segunda-feira, 5 de março de 2018

Só ouvi verdades

Adolescentes digitam em seus celulares

Adolescentes de hoje se tornando sujeitos políticos em plena era da manipulação da informação - Alessandro Shinoda/Folhapres

 Alessandra Orofino*

Adolescentes de hoje não terão dificuldades em duvidar do que é falso, e sim em acreditar no que é verdadeiro

Tenho nada menos que três irmãos nascidos depois de 1999 —a famosa geração Z. São os adolescentes de hoje, crescidos sob sucessivas administrações do PT. Não por acaso, associam o establishment político quase exclusivamente com a esquerda. Estão se tornando sujeitos políticos em plena era da manipulação da informação. Estão se tornando sexualmente ativos em plena era do nude e da pornografia falsificada, capaz de colocar o rosto de praticamente qualquer pessoa em cenas de pornô pesado, com verossimilhança impressionante. Estão se tornando consumidores em plena era dos serviços sob demanda —a entrega de comida que chega em 20 minutos, o carro que chega em três. 

É uma geração fascinante, ultraempreendedora, politizada, e cada vez menos disposta a aceitar padrões rígidos de comportamento. É também uma geração que terá que trabalhar duro para construir um referencial de realidade factual sobre o qual possa discutir saídas possíveis para um futuro incerto, ameaçado por mudanças brutais na estrutura do trabalho, pelo colapso ambiental em escala planetária, e pela política do ódio. 

Engana-se quem acha que essa dificuldade em discernir realidade e mentira se traduzirá simplesmente na crença cada vez mais disseminada no que é falso. Os adolescentes de hoje estão crescendo com as “fake news”. Eles não terão dificuldades em duvidar do que é mentira. Sua maior dificuldade será, justamente, em acreditar no que é verdadeiro. 

Essa semana indiquei a amigos e familiares que doassem para os White Helmets —uma organização civil voluntária que resgata pessoas presas em escombros depois de bombardeios, na Síria. Eles foram o tema de um documentário que ganhou o Oscar no ano passado. O cinegrafista responsável pela obra não pôde comparecer à cerimônia porque o governo sírio cancelou seu passaporte. Logo depois de fazer meu post, amigos começaram a me alertar para supostas ligações entre os White Helmets e organizações terroristas, além de financiamento suspeito. Fui averiguar. E descobri que os White Helmets estão sendo vítimas de uma enorme campanha de desinformação que parece ter entre seus principais veículos o RT News, um site russo que continuamente publica informações falsas e apoiou a campanha de Donald Trump. Claro que não dá pra ter 100% de certeza de que a organização é idônea. Mas não encontrei nenhum artigo, vídeo ou post —entre dezenas— que trouxesse evidências de seus supostos escândalos. Pelo contrário. Publicações jornalísticas sérias em vários países já refutaram as alegações. “Na dúvida”, disseram meus amigos, “é melhor não doar pra eles”. 

Na dúvida, veremos uma geração que duvida de tudo. Inclusive do que é verdadeiro. O que é ainda mais perigoso do que acreditar no que é falso. Nunca o papel do jornalista foi tão importante, apesar do declínio da indústria. E nunca os jornalistas foram confrontados a uma geração de leitores tão pouco disposta a diferenciar propaganda de informação. Não é à toa que, em que pese suas muitas qualidades, essa seja a geração que quer eleger Bolsonaro. Não vai ser fácil convencê-la com fatos. Na dúvida, acredita-se em quem é capaz de gerar mais identificação, empatia, e reforçar preconceitos preexistentes. Uma combinação perigosa para uma juventude que, por responsabilidade de gerações anteriores, terá que encarar a difícil tarefa de salvar o mundo. E que talvez ainda não acredite que o mundo precise —ou possa— ser salvo.
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* É cofundadora da ONG Meu Rio e diretora da organização Nossas. Curadora do blog #AgoraÉQueSãoElas. 
Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/alessandra-orofino/2018/03/so-ouvi-verdades.shtml

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