Foto: Carla Ruas / CPMemória
Filósofo consagrado, autor de best-sellers como ‘Aprender a
Viver: Tratado de Filosofia para uso das jovens gerações’, ministro da
Educação da França de 2002 a 2004, durante a presidência de Jacques
Chirac, Luc Ferry é um dos mais acerbos críticos do movimento estudantil
de maio de 1968, que explodiu na França e se espalhou pelo mundo
mudando comportamentos e corroendo a estrutura autoritária dos costumes
vigentes. Nesta entrevista ,ainda não publicada na revista francesa de
esquerda “Le Nouvel Observateur”, no ano do cinquentenário de maio de
1968,
ele faz o grande balanço.
CS − Em maio de 1968, o que o senhor estava fazendo?
Luc Ferry – Eu tinha 17 anos, havia o ensino médio
desde o começo, não conseguia suportar o autoritarismo, o lado militar
da minha infância, e preparei minha candidatura livre ao BAC (exame de
saída do nível médio obrigatório para quem pretenda acesso ao ensino
superior), através da educação a distância. Então, eu era bastante
atípico, fora do que Agostinho Cochin chamava de “sociedades do
pensamento”, aqueles clubes que desempenharam um papel tão importante em
1789 e novamente em maio de 68. Meu pai era gaullista, ele escapou
quatro vezes dos campos nazistas onde sofreu tortura atroz e viu coisas
horríveis. Ele havia lutado na guerra civil espanhola com Malraux, de
quem ele era próximo, ao lado dos republicanos, e dificilmente eu
poderia vê-lo como um “canalha fascista”, pois tive dificuldade em
admirar o castrismo ou a Revolução cultural chinesa, com 60 milhões de
mortes…
CS − Em 1985, você publicou com Alain Renaut, uma acusação
severa contra maio de 68 − “Pensamento 68: Ensaio sobre o anti-humanismo
contemporâneo”. Trinta e três anos depois deste livro, sua opinião
evoluiu sobre o movimento de maio?
Ferry – Não, pelo contrário, tudo veio confirmar
nossa análise que não era nem de direita nem esquerda, mas, eu acho,
simplesmente lúcida. Em essência, dissemos que maio de 1968 não era uma
revolução política, mas social, e que, por trás dos discursos
revolucionários, era uma sociedade hiper-liberal que se aproximava. Eu
basicamente tomava a noção de “dessublimação repressiva” de Marcuse: os
valores e as autoridades tradicionais deveriam ser desconstruídos, por
assim dizer, liquefeitos, para que pudéssemos entrar na era do consumo
de massa. Porque nada dificulta tanto o consumo como a sublimação e os
valores tradicionais. Os jovens de 68 cantaram um discurso
marxista-leninista em concreto armado, com os famosos slogans do tipo
“eleições são armadilhas para bestas”, mas sob o disfarce de um objetivo
coletivo e revolucionário, foi a aspiração individualista de prazer e
consumo que explodiu como nunca. Além disso, os slogans disseram tudo:
“goze sem parar”, “sob os paralelepípedos, a praia”, “é proibido
proibir”, “viver sem tempo morto”, etc. A prova disso é que o sistema
político não mudou uma vírgula, ainda estamos na constituição de 1958.
Foi a sociedade que mudou e, em grande parte, graças à direita liberal.
Foi o presidente Giscard d’Estaing quem concedeu o direito de voto aos
18 anos, consagrando a vitória da juvenilismo. Foi ele quem estabeleceu a
igualdade homem/mulher no código da família, é ele novamente quem pede a
Simone Veil uma lei sobre o aborto, enfim, todas as reformas que são,
obviamente, legados de 68. Quanto aos rebeldes de 68, com poucas raras
exceções, eles foram atuar na publicidade, no cinema, nos negócios ou
mesmo Senado, na burocracia estatal e na socialdemocracia, ou até em
sindicatos patronais. Em suma, em lugares de dinheiro e poder.
CS − Que culpa o senhor atribui a maio de 68?
Ferry – Nada. Eu não sou moralista. Procuro entender
o que aconteceu, isso é tudo, e o que aconteceu foi inscrito na lógica
do capitalismo tão inteligentemente analisada por Schumpeter:
experimentamos um século XX de desconstrução de autoridades e valores
tradicionais, uma desconstrução que era essencial para o crescimento do
consumo. Se nossos filhos tivessem os valores de nossos bisavôs, eles
não estariam voltados como estão hoje para o consumo em massa.
Dessublimação, portanto, mas repressiva no sentido de que os destinava a
esses famosos “tempos de aluguel de cérebro vazio” de que falava um
ex-chefe da TF1 (principal rede privada de televisão da França).
CS − Denunciamos maio de 68 como o triunfo do individualismo.
Mas o movimento também não levou ao advento das ONGs e a uma nova
solidariedade?
Ferry – Sim, é claro, mas o que caracteriza o
engajamento em associações e ONGs é precisamente o individualismo, o
compromisso à la carte, o oposto do que foi obediência à linha dogmática
e intangível dos partidos tradicionais. Pode-se ter militância, sim,
mas entramos e saímos como e quando queremos. Deixar o Partido Comunista
Francês na década de 1960 era uma tragédia pessoal que poderia levar ao
suicídio. Estamos hoje nas antípodas da militância revolucionária.
CS − Na sua opinião, houve uma traição das promessas de maio
de 68, ou o movimento já carregava o vírus de todas as críticas que
sofreria, inclusive da sua parte?
Ferry – Não eram senões, mas a sua lógica básica, a
da inovação destrutiva. Os rebeldes de 68 foram os “cornos” da história.
Eles queriam mudar o mundo, criar uma sociedade anticapitalista, sem
classe, sem exploração e alienação, e eles deram à luz o mundo liberal
em que agora vivem como peixes na água. O mesmo acontece com a arte
contemporânea: os artistas são da esquerda, mas os compradores de
direita e, no fim, os boêmios e os burgueses se reconciliaram na figura
da inovação destrutiva.
CS − Realmente não há contribuição positiva de maio de 68?
Ferry – Novamente, tento entender, não julgar.
Agora, é óbvio que a desconstrução das autoridades tradicionais
necessariamente tem efeitos emancipatórios que eu sou o primeiro a
aprovar: a emancipação das mulheres, dos homossexuais, as leis Auroux
(aprovadas em 1984, tratam da liberdade dos trabalhadores nas empresas),
por exemplo. Eu não sou, ao contrário da maioria dos antigos
admiradores de 68, como meus camaradas Alain Finkielkraut ou Michel
Onfray, por exemplo, um antimoderno, pelo contrário. Defendi o casamento
gay mesmo nas páginas do jornal “Le Figaro” e sempre me alegro com os
avanços da liberdade. Mas seria absurdo não ver que o preço foi alto,
especialmente na escola.
CS − O senhor, que foi ministro da Educação, não acha que
maio de 1968 teve efeitos benéficos sobre o ensino e, mais geralmente,
sobre o relacionamento com as crianças?
Ferry – Não. Ao contrário, na educação é que maio de
68 foi um verdadeiro desastre, especialmente por causa da famosa
“reforma educacional”. Precisamos compreender que existem dois setores
totalmente tradicionais na educação: proficiência linguística e
civilidade. Mas é claramente nessas duas áreas que a nossa escola está
em dificuldade. Por quê? Simplesmente porque as regras da gramática,
como as de cortesia, são puramente patrimoniais, 100% tradicionais.
Nenhum de nós inventou nem a língua francesa nem as fórmulas de etiqueta
que servem para terminar uma carta. A criatividade de gramática tem um
nome: erros ortográficos. Hoje, pagamos nessas duas áreas a
desconstrução das tradições.
CS − Como explica que 50 anos depois, a nostalgia de 68, continua tão forte?
Ferry – Todos os velhos, em todas as gerações,
lamentam a perda da juventude. Laudator temporis acti, “louvor dos
tempos passados”, disse meu velho amigo Jerphagnon para se divertir com
isso. Já vemos isso nos autores gregos e latinos. Livre do totalitarismo
do Leste como dos regimes fascistas da América Latina, Espanha, Grécia e
Portugal, o mundo é infinitamente melhor hoje do que nos anos 60. Não
fosse o Estado Islâmico, o mundo atual seria quase idílico em comparação
com o de antes, então essa nostalgia não passa para mim de mais um
sinal de senilidade entre outros.
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Reportagem Por Juremir Machado da Silva / Correio do Povo impresso, Caderno de Sábado, 10/03/2018 p. 4 e 5
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/dialogos/2018/03/1573/luc-ferry-maio-de-1968-nao-era-uma-revolucao-politica-mas-social/
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