Juremir Machado da Silva*
O bairro de Montparnasse, em Paris, onde morei vários anos, vai
ser modificado. Os franceses querem criar uma “comercialidade moderna”.
Na tradução do jornal “Libération”, comércio de rua. Depois do delírio
de vidro e concreto dos anos 1970, retorno ao natural. Europeus ricos
têm essas manias: ruas, vida ao ar livre, piqueniques, bondes, trens.
Nós, mais desenvolvidos, gostamos de ar condicionado, shopping center,
carros individuais, transporte rodoviário e ambientes fechados e
verticais.
Aí está: a rua será a grande invenção europeia.
O leitor Ari Rosa de Oliveira me enviou faz algum tempo uma lista dos
cinemas de Porto Alegre que tinham porta para as calçadas. Conheci
vários deles ao chegar em Porto Alegre no nada distante ano de 1980.
Depois, foram varridos pelas salas de shopping, essas caixas sem alma
com cheiro de pipoca com manteiga e fartura de filmes ruins. Na lista do
Ary aparecem 46 cinemas: Cacique, Guarany (de 1913), Vitória, Carlos
Gomes, São João, Continente (que trocaria de nome para Lido), Sala
Vogue, Avenida, Garibaldi (1914), Marrocos, Roma, Presidente, Baltimore,
que eu muito frequentei, Orpheu (depois Astor), Estrela, Moinhos de
Vento (depois Coral), Real, Ritz, Rex, Ópera, Marabá, Tália, Rio Branco,
Atlas, Pirajá, Castelo, Alvorada, Cavalhada, Teresópolis, Glória, Cine
Teatro Ipiranga, Colombo, Eldorado, Rosário, Rey, América, Metro,
Sarandi, Regente, Paquetá, Imperial, Scala, Miramar, Brasil e Capitólio.
Eu fui muito no Bristol e no ABC ver filme à meia-noite.
Nostalgia? Um pouco. A tecnologia muda e devasta realidades que
pareciam sólidas com o “Mont Lee” de Hollywood. Nas cidades do interior,
os cinemas morreram faz tempo. Passei a minha infância e adolescência
sonhando nos cinemas Internacional e Colombo, em Santana do Livramento.
Não existem mais. Outro dia, falei disso com jovens. Um deles foi
sincero: “Para que sala de cinema se agora temos Netflix?” Outro, mais
risonho, sacou seu celular e disparou: “Meu cinema está aqui, no bolso,
tinindo”. Tem uma vantagem indiscutível nisso: sem pipoca amanteigada. A
minha hipótese é esta: os cinemas só persistem para que as pessoas
possam comer quilos de pipoca em público. Já era.
Não voltaremos a andar de carruagem. Uma pena. Não teremos bondes
puxados a cavalo. Lamentável. Não receberemos leite em casa em garrafas.
Que saudade. Eu sou nostálgico assumido. Uma nostalgia de cinema.
Admiro tudo que não tenho. Ainda vou morar no meio do mato. Fico
perplexo vendo pessoas instaladas em salas climatizadas artificialmente
quando é possível sentar embaixo de uma árvore frondosa. Nenhuma máquina
produz o frescor de uma mangueira ou de um umbu. Quando estou num lugar
gelado com ar condicionado vou ficando angustiado, com a sensação de
que a realidade foi roubada. No lado de fora, uma alegria me invade.
Comemoro a permanência da natureza.
Assumo que há contradições em tudo o que estou dizendo. Eu me
contradigo porque ainda não encontrei a fórmula matemática da coerência
existencial. Uma sala de cinema de rua sem ar condicionado deve ser
insuportável se a temperatura andar pelos 40 graus. Por outro lado, por
que alguém liga o ar quando a temperatura externa está em 25 graus? As
pessoas são diferentes. Há quem ame o frio. Eu adoro o calor.
Temperatura média de 30 graus é o natural para mim. O que tem isso a ver
com cinema de rua? Nada. Quando alguém está conversando no bar mistura
ou não assuntos? Claro que mistura.
Ou não é papo de bar.
Paris tem muitas cidades de interior dentro dos seus muros. Porto
Alegre vai perdendo o seu charme interiorano. Como nos deixamos dominar
pela violência, precisamos da segurança dos centros comerciais. Agora
tem faculdade em shopping. É bizarro. Sinaliza que a educação seria um
produto como qualquer outro. Conversa vai, conversa vem, vamos lá, de
quem eram os filmes que a gente via nalguns desses cinemas que apagaram
as luzes e venderam os projetos em briques?
Uma turminha assim: Fellini, Bertolucci, Carlos Saura, Woody Allen,
Bergman, Antonioni, Resnais, Lelouch, Hitchcock, Polanski, Kuprick,
Scorcese, Coppola, Kurosawa, De Palma, Truffaut, Chaplin. Alguns ainda
estão por aí. E tem Quentin Tarantino na parada. Mais nostalgia. Já não
se criam clubes de futebol como antigamente, já não surgem pintores como
antes, já não aparecem bandas como Beatles e Rolling Stones, nunca mais
um Truffaut, mas tem Messi e CR7. Não me decido. Acho que tudo piorou.
Mas sei que podem me provar o contrário. Já me provaram tudo e o
contrário na bucha. Sou pós-moderno. Aceitei. Desconfio de todas as
provas e cedo diante de todos os argumentos.
Não tenho convicções. Salvo o horror a cheiro de pipoca no cinema.
E a certeza de que sombra de árvore é melhor que ar em saquinho. Pronto.
Quando a noite cai, eu me vejo caminhando para o cinema onde me
espera o mais novo filme de Jean Renoir. A porta de entrada dá para uma
rua florida onde bebo um guaraná Gazapina e vejo tudo sépia. Quando
saio, apoiado na minha bengala, sou um menino fora de época.
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* Sociólogo. Jornalista. Escritor. Prof. Universitário. Colunista do Correio do Povo.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/03/10736/no-tempo-do-cinema-de-calcada/
Imagem da Internet : Cine Vitória em Porto Alegre
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