terça-feira, 13 de março de 2018

Leila Slimani: “Não se deve ignorar que a miséria provoca violência e loucura”

Leila Slimani, em Paris
Leila Slimani, em Paris

Um dos principais nomes da literatura em francês, marroquina é convidada da Flip deste ano

Seu avô não via contradição nenhuma entre observar o jejum do Ramadã e depois se fantasiar de Papai Noel para os netos. À mesa familiar se sentavam uma avó alsaciana que falava alemão e um tio judeu a quem a Resistência francesa protegeu durante a Segunda Guerra Mundial. Um avô argelino que havia sido coronel do Exército colonial convivia, ombro a ombro, com outra avó de religião católica, mas que havia peregrinado a Meca. Às vezes brigavam, mas quase sempre conseguiam conviver em paz, inclusive entre risos. Leila Slimani (Rabat, 1981) sonha com uma sociedade que se pareça com essa família.

Jornalista e autora de vários artigos onde se opõe com virulência ao fundamentalismo islâmico, também assinou dois romances. O último, Canção de Ninar, que será lançado no Brasil pelo selo Tusquets nesta semana, é inspirado no caso real de uma babá que matou as crianças de quem cuidava, ganhou de forma surpreendente o prêmio Goncourt de 2016, fazendo com que Slimani se tornasse da noite para o dia um dos nomes mais promissores das letras francesas. Não à toa, Slimani é uma das convidadas da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que acontecerá entre os dias 25 e 29 de julho. A entrevista a seguir aconteceu em Paris, onde a autora, de educação muçulmana, porém francófona – admite falar mal o idioma árabe –, chegou aos 17 anos para prosseguir seus estudos. Amável, porém reservada, cansada da atenção constante que desperta desde que recebeu o importante prêmio literário francês, afirma que preferiria terminar seu novo ensaio, sobre a vida sexual dos magrebinos, a passar os dias concedendo entrevistas. Diz ter um lema que norteia sua vida: “Minha pena é minha arma”.

Pergunta. O que mudou com o prêmio Goncourt?
Resposta. Agora estou mais ocupada e se presta mais atenção ao que faço. Mas, basicamente, não mudou nada. Nem minha vida nem minha pessoa. É uma honra e uma alegria, mas tento não me tomar por alguém mais importante do que sou. O fundamental é continuar trabalhando. Tenho só 35 anos [agora 36] e toda uma vida pela frente, que penso dedicar à escrita.

P. O prêmio não a fez se sentir legitimada?
R. Não. A literatura é um ofício dominado pela dúvida. Ganhar um prêmio, por mais importante que seja, não imuniza a pessoa contra escrever um romance muito ruim. Por outro lado, é crucial conservar esse sentimento de ilegitimidade, porque é um motor na escrita e na vida. É o que faz você seguir em frente. Perder esse sentimento de impostura seria cair numa armadilha. Para os escritores, essa angústia não é nociva.

P. Depois de receber esse reconhecimento, você declarou que via nele uma tripla dimensão simbólica, por ser mulher, jovem e magrebina.
R. Na verdade, não quero ser símbolo de nada. Os símbolos são imóveis, como as estátuas. E eu não gosto das estátuas. Prefiro ser um modelo ou um exemplo. Graças a esse prêmio talvez haja quem diga a si mesma que ser uma mulher jovem de origem estrangeira não é um obstáculo num mundo como o da literatura, tradicionalmente dominado por homens brancos e mais velhos.

P. Você teve modelos?
R. Quando se escreve, nem sempre é bom tê-los. Adoro Tchekhov, Zweig e Beauvoir, mas quando você se põe a escrever não pode observá-los de longe, com admiração, como se fosse uma criança pequena. Eu diria que meus verdadeiros modelos foram meus pais. Ensinaram-me o que era o humanismo, o respeito pela dignidade humana. Incutiram-me que cada ser é merecedor de respeito, seja ele branco ou negro, velho ou jovem, homem ou mulher. Também me transmitiram o pudor com relação às opiniões políticas e religiosas, a humildade de não aspirar a obrigar os outros a pensarem igual a você.

P. Apesar das diferenças de estilo, forma e estrutura, seu livro parece beber da literatura do século XIX, quando autores como Balzac, Hugo e Zola adotaram Paris como observatório das diferenças sociais.
Leila Slimani: “Não se deve ignorar que a miséria provoca violência e loucura”
R. São referências fundamentais para mim. Graças a eles, quando eu vivia em Rabat soube o que era Paris antes de colocar os pés nela. Para mim é impossível contar o que é Paris sem recorrer a esses autores. Mas, ao mesmo tempo, acredito que não foram uma referência direta. Não os reli para escrever Canção de Ninar, optei por uma escrita mais depurada e menos descritiva. Mas compartilho da ideia que Zola e Balzac apregoaram: todo romancista deve observar os seus contemporâneos e deixar um rastro do que foi a sua época.

P. Quando você observa os seus contemporâneos, o que vê?
R. Vejo uma grande contradição entre as palavras e os fatos. Vejo uma sociedade dividida entre as boas intenções, favorável à diversidade e à igualdade, e uma série de estratos muito antigos, mas plenamente vigentes: a hierarquia social, a luta de classes, a condição das mulheres e sua maneira de confrontar a maternidade… No livro, tentei misturar umas coisas com as outras, sobrepor tempos e problemas diferentes, e depois ver o que acontece.

P. Considera que a desigualdade e a miséria são iguais a dois séculos atrás?
R. Certamente. Quando a gente lê livros sobre Paris ou Londres do século XIX, tem a impressão de que a pobreza e a indignidade eram muito maiores. Mais visíveis, e também mais terríveis. Hoje a mortalidade infantil já não é a mesma, e as crianças são proibidas de trabalhar, mas isso não significa que não continuem acontecendo coisas muito preocupantes.

P. Por exemplo?
R. Acabo de voltar de San Francisco, a cidade que, proporcionalmente, tem o maior número de indigentes do mundo. Que um país tão rico, com tantos recursos e tanto espaço permita isso… E o mais terrível é que eles estão aí, mas se tornaram quase invisíveis. Dormem em plena rua, mortos de fome e drogados, enquanto seus concidadãos passam ao largo, sorvendo um café de seis dólares comprado no Starbucks. Existe uma incrível indiferença com uma parte da população que vive quase como na Idade Média. Só alguns quilômetros os separam do Vale do Silício, um dos lugares mais ricos do mundo, de onde nos dizem sem parar que, graças à tecnologia, todos os problemas serão erradicados. A verdade é que para mim isso parece atroz.

P. No livro, você sugere que essa miséria social, embora nunca justifique um crime, pode ajudar a entendê-lo.
R. De fato, o termo “justificar” é complicado. Mas o trabalho de um artista ou um escritor consiste, como você observa, em tratar de compreender. Não existem razões simples ou binárias para explicar o que acontece no meu livro, mas não se deve ignorar que a miséria provoca violência e loucura, e que pode levar a cometer atos terríveis. Quando alguém fere um animal, este se volta contra seu agressor e é capaz de devorá-lo. Inclusive quando está domesticado.

P. Esse discurso causa rejeição, a começar pela classe política. Depois dos atentados de novembro de 2015 em Paris, o então primeiro-ministro Manuel Valls disse que “tentar compreender é uma forma de começar a desculpar”.
R. Acho muito grave, mas isso não acontece só na França. Qual líder europeu fala hoje sobre as consequências da pobreza? Qual político diz, na Espanha, na Itália ou na Grécia, que essa miséria é suscetível de nos enlouquecer ou de nos levar ao suicídio? O que sabem os nossos políticos dessa miséria?

P. E você, o que sabe dessa miséria?
R. Não a conheço na carne. Mas, como todo escritor, não preciso tê-la vivido pessoalmente para contá-la. Trabalhei muito tempo como jornalista e estive nos lugares. Observei e perguntei. E, sobretudo, aprendi a escutar.

 Não tenho problemas em reconhecer que sou covarde 
e que calo certas coisas por medo de viver 
uma surpresa desagradável

P. Você já disse que cresceu “numa bolha”. A que se refere?
R. Venho de um ambiente burguês e sem problemas de dinheiro. Passei minha infância e adolescência em um país pobre e quase ditatorial, o Marrocos de Hassan II, mas não estava cega ao que me cercava. Minha mãe era médica e me falou desde pequena dessa miséria. Desde muito pequena eu tinha consciência de que havia gente em situação diferente, que precisava implorar para ter direito a algo. O que quero dizer é que não éramos burgueses idiotas e descerebrados, que também existem.

P. Você recebeu uma educação liberal, mas com contradições. Por exemplo, disseram-lhe que você era dona do seu corpo, mas era proibida de passear a sós com um homem…
R. Essa situação esquizofrênica é própria de todos os países muçulmanos. Existe um abismo entre a esfera pública e a privada. Em público, a pessoa deve se portar de maneira piedosa, segundo a regra moral, guiada por Deus e a religião. Mas, em casa, você pode fazer o que bem entender. Praticar sexo homossexual, usar drogas, contratar prostitutas. Desde que os outros não saibam, não há nenhum problema.

P. Não existe essa dupla moral também no Ocidente?
R. Claro que sim. A diferença é que em Marrocos a pessoa vai para a cadeia por exercer a prostituição ou ser homossexual. O preço que se paga não é comparável. Se meus pais me proibiam certas coisas, não era por motivos morais, e sim legais.

P. Foi difícil se libertar quando chegou a Paris, aos 17 anos?
R. Não, foi um processo muito rápido. Acho que eu estava pronta para me libertar [risos]... A maior diferença foi sentir a liberdade na esfera pública. Sentir-me como um cidadão com uma série de direitos que você pode fazer valer quando precisar.

P. Canção de Ninar também fala da maternidade no século XXI, da dificuldade de ser uma boa mãe e uma boa profissional. É um desafio impossível?
R. Minha geração é a primeira que cresceu acreditando que poderia fazer tudo ao mesmo tempo. Quando você é pequena, acredita nisso. Quando cresce, vê que é bem mais difícil. Se for possível fazer tudo, é com muitos sacrifícios envolvidos. A energia que dedicamos a uma atividade não podemos investi-la na outra. O que eu me pergunto é se a igualdade real passa por viver a mesma vida que um homem, ou se a revolução feminista deveria implicar uma mudança global que imponha uma organização diferente do trabalho e da família. A família continua sendo regida por esquemas de outra época, por hierarquias sociais e modelos pós-coloniais que deveríamos superar.

P. Seu primeiro ofício foi o de jornalista. Você disse certa vez que o deixou por ser “um trabalho muito escravo, no qual não se envelhece bem”.
R. Trabalhar numa redação até os 70 anos não era para mim. É um trabalho que pode enlouquecer a pessoa, porque a gente vê coisas muito fortes diariamente. Eu sou muito sensível. Teria me quebrado ao meio. Em todo caso, ajudou-me muito para escrever meus romances. Venho da escola da reportagem, o que ajuda você a se apagar da paisagem para se limitar a observar. A desenvolver um olhar agudo sobre as pessoas e os lugares. A entender que um gesto, uma roupa ou uma maneira de se sentar podem transmitir muita informação.

 A literatura é mais necessária que nunca em um mundo 
que quer transformar tudo em 
uma superfície lisa

P. Você escreveu que nestes tempos conturbados o papel da literatura consiste em fornecer “complexidade e ambiguidade” a um mundo que as rejeita.
R. A literatura é um espaço de liberdade imenso, onde se pode dizer tudo, descolando-se das regras morais. Nesse sentido, acho-a mais necessária que nunca. Ela é capaz de opor resistência a um mundo que quer transformar tudo em uma superfície lisa, articular todo conflito num registro em preto e branco. A literatura serve para ressuscitar o humano, que sempre passa pelos tons de cinza.

P. Após publicar seu primeiro romance, você recebeu insultos nas redes sociais por parte de alguns círculos do islamismo. Acusavam-na de ser uma magrebina vendida ao Ocidente.
R. Sim, mas o que mais irritava os fundamentalistas era que eu escrevesse ficção. Consideram que o romance é uma invenção vil, porque se fundamenta numa mentira. Parece surrealista, mas faz certo sentido. Quando ouço um fundamentalista [cristão] opinar sobre a religião, sempre me fala da Virgem e do paraíso como se tivessem existido de verdade. Não percebem que são histórias. E, quando você se atreve a lhe dizer que a Virgem certamente não era virgem, eles enlouquecem. Não têm nenhuma percepção do que é a ficção, o que me parece terrível.

P. Você apoia o modelo ocidental?
R. Não, o que defendo é o desenvolvimento, seja ocidental ou não. Por acaso o Ocidente é mais evoluído, mas esse crescimento não pertence a ninguém em especial. Os ditadores árabes entenderam que, educando as pessoas, corriam o risco de serem derrubados. O fracasso dos países árabes se explica por essa ausência de educação.

P. Você defende esse “islamismo iluminista” pregado por intelectuais como Abdennour Bidar e Malek Chebel?
R. Não, eu defendo o iluminismo puro. Para mim a religião não interessa. Não é problema meu. A religião tem que ser algo íntimo. Se uma mulher quer se trancar na sua casa e colocar uma barraca de camping na cabeça, que faça isso. O que não quero é que me importunem no espaço público. Quando ouço falar de islamismo iluminista não entendo muito bem a que se referem. A religião é mais sombria que luminosa, em especial quanto aos direitos das mulheres. E acontece em todas as religiões, não só no islamismo. É como essa gente que se extasia com o papa Francisco: permitam-me recordar-lhes que ele continua sendo contra o preservativo e o casamento dos homossexuais. Com esse islamismo iluminista acontece o mesmo: não obrigar a sua mulher a colocar o niqab não faz de você um ilustrado.

P. Quando você enfrenta o islamismo em seus artigos e os intitula com frases como “Fundamentalistas, odeio vocês”, você sente medo?
R. Claro que tenho medo. Não sou uma mulher muito corajosa. Eu me preocupo, porque tenho pais e filhos. E porque vivo num mundo onde, às vezes, as ameaças são levadas a cabo. Não tenho problemas em reconhecer que sou covarde e que calo certas coisas por medo de viver uma surpresa desagradável.

P. Qual é o grande desafio deste século com relação às questões de identidade?
R. Bom, eu não acredito na identidade. Não devemos deixar que esse conceito nos defina. Para mim, a identidade é o que alguém transmite à geração que vem depois. Minha identidade é o que deixarei para o meu filho e, muito em breve, para a minha filha. O que ficará de mim são as ideias que lhes transmitirei.

Trecho do livro 'Canção de Ninar'

O bebê está morto. Bastaram alguns segundos. O médico as­segurou que ele não tinha sofrido. Estenderam-no em uma capa cinza e fecharam o zíper sobre o corpo desarticulado que boiava em meio aos brinquedos. A menina, por sua vez, ainda estava viva quando o socorro chegou. Resistiu como uma fera. Encontraram marcas de luta, pedaços de pele sob as unhas molinhas. Na ambulância que a transportava ao hospital ela estava agitada, tomada por convulsões. Com os olhos esbu­galhados, parecia procurar o ar. Sua garganta estava cheia de sangue. Os pulmões estavam perfurados e a cabeça tinha bati­do com violência contra a cômoda azul.

Fotografaram a cena do crime. A polícia colheu digitais e mediu a área do banheiro e do quarto das crianças. No chão, o tapete de princesa estava empapado de sangue. O trocador estava meio virado. Os brinquedos foram levados em sacos transparentes e lacrados. Até a cômoda azul será usada no processo.

A mãe estava em choque. Foi o que disseram os bombei­ros, o que repetiram os policiais, o que escreveram os jorna­listas. Ao entrar no quarto onde jaziam os filhos, ela soltou um grito, um grito das profundezas, um uivo de loba. As pa­redes tremeram. A noite se abateu sobre esse dia de maio. Ela vomitou e a polícia a descobriu assim, com a roupa suja, agachada no quarto, soluçando como uma desvairada. Ela uivou até arrebentar os pulmões. O enfermeiro fez um sinal discreto com a cabeça e eles a ergueram, apesar de sua resis­tência, de seus chutes. Eles a levantaram devagar e a jovem residente do samu lhe deu um calmante. Era seu primeiro mês de estágio.

Também foi preciso salvar a outra. Com o mesmo profis­sionalismo, com objetividade. Ela não soube morrer. Ela só soube provocar a morte. Ela seccionou os dois pulsos e cravou a faca na garganta. Perdeu a consciência ao pé do berço. Eles a colocaram em pé, tomaram seu pulso e sua pressão. Eles a puseram na maca e a jovem estagiária comprimiu seu pesco­ço com a mão.

Os vizinhos se reuniram na frente do prédio. Principal­mente as mulheres. É quase hora de ir buscar as crianças na escola. Elas olham a ambulância com os olhos inchados de lá­grimas. Choram e querem saber. Ficam na ponta dos pés. Ten­tam descobrir o que acontece atrás do cordão de isolamento, no interior da ambulância que arranca com todas as sirenes li­gadas. Cochicham informações umas para as outras. O rumor já corre. Algo de ruim aconteceu com as crianças.

É um belo prédio da rue d’Hauteville, no décimo arrondis­sement. Um prédio onde os vizinhos se cumprimentam, sem se conhecer, com bons-dias calorosos. O apartamento dos Massé fica no quinto andar. É o menor apartamento do edi­fício. Paul e Myriam ergueram uma divisória no meio da sala quando o segundo filho nasceu. Eles dormem em um cômodo apertado, entre a cozinha e a janela que dá para a rua. Myriam gosta de móveis chineses e tapetes marroquinos. Na parede, ela pendurou gravuras japonesas.

Hoje ela voltou mais cedo. Encurtou uma reunião e deixou para o dia seguinte a análise de um dossiê. Num assento re­trátil no metrô da linha 7, ela pensava em fazer uma surpresa para os pequenos. Chegando, passou na padaria. Comprou uma baguete, uma sobremesa para as crianças e um bolinho de laranja para a babá. O favorito dela.

Pensava em levá-los ao carrossel. Eles iriam juntos fazer as compras para o jantar. Mila pediria um brinquedo, Adam chuparia uma casquinha de pão sentado no carrinho.

Adam está morto. Mila não vai resistir.
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Reportagem Por: 

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