Por Ciro Marcondes Filho*
11/12/2021
Caderno de Sábado
‘Jean Baudrillard colocava-se fora do jogo. E isso lhe autorizava a dizer o que quisesse’ | Foto: Fronteres / Divulgação / CP
Jean Baudrillard morreu em 2007. Ciro Marcondes Filho, professor da Universidade de São Paulo e um dos grandes intelectuais brasileiros da Comunicação, faleceu em 2020. Ele escreveu, em 2009, um longo ensaio sobre seu amigo francês. O Caderno de Sábado publica agora um fragmento desse texto para marcar a passagem dos 40 anos de Simulacros e simulação, livro mais famoso de Baudrillard, que inspirou o filme Matrix
Jean
Baudrillard negou-se a praticar a sociologia convencional: “Eu forneço uma
visão pouco conveniente da evolução de um sistema – o nosso -, mas sempre achei
que nele se aninhava uma energia inversa, aquela que está na fonte da
ambivalência e que cada um pode explorar. Nada a ver com a consciência, o bom
senso, a moralidade: todos nós dispomos de uma força de ambivalência superior
ao pensamento crítico, absolutamente catastrófica, isto é, capaz de fazer mudar
as formas estáveis” (Entrevista à Télérama).
Enquanto o pensamento crítico tem uma transcendência a defender, diz ele, o
pensamento radical já perdeu isso, prefere realizar um desafio imanente ao
mundo real do qual faz parte, do qual é imagem, imagem catastrófica ou, em todo
caso, paradoxal, aleatória, virtual. Baudrillard não apostava, portanto, na
esperança; antes, nutria um fascínio e um desejo de entrar nessa história e aí,
dentro dela, tentar ver as coisas de forma clara. “Se o pensamento não se afina
com esse diapasão, ele não terá nada a dizer e não será outra coisa senão uma
paródia da atualidade. Eu digiro mal essa história de ser tratado como
pessimista, niilista, no sentido pejorativo do termo. Tudo bem, é a lei do meio
intelectual. Mas, no fundo, eu não teria o direito de dizer tudo que eu digo se
não estivesse, de certo modo, fora do jogo” (idem).
Baudrillard colocava-se fora do jogo. E isso lhe autorizava a dizer o que quisesse. Uma liberdade conquistada no interior de um espaço de esquerda, que, também ele, impõe suas regras sobre o que dizer, o que pensar, o que poder declarar. Ficar de fora, ao contrário, é praticar uma cumplicidade secreta, tanto com o que há de melhor quanto com o que há de pior no sistema, dizia ele. Uma postura teórica que ele classificava como “Síndrome de Estocolmo”: refém dos objetos, a teoria, para chegar a qualquer pista inédita, não tem outra escolha senão assemelhar-se a eles, esposá-los, tornar-se sedutora se eles praticam a sedução, dupla se eles jogam com os simulacros.
Estar fora do jogo também supõe o esforço de um pensamento que se coloca além de todas as demais posições, que incorpora a dimensão do irracional, a única capaz de alterar as formas que mantemos, segundo ele, em “piloto automático”. Nem criticar, nem defender, mas desafiar, desafiar o sistema em sua própria lógica. Apesar de tudo acontecer numa velocidade estonteante, há certamente um momento dessa aceleração em que as formas começam a se desfazer ou, então, a seguir numa direção oposta à que estavam seguindo.
Lembrando-nos
do conceito nietzscheano de força, Baudrillard defendia que no fundo de nós
repousa uma energia revolucionária bruta, selvagem, irracional, não programada
e não assimilável ao sistema. Ele vivia atormentado em busca de um mundo onde a
realidade ainda sobrevivia e de forma distinta daquela apresentada em imagens,
onde a troca ainda é possível opondo-se à realidade apresentada: “a tela é uma
superfície em forma de abismo e não de espelho, algo no qual perdemos nossa
imagem e toda imaginação”.
Desta maneira, a coisa deveria ser tomada em sua singularidade, em sua
literalidade, senão cairíamos na escrita moral da história (p. 45). A coisa
deve ser capturada quando aparece, na descontinuidade, na metamorfose. Isso,
intencionalmente ou não, o liga ao pensamento fenomenológico, avesso às
releituras transformantes dos eventos, que os reduz a fatos terminados,
petrificados, exemplos infinitamente permutáveis para jogos ideológicos
diversos. Não, Baudrillard sugeria, antes, respeitar a precedência das coisas,
dos objetos, da astúcia maligna e secreta de seu aparecer ao qual temos que nos
submeter se tivermos a pretensão de querer conhecê-lo.
O fenômeno só tem sentido em sua epifania. “Diante de tal aparição, deixa de haver o distanciamento do juízo, creio que isso é da ordem do devir e da metamorfose. Durante um lapso de tempo bastante breve, tornamo-nos essa coisa, esse objeto ou esse instante, e, em seguida, reinstala-se a dimensão do ser, se posso me exprimir assim, em todo caso, da continuidade. Durante esse breve período, há descontinuidade e metamorfose... Convém conceber uma regra do jogo proporcional a isso, que torne o jogo efetivamente possível, que permita devir; devir que é algo diferente da mudança e se acompanha da perda da identidade...”.
E o que é a comunicação e, mais ainda, a apreensão do fenômeno comunicacional, senão exatamente isso, esta dissolução do juízo, essa paralisia de nossos mecanismos conceituadores, classificadores, alinhadores, dominadores do real? Tornamo-nos essa coisa, dissolvemo-nos nela, realizamos sua dança, permitimos que seu véu nos encubra e nos conduza. É um movimento, um girar no acontecimento, um entregar-se a seu fascínio que já conhecíamos em Henri Bergson e que Baudrillard aqui recupera nos instalando no movimento, no rio de Heráclito, nessa vertigem da coisa para que possamos, pelo menos uma vez, poder senti-la mais do que analisá-la, percebê-la entrando em nossos poros mais do que a diagnosticando.
*: Pós-doutor pela Universidade de Grenoble. Morto em 8/11/2020
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