Um dos principais nomes da literatura em francês, marroquina é convidada da Flip deste ano
Seu avô não via contradição nenhuma entre observar o jejum do Ramadã
e depois se fantasiar de Papai Noel para os netos. À mesa familiar se
sentavam uma avó alsaciana que falava alemão e um tio judeu a quem a
Resistência francesa protegeu durante a Segunda Guerra Mundial.
Um avô argelino que havia sido coronel do Exército colonial convivia,
ombro a ombro, com outra avó de religião católica, mas que havia
peregrinado a Meca. Às vezes brigavam, mas quase sempre conseguiam
conviver em paz, inclusive entre risos. Leila Slimani (Rabat, 1981)
sonha com uma sociedade que se pareça com essa família.
Jornalista
e autora de vários artigos onde se opõe com virulência ao
fundamentalismo islâmico, também assinou dois romances. O último, Canção de Ninar,
que será lançado no Brasil pelo selo Tusquets nesta semana, é inspirado
no caso real de uma babá que matou as crianças de quem cuidava, ganhou
de forma surpreendente o prêmio Goncourt de 2016, fazendo com que
Slimani se tornasse da noite para o dia um dos nomes mais promissores
das letras francesas. Não à toa, Slimani é uma das convidadas da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip),
que acontecerá entre os dias 25 e 29 de julho. A entrevista a seguir
aconteceu em Paris, onde a autora, de educação muçulmana, porém
francófona – admite falar mal o idioma árabe –, chegou aos 17 anos para
prosseguir seus estudos. Amável, porém reservada, cansada da atenção
constante que desperta desde que recebeu o importante prêmio literário
francês, afirma que preferiria terminar seu novo ensaio, sobre a vida
sexual dos magrebinos, a passar os dias concedendo entrevistas. Diz ter
um lema que norteia sua vida: “Minha pena é minha arma”.
Pergunta. O que mudou com o prêmio Goncourt?
Resposta. Agora estou mais ocupada e se
presta mais atenção ao que faço. Mas, basicamente, não mudou nada. Nem
minha vida nem minha pessoa. É uma honra e uma alegria, mas tento não me
tomar por alguém mais importante do que sou. O fundamental é continuar
trabalhando. Tenho só 35 anos [agora 36] e toda uma vida pela frente,
que penso dedicar à escrita.
P. O prêmio não a fez se sentir legitimada?
R. Não. A literatura
é um ofício dominado pela dúvida. Ganhar um prêmio, por mais importante
que seja, não imuniza a pessoa contra escrever um romance muito ruim.
Por outro lado, é crucial conservar esse sentimento de ilegitimidade,
porque é um motor na escrita e na vida. É o que faz você seguir em
frente. Perder esse sentimento de impostura seria cair numa armadilha.
Para os escritores, essa angústia não é nociva.
P. Depois de receber esse reconhecimento, você declarou que via nele uma tripla dimensão simbólica, por ser mulher, jovem e magrebina.
R. Na verdade, não quero ser símbolo de
nada. Os símbolos são imóveis, como as estátuas. E eu não gosto das
estátuas. Prefiro ser um modelo ou um exemplo. Graças a esse prêmio
talvez haja quem diga a si mesma que ser uma mulher jovem de origem
estrangeira não é um obstáculo num mundo como o da literatura,
tradicionalmente dominado por homens brancos e mais velhos.
P. Você teve modelos?
R. Quando se escreve, nem sempre é bom
tê-los. Adoro Tchekhov, Zweig e Beauvoir, mas quando você se põe a
escrever não pode observá-los de longe, com admiração, como se fosse uma
criança pequena. Eu diria que meus verdadeiros modelos foram meus pais.
Ensinaram-me o que era o humanismo, o respeito pela dignidade humana.
Incutiram-me que cada ser é merecedor de respeito, seja ele branco ou
negro, velho ou jovem, homem ou mulher. Também me transmitiram o pudor
com relação às opiniões políticas e religiosas, a humildade de não
aspirar a obrigar os outros a pensarem igual a você.
P. Apesar das diferenças de estilo, forma e
estrutura, seu livro parece beber da literatura do século XIX, quando
autores como Balzac, Hugo e Zola adotaram Paris como observatório das
diferenças sociais.
R. São referências fundamentais para mim.
Graças a eles, quando eu vivia em Rabat soube o que era Paris antes de
colocar os pés nela. Para mim é impossível contar o que é Paris sem recorrer a esses autores. Mas, ao mesmo tempo, acredito que não foram uma referência direta. Não os reli para escrever Canção de Ninar,
optei por uma escrita mais depurada e menos descritiva. Mas compartilho
da ideia que Zola e Balzac apregoaram: todo romancista deve observar os
seus contemporâneos e deixar um rastro do que foi a sua época.
P. Quando você observa os seus contemporâneos, o que vê?
R. Vejo uma grande contradição entre as
palavras e os fatos. Vejo uma sociedade dividida entre as boas
intenções, favorável à diversidade e à igualdade, e uma série de
estratos muito antigos, mas plenamente vigentes: a hierarquia social, a
luta de classes, a condição das mulheres e sua maneira de confrontar a
maternidade… No livro, tentei misturar umas coisas com as outras,
sobrepor tempos e problemas diferentes, e depois ver o que acontece.
P. Considera que a desigualdade e a miséria são iguais a dois séculos atrás?
R. Certamente. Quando a gente lê livros sobre Paris ou Londres
do século XIX, tem a impressão de que a pobreza e a indignidade eram
muito maiores. Mais visíveis, e também mais terríveis. Hoje a
mortalidade infantil já não é a mesma, e as crianças são proibidas de
trabalhar, mas isso não significa que não continuem acontecendo coisas
muito preocupantes.
P. Por exemplo?
R. Acabo de voltar de San Francisco, a
cidade que, proporcionalmente, tem o maior número de indigentes do
mundo. Que um país tão rico, com tantos recursos e tanto espaço permita
isso… E o mais terrível é que eles estão aí, mas se tornaram quase
invisíveis. Dormem em plena rua, mortos de fome e drogados, enquanto
seus concidadãos passam ao largo, sorvendo um café de seis dólares
comprado no Starbucks. Existe uma incrível indiferença com uma parte da
população que vive quase como na Idade Média. Só alguns quilômetros os
separam do Vale do Silício,
um dos lugares mais ricos do mundo, de onde nos dizem sem parar que,
graças à tecnologia, todos os problemas serão erradicados. A verdade é
que para mim isso parece atroz.
P. No livro, você sugere que essa miséria social, embora nunca justifique um crime, pode ajudar a entendê-lo.
R. De fato, o termo “justificar” é
complicado. Mas o trabalho de um artista ou um escritor consiste, como
você observa, em tratar de compreender. Não existem razões simples ou
binárias para explicar o que acontece no meu livro, mas não se deve
ignorar que a miséria provoca violência e loucura, e que pode levar a
cometer atos terríveis. Quando alguém fere um animal, este se volta
contra seu agressor e é capaz de devorá-lo. Inclusive quando está
domesticado.
P. Esse discurso causa rejeição, a começar
pela classe política. Depois dos atentados de novembro de 2015 em Paris,
o então primeiro-ministro Manuel Valls disse que “tentar compreender é
uma forma de começar a desculpar”.
R. Acho muito grave, mas isso não acontece
só na França. Qual líder europeu fala hoje sobre as consequências da
pobreza? Qual político diz, na Espanha, na Itália ou na Grécia, que essa
miséria é suscetível de nos enlouquecer ou de nos levar ao suicídio? O
que sabem os nossos políticos dessa miséria?
P. E você, o que sabe dessa miséria?
R. Não a conheço na carne. Mas, como todo
escritor, não preciso tê-la vivido pessoalmente para contá-la. Trabalhei
muito tempo como jornalista e estive nos lugares. Observei e perguntei.
E, sobretudo, aprendi a escutar.
Não tenho problemas em reconhecer que sou covarde
e que calo certas coisas por medo de viver
uma surpresa desagradável
P. Você já disse que cresceu “numa bolha”. A que se refere?
R. Venho de um ambiente burguês e sem
problemas de dinheiro. Passei minha infância e adolescência em um país
pobre e quase ditatorial, o Marrocos de Hassan II,
mas não estava cega ao que me cercava. Minha mãe era médica e me falou
desde pequena dessa miséria. Desde muito pequena eu tinha consciência de
que havia gente em situação diferente, que precisava implorar para ter
direito a algo. O que quero dizer é que não éramos burgueses idiotas e
descerebrados, que também existem.
P. Você recebeu uma educação liberal, mas
com contradições. Por exemplo, disseram-lhe que você era dona do seu
corpo, mas era proibida de passear a sós com um homem…
R. Essa situação esquizofrênica é própria
de todos os países muçulmanos. Existe um abismo entre a esfera pública e
a privada. Em público, a pessoa deve se portar de maneira piedosa,
segundo a regra moral, guiada por Deus e a religião. Mas, em casa, você
pode fazer o que bem entender. Praticar sexo homossexual, usar drogas,
contratar prostitutas. Desde que os outros não saibam, não há nenhum
problema.
P. Não existe essa dupla moral também no Ocidente?
R. Claro que sim. A diferença é que em
Marrocos a pessoa vai para a cadeia por exercer a prostituição ou ser
homossexual. O preço que se paga não é comparável. Se meus pais me
proibiam certas coisas, não era por motivos morais, e sim legais.
P. Foi difícil se libertar quando chegou a Paris, aos 17 anos?
R. Não, foi um processo muito rápido. Acho
que eu estava pronta para me libertar [risos]... A maior diferença foi
sentir a liberdade na esfera pública. Sentir-me como um cidadão com uma
série de direitos que você pode fazer valer quando precisar.
P. Canção de Ninar também fala da maternidade no século XXI, da dificuldade de ser uma boa mãe e uma boa profissional. É um desafio impossível?
R. Minha geração é a primeira que cresceu
acreditando que poderia fazer tudo ao mesmo tempo. Quando você é
pequena, acredita nisso. Quando cresce, vê que é bem mais difícil. Se
for possível fazer tudo, é com muitos sacrifícios envolvidos. A energia
que dedicamos a uma atividade não podemos investi-la na outra. O que eu
me pergunto é se a igualdade real passa por viver a mesma vida que um
homem, ou se a revolução feminista
deveria implicar uma mudança global que imponha uma organização
diferente do trabalho e da família. A família continua sendo regida por
esquemas de outra época, por hierarquias sociais e modelos pós-coloniais
que deveríamos superar.
P. Seu primeiro ofício foi o de jornalista.
Você disse certa vez que o deixou por ser “um trabalho muito escravo,
no qual não se envelhece bem”.
R. Trabalhar numa redação até os 70 anos não era para mim. É um trabalho que pode enlouquecer a pessoa, porque a gente vê coisas muito fortes diariamente.
Eu sou muito sensível. Teria me quebrado ao meio. Em todo caso,
ajudou-me muito para escrever meus romances. Venho da escola da
reportagem, o que ajuda você a se apagar da paisagem para se limitar a
observar. A desenvolver um olhar agudo sobre as pessoas e os lugares. A
entender que um gesto, uma roupa ou uma maneira de se sentar podem
transmitir muita informação.
A literatura é mais necessária que nunca em um mundo
que quer transformar tudo em
uma superfície lisa
P. Você escreveu que nestes tempos
conturbados o papel da literatura consiste em fornecer “complexidade e
ambiguidade” a um mundo que as rejeita.
R. A literatura é um espaço de liberdade imenso, onde se pode dizer tudo, descolando-se das regras morais.
Nesse sentido, acho-a mais necessária que nunca. Ela é capaz de opor
resistência a um mundo que quer transformar tudo em uma superfície lisa,
articular todo conflito num registro em preto e branco. A literatura
serve para ressuscitar o humano, que sempre passa pelos tons de cinza.
P. Após publicar seu primeiro romance, você recebeu insultos nas redes sociais por parte de alguns círculos do islamismo. Acusavam-na de ser uma magrebina vendida ao Ocidente.
R. Sim, mas o que mais irritava os
fundamentalistas era que eu escrevesse ficção. Consideram que o romance é
uma invenção vil, porque se fundamenta numa mentira. Parece
surrealista, mas faz certo sentido. Quando ouço um fundamentalista
[cristão] opinar sobre a religião, sempre me fala da Virgem e do paraíso
como se tivessem existido de verdade. Não percebem que são histórias.
E, quando você se atreve a lhe dizer que a Virgem certamente não era virgem, eles enlouquecem. Não têm nenhuma percepção do que é a ficção, o que me parece terrível.
P. Você apoia o modelo ocidental?
R. Não, o que defendo é o desenvolvimento,
seja ocidental ou não. Por acaso o Ocidente é mais evoluído, mas esse
crescimento não pertence a ninguém em especial. Os ditadores árabes
entenderam que, educando as pessoas, corriam o risco de serem
derrubados. O fracasso dos países árabes se explica por essa ausência de
educação.
P. Você defende esse “islamismo iluminista” pregado por intelectuais como Abdennour Bidar e Malek Chebel?
R. Não, eu defendo o iluminismo puro. Para
mim a religião não interessa. Não é problema meu. A religião tem que ser
algo íntimo. Se uma mulher quer se trancar na sua casa e colocar uma
barraca de camping na cabeça, que faça isso. O que não quero é que me
importunem no espaço público. Quando ouço falar de islamismo iluminista
não entendo muito bem a que se referem. A religião é mais sombria que
luminosa, em especial quanto aos direitos das mulheres. E acontece em
todas as religiões, não só no islamismo. É como essa gente que se
extasia com o papa Francisco:
permitam-me recordar-lhes que ele continua sendo contra o preservativo e
o casamento dos homossexuais. Com esse islamismo iluminista acontece o
mesmo: não obrigar a sua mulher a colocar o niqab não faz de você um ilustrado.
P. Quando você enfrenta o islamismo em seus
artigos e os intitula com frases como “Fundamentalistas, odeio vocês”,
você sente medo?
R. Claro que tenho medo. Não sou uma mulher
muito corajosa. Eu me preocupo, porque tenho pais e filhos. E porque
vivo num mundo onde, às vezes, as ameaças são levadas a cabo. Não tenho
problemas em reconhecer que sou covarde e que calo certas coisas por
medo de viver uma surpresa desagradável.
P. Qual é o grande desafio deste século com relação às questões de identidade?
R. Bom, eu não acredito na identidade. Não
devemos deixar que esse conceito nos defina. Para mim, a identidade é o
que alguém transmite à geração que vem depois. Minha identidade é o que
deixarei para o meu filho e, muito em breve, para a minha filha. O que
ficará de mim são as ideias que lhes transmitirei.
Trecho do livro 'Canção de Ninar'
O bebê está morto. Bastaram alguns segundos. O médico assegurou que
ele não tinha sofrido. Estenderam-no em uma capa cinza e fecharam o
zíper sobre o corpo desarticulado que boiava em meio aos brinquedos. A
menina, por sua vez, ainda estava viva quando o socorro chegou. Resistiu
como uma fera. Encontraram marcas de luta, pedaços de pele sob as unhas
molinhas. Na ambulância que a transportava ao hospital ela estava
agitada, tomada por convulsões. Com os olhos esbugalhados, parecia
procurar o ar. Sua garganta estava cheia de sangue. Os pulmões estavam
perfurados e a cabeça tinha batido com violência contra a cômoda azul.
Fotografaram a cena do crime. A polícia colheu digitais e mediu a
área do banheiro e do quarto das crianças. No chão, o tapete de princesa
estava empapado de sangue. O trocador estava meio virado. Os brinquedos
foram levados em sacos transparentes e lacrados. Até a cômoda azul será
usada no processo.
A mãe estava em choque. Foi o que disseram os bombeiros, o que
repetiram os policiais, o que escreveram os jornalistas. Ao entrar no
quarto onde jaziam os filhos, ela soltou um grito, um grito das
profundezas, um uivo de loba. As paredes tremeram. A noite se abateu
sobre esse dia de maio. Ela vomitou e a polícia a descobriu assim, com a
roupa suja, agachada no quarto, soluçando como uma desvairada. Ela
uivou até arrebentar os pulmões. O enfermeiro fez um sinal discreto com a
cabeça e eles a ergueram, apesar de sua resistência, de seus chutes.
Eles a levantaram devagar e a jovem residente do samu lhe deu um
calmante. Era seu primeiro mês de estágio.
Também foi preciso salvar a outra. Com o mesmo profissionalismo, com
objetividade. Ela não soube morrer. Ela só soube provocar a morte. Ela
seccionou os dois pulsos e cravou a faca na garganta. Perdeu a
consciência ao pé do berço. Eles a colocaram em pé, tomaram seu pulso e
sua pressão. Eles a puseram na maca e a jovem estagiária comprimiu seu
pescoço com a mão.
Os vizinhos se reuniram na frente do prédio. Principalmente as
mulheres. É quase hora de ir buscar as crianças na escola. Elas olham a
ambulância com os olhos inchados de lágrimas. Choram e querem saber.
Ficam na ponta dos pés. Tentam descobrir o que acontece atrás do cordão
de isolamento, no interior da ambulância que arranca com todas as
sirenes ligadas. Cochicham informações umas para as outras. O rumor já
corre. Algo de ruim aconteceu com as crianças.
É um belo prédio da rue d’Hauteville, no décimo arrondissement.
Um prédio onde os vizinhos se cumprimentam, sem se conhecer, com
bons-dias calorosos. O apartamento dos Massé fica no quinto andar. É o
menor apartamento do edifício. Paul e Myriam ergueram uma divisória no
meio da sala quando o segundo filho nasceu. Eles dormem em um cômodo
apertado, entre a cozinha e a janela que dá para a rua. Myriam gosta de
móveis chineses e tapetes marroquinos. Na parede, ela pendurou gravuras
japonesas.
Hoje ela voltou mais cedo. Encurtou uma reunião e deixou para o dia
seguinte a análise de um dossiê. Num assento retrátil no metrô da linha
7, ela pensava em fazer uma surpresa para os pequenos. Chegando, passou
na padaria. Comprou uma baguete, uma sobremesa para as crianças e um
bolinho de laranja para a babá. O favorito dela.
Pensava em levá-los ao carrossel. Eles iriam juntos fazer as compras
para o jantar. Mila pediria um brinquedo, Adam chuparia uma casquinha de
pão sentado no carrinho.
Adam está morto. Mila não vai resistir.
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Reportagem Por: Álex Vicente
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