar abaixo das realizações do momento presente, nos mais variados campos: das artes às ciências, da filosofia à economia, do pensamento ético às políticas sociais.

A pobreza determina a qualidade da presença do cristianismo

A percepção da nudez e da confusão poderá dar lugar à consciência do dom. Quando parecia que estávamos a perder algo de essencial, afinal, estávamos a ser agraciados com a dádiva maior da pobreza, lugar propício para riquezas maiores. É verdade que no mundo ocidental nos estamos a tornar uma minoria sem esplendor particular, expostos a um tempo que muda vertiginosamente e que não nos pede opinião e, ainda menos, autorização. Por vezes, parece que deveríamos pedir desculpa por ainda existirmos, já que, do nosso passado, só chegariam, até hoje, malfeitorias. Mas, ad intra, também nos faltam formas de oração, de linguagem, de celebração e de representação da presença de Deus. Estamos, por isso, entregues a nós próprios. E isto parece muito pouco.

Ficamos expostos à nossa nudez que também passa, hoje, por acolher muitas diferenças, às vezes as mais bizarras, e a estranheza de tantas coisas e pessoas. Dar lugar ao outro -uma pessoa ou um momento histórico - é sempre dar lugar à morte. Na realidade, o que me chega com o outro é a minha morte, porque ele é radicalmente o não-eu. A experiência do outro, como a experiência de Deus, em muitas passagens da Escritura, é terrível, precisamente, porque não suporta ser tratada com o sentimentalismo ou a ideologia daquele diálogo que, na verdade, o nega, procurando seduzi-lo, neutralizá-lo, capturá-lo ou evitá-lo (M. de Certeau). Porém, no cristianismo, o encontro com o outro parte da confiança de que se receberá dele, não só a morte, mas a vida. Dar-lhe lugar é também receber a graça de participar numa vida que se supera a si própria para ir mais longe. Uma vida que não é feita para ser capitalizada para a eternidade, mas para ser dada e perdida no mesmo momento em que é servida (S. Morra). Não existe experiência cristã que não atravesse o combate de uma hospitalidade ferida e jubilante, de uma vida ligada a um desaparecimento. Estaremos à altura desta perda? Queremos atravessá-la e receber dela outras formas de visibilidade? Este é o risco real da dura prova da morte. O que seremos? A Deus nos confiamos, nossa força, nossa esperança.
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Neste movimento de perda pelo caminho mais longo da diferença do momento histórico, poderemos redescobrir a pobreza como essência do cristianismo. Será o anonimato a pobreza espiritual que hoje nos será pedida? Será, talvez, um tempo de deserto e de jejum para deixar respirar a fé; um ritmo de silêncio e de abrandamento do nosso dizer, das nossas afirmações demasiado seguras e englobantes; um compasso de espera e de acesso renovado ao tesouro ao qual procuramos dar corpo; uma oportunidade para recompor fórmulas breves de fé, histórias biográficas de Deus conosco que exponham o que nos é caro, o que nos toca a alma e alimenta o coração e o intelecto.

Sim, poderá tratar-se de uma pobreza profética que já não passará tanto pela posse de coisas e de propriedades, para ser pobreza de lugares e de identidade religiosa, psicológica ou social (S. Morra). Passará a ser a voz de um corpo em trânsito, exposto à instabilidade das muitas fronteiras que hoje cruzamos. Não contará com a segurança do sistema, a reserva da identidade garantida e reconhecida, a glória da tradição, o reconhecimento público da instituição e da sua autoridade, mas ganhará forma e articular-se-á, de modo mais modesto, na biografia de cada crente, no ritmo de cada grupo. Reaprenderemos, assim, a viver mais de Deus e da frescura do Evangelho que do reconhecimento público, dos benefícios sociais, da grandeza das realizações. A ausência far-nos-á agir, criar, gerar, escrever...de modo mais livre e fecundo. O que nos falta poderá tornar-se condição de possibilidade para o que ainda virá.
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O autor deste artigo, padre José Frazão Correia, é um dos intervenientes na 9.ª Jornada Nacional da Pastoral da Cultura, que a 21 de junho debate em Fátima o tema "Culturas Juvenis Emergentes".

José Frazão Correia, SJ
Teólogo, professor da Universidade Católica Portuguesa
In Brotéria (outubro 2011)
11.06.13

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