Arnaldo Bloch*
Cogito enviar um zap para Jungmann: 'já pensou que o grande financiador do tráfico talvez seja o proibicionismo?'
Será
que um agente russo envenenou minha bebida?, viajo, sóbrio, entre um
gole de refri zero de limão e espiadas nos sites, pelo celular. Vejo
Trump, Kim, Putin. Em hiperlink, recaio na foto da pilha de malas
coloridas no Porto do Rio e cruzo com as aspas do ministro Raul
Jungmann, acusando os usuários “de classe média” (só eles?) de serem os
grandes financiadores do tráfico. O que há nessa limonada sem adição de
açúcar que me faz pensar nas penitenciárias superlotadas de gente que
fumou um baseado? Leio que Jungmann, apesar do ataque ao usuário, quer
que o STF destrave o debate que define o limite máximo de porte,
diferenciando-o do traficante. A Lei de 2006, que descriminaliza o uso,
até hoje não “pegou”, por causa dessa lacuna.
Em fins de 2015, estava 3 x 0 a favor, quando Teori Zavascki pediu vista. O cronômetro parou e, desde a morte trágica de Teori, Alexandre de Moraes, seu sucessor, está com a bola e o apito, mas não reinicia o jogo. Antes de ir para o STF, na pasta da Justiça do governo Temer, Moraes foi ao Paraguai e cortou pés de maconha com facão. Teria falado em “erradicar o tráfico no continente”. Ele desdisse. E ventilou: é contra prisão de usuários e pequenos traficantes.
Nessa febril navegação retrospectiva pelo celular, cogito enviar um zap para Raul Jungmann, pondo em pauta, no supremo tribunal informal das reflexões cívicas, uma abordagem que vive sendo malocada. Respeitosamente, mando o torpedo por aqui mesmo: “Ministro, o senhor já pensou na hipótese de o grande financiador do tráfico ser o proibicionismo?”
A crença num mundo com zero teor de drogas persiste. Chamo de “utopia da erradicação”. Desde a origem, o ser humano é louco por substâncias. Se proibirem, vai procurar quem as tenha. Ou cavar buracos atrás de sementes, fungos, cheiros, temperos. Vai ferver chá, enrolar folha, macerar raiz. Assim é também com o álcool, o tabaco, a gordura saturada, soníferos, cafeínas, açúcares, fast-food. O título de um filme-pipoca americano diz tudo: “Tá chovendo hambúrguer”.
A obesidade infantil grassa, mas a OMS reage. Nutricionistas, mães e pais se unem. Os tabagistas são vistos como andróides caducos. Mas fuma-se menos, em locais restritos. Há avisos medonhos nos pacotes. No Brasil, a queda de consumo, em 25 anos, é drástica. Com o álcool, fruto bíblico da vinha, a escala vai da apreciação moderada a excessos que destroem famílias. Na vida há o uso, e o abuso. Mas vá proibir o chope, o vinho, a caninha do trabalhador. Uma rede clandestina brotará como as águas do Tororó não achadas. A guerra ao tráfico de bebidas eclodirá. Rolou nos anos 1920, com a lei seca americana. Al Capone e todo o alto gangsterismo fizeram a festa. A lei foi abolida, crime e consumo associados ao uso despencaram. Caso tão surrado e manjado quanto exemplar.
Tomo mais um gole do meu limão correto e volto a 2008, quando cobri, em Bogotá, para este jornal, uma reunião da recém-criada Comissão Latino-Americana Sobre Drogas e Democracia. Estavam lá Fernando Henrique, César Gavíria (Colômbia), Ernesto Zedillo (México), Rubem César, do Viva Rio, e Ethan Nadelmann, ás americano das teses liberatórias. A ONU se preparava para confessar, em Genebra, o fracasso da “Guerra às drogas”, adotada em bloco nas Américas: produção, consumo, violência e superlotação carcerária haviam explodido em uma década de confronto. O negócio agora era “redução de danos”, ousadia europeia.
De lá para cá, em Portugal, no Uruguai, nos EUA, e por aí, a maconha vem jogando nas onze, do medicinal ao recreativo, do plantio caseiro ao estoque regulador. Mas parece que um zumbi onipresente continua a repetir, catatônico: “erradicar, erradicar, erradicar”. Ora, já se tentou de tudo. Fumigar lavouras, dinamitar pistas de pouso, mobilizar exércitos. Mas a cada ponto que some do mapa, mil outros emergem. Multitrilionário, o tráfico se reorganiza, abre novas rotas, dribla o aparato.
Estarei saturado de soda ao constatar que, para substâncias permitidas, há impostos, estatísticas, políticas de saúde, prescrições? E que, com as proibidas, ocorre o oposto? Uma zona cinzenta nocauteia os dados. A clandestinidade seduz os jovens. Com o ouro nas mãos, o tráfico bagunça a vida civil, se infiltra na política e alimenta a cultura das armas. A bancada da bala está soltando fogos.
Seria loucura ampliar o binômio controle/redução para todo o leque, no radar do Estado e da Lei? E dá-lhe imposto investido em campanhas, em apoio médico e psicossocial, em pesquisa, e até na polícia. No STF, Barroso, em exercício futurologista, falou em legalização. Da maconha e até da coca. Com o tráfico esvaziado, volta-se a repressão contra assaltos, sequestros, contrabando, milícias, violência doméstica, fraudes, corrupção. Caminho que pode soar tão utópico quanto a quimera da erradicação. Mas, num exame sóbrio, não estaria mais afinado com o horizonte de transformações de mentalidade que já avançam em várias pistas do mundo real, do que persistir no vício negacionista, de uma guerra sangrenta sem fim?
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* Colunista do Jornal o Globo - 13/03/2018
Em fins de 2015, estava 3 x 0 a favor, quando Teori Zavascki pediu vista. O cronômetro parou e, desde a morte trágica de Teori, Alexandre de Moraes, seu sucessor, está com a bola e o apito, mas não reinicia o jogo. Antes de ir para o STF, na pasta da Justiça do governo Temer, Moraes foi ao Paraguai e cortou pés de maconha com facão. Teria falado em “erradicar o tráfico no continente”. Ele desdisse. E ventilou: é contra prisão de usuários e pequenos traficantes.
Nessa febril navegação retrospectiva pelo celular, cogito enviar um zap para Raul Jungmann, pondo em pauta, no supremo tribunal informal das reflexões cívicas, uma abordagem que vive sendo malocada. Respeitosamente, mando o torpedo por aqui mesmo: “Ministro, o senhor já pensou na hipótese de o grande financiador do tráfico ser o proibicionismo?”
A crença num mundo com zero teor de drogas persiste. Chamo de “utopia da erradicação”. Desde a origem, o ser humano é louco por substâncias. Se proibirem, vai procurar quem as tenha. Ou cavar buracos atrás de sementes, fungos, cheiros, temperos. Vai ferver chá, enrolar folha, macerar raiz. Assim é também com o álcool, o tabaco, a gordura saturada, soníferos, cafeínas, açúcares, fast-food. O título de um filme-pipoca americano diz tudo: “Tá chovendo hambúrguer”.
A obesidade infantil grassa, mas a OMS reage. Nutricionistas, mães e pais se unem. Os tabagistas são vistos como andróides caducos. Mas fuma-se menos, em locais restritos. Há avisos medonhos nos pacotes. No Brasil, a queda de consumo, em 25 anos, é drástica. Com o álcool, fruto bíblico da vinha, a escala vai da apreciação moderada a excessos que destroem famílias. Na vida há o uso, e o abuso. Mas vá proibir o chope, o vinho, a caninha do trabalhador. Uma rede clandestina brotará como as águas do Tororó não achadas. A guerra ao tráfico de bebidas eclodirá. Rolou nos anos 1920, com a lei seca americana. Al Capone e todo o alto gangsterismo fizeram a festa. A lei foi abolida, crime e consumo associados ao uso despencaram. Caso tão surrado e manjado quanto exemplar.
Tomo mais um gole do meu limão correto e volto a 2008, quando cobri, em Bogotá, para este jornal, uma reunião da recém-criada Comissão Latino-Americana Sobre Drogas e Democracia. Estavam lá Fernando Henrique, César Gavíria (Colômbia), Ernesto Zedillo (México), Rubem César, do Viva Rio, e Ethan Nadelmann, ás americano das teses liberatórias. A ONU se preparava para confessar, em Genebra, o fracasso da “Guerra às drogas”, adotada em bloco nas Américas: produção, consumo, violência e superlotação carcerária haviam explodido em uma década de confronto. O negócio agora era “redução de danos”, ousadia europeia.
De lá para cá, em Portugal, no Uruguai, nos EUA, e por aí, a maconha vem jogando nas onze, do medicinal ao recreativo, do plantio caseiro ao estoque regulador. Mas parece que um zumbi onipresente continua a repetir, catatônico: “erradicar, erradicar, erradicar”. Ora, já se tentou de tudo. Fumigar lavouras, dinamitar pistas de pouso, mobilizar exércitos. Mas a cada ponto que some do mapa, mil outros emergem. Multitrilionário, o tráfico se reorganiza, abre novas rotas, dribla o aparato.
Estarei saturado de soda ao constatar que, para substâncias permitidas, há impostos, estatísticas, políticas de saúde, prescrições? E que, com as proibidas, ocorre o oposto? Uma zona cinzenta nocauteia os dados. A clandestinidade seduz os jovens. Com o ouro nas mãos, o tráfico bagunça a vida civil, se infiltra na política e alimenta a cultura das armas. A bancada da bala está soltando fogos.
Seria loucura ampliar o binômio controle/redução para todo o leque, no radar do Estado e da Lei? E dá-lhe imposto investido em campanhas, em apoio médico e psicossocial, em pesquisa, e até na polícia. No STF, Barroso, em exercício futurologista, falou em legalização. Da maconha e até da coca. Com o tráfico esvaziado, volta-se a repressão contra assaltos, sequestros, contrabando, milícias, violência doméstica, fraudes, corrupção. Caminho que pode soar tão utópico quanto a quimera da erradicação. Mas, num exame sóbrio, não estaria mais afinado com o horizonte de transformações de mentalidade que já avançam em várias pistas do mundo real, do que persistir no vício negacionista, de uma guerra sangrenta sem fim?
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* Colunista do Jornal o Globo - 13/03/2018
Concordo em gênero numero e grau. O proibicionismo é o grande financiador.
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