segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

O ministro do STF, Deus e os Beatles

Joaquim Ferreira dos Santos*

Os Beatles durante a filmagem de "Get back"

É como se a mão esquerda de Deus, para horror do novo ministro evangélico do STF, resolvesse tocar rock and roll num baixo elétrico. O registro desse momento está em “Get back”, o documentário de oito horas de duração que a Disney+ estreou semana passada sobre os bastidores da gravação do disco “Let it be” pelos Beatles.

Era janeiro de 1969, os garotos de Liverpool, que dez anos antes se uniram felizes para brincar de fazer música, já não se aguentavam depois de tantas horas de estúdios, tanta grana, mulher complicada e sucesso por todos os lados. A máquina insaciável do showbiz queria mais.

Lá estavam eles em suas novas versões adultas, riffs de ódio e ressentimento, com a necessidade de criar uma música para cumprir o prazo negociado com a gravadora e lançar um disco nos próximos dias. Tinham quase nada na gaveta. Estavam dedicados o tempo todo a se espinafrarem, cada um com seu rancor milionário, e eis que os executivos entram no estúdio pedindo a encomenda para ontem.

É neste momento que Paul McCartney pega o baixo elétrico com que ajudou a construir a civilização musical dos anos 60 e dá a arrepiante aula prática de um dos mistérios da humanidade – o processo de criação de um artista.  

Esta cena de Paul, estimulado pelo sopro da grande musa, o prazo de entrega, será obrigatória a partir de agora em todo curso de arte. É como se Rodin tivesse se deixado filmar quebrando o bloco de mármore até surgir “O Beijo”, Matisse revelasse como experimentou os pigmentos até chegar no seu azul clássico, ou Guimarães Rosa, sílaba por sílaba, guiasse o aluno de escrita criativa pelas veredas dos neologismos.

John Lennon mais uma vez está atrasado para o ensaio, Ringo Starr boceja, George Harrison remói ser um gênio incompreendido, tudo isso em closes captados pelas câmeras cruéis do ótimo documentário. No estúdio da Apple em janeiro de 1969, aquela placa de “Homens trabalhando” seria no singular.

Paul McCartney começa, com evidente sensação de desespero, a tocar qualquer coisa no baixo. Não consegue manter uma linha de ritmo ou melodia porque, mal elas se insinuam, desiste insatisfeito, parte para outro caminho, ao mesmo tempo que a boca murmura algo que ilumine e faça sentido. Um caos. Por muitos minutos o resultado é zero. Ruídos, simplesmente, nada mais. Se houvesse ao lado uma lata de lixo, estaria cheia de notas musicais – mas Paul continua espancando o baixo, na certeza universal de que nessas horas o pânico ajuda muito a resolver o problema.

Qualquer livro de autoajuda tem a história do pedreiro. Ele dá uma martelada, vinte marteladas, mas só lá pela nonagésima nona a pedra se desfaz – e a moral da coisa é que foi a insistência, o acúmulo de marteladas, não aquela última, que realizou o trabalho. Arte é assim. Só amadores acreditam em inspiração.

De repente, no estúdio em Londres, vai surgindo uma melodia que o mundo cantaria para sempre. Paul insiste no acúmulo de notas, na memória de canções que ouviu pela vida, da experiência com tantas pedreiras da existência, e em meio a esse rascunho desesperado de referências começam a ficar claros os primeiros acordes do nascimento de “Get back”, um dos clássicos dos Beatles. É um registro assombroso da dedicação e do talento humanos – mas quem quiser falar de Deus fique à vontade.

* Nasceu no Rio e é jornalista há 50 anos, tendo trabalhado nos principais jornais e revistas do país. Publicou dez livros, entre eles as biografias de Leila Diniz, Antonio Maria e Zózimo Barrozo do Amaral. Define-se acima de tudo como repórter.

Fonte:  https://blogs.oglobo.globo.com/joaquim-ferreira-dos-santos/post/o-ministro-do-stf-deus-e-os-beatles.html

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