A economia em frangalhos e a raiva ainda pulsante na sociedade, pondera, são obstáculos para o enfraquecimento da polarização
Por Alisson Matos | 08.12.2021
O filósofo Renato Janine Ribeiro aponta a reconstrução de laços sociais como um dos maiores desafios que o sucessor do presidente Jair Bolsonaro enfrentará. Em entrevista a CartaCapital, o escritor, que preside a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, cita o desmonte do Estado, a economia em frangalhos e o ódio ainda presente na sociedade como obstáculos para o enfraquecimento da polarização no País.
Ribeiro, que neste mês lança o livro ‘Duas ideias filosóficas e a pandemia’, pela Estação Liberdade, vê a ascensão do bolsonarismo como resultado de uma “promoção da ignorância que fez com que o ódio prospere”.
Na conversa, o professor critica o que chama de demonização do PT, as campanhas contra a política e a insistência no discurso de que todos os males são frutos da corrupção.
“No Brasil houve uma união de ignorância, arrogância e raiva”, diz Ribeiro na entrevista por vídeo, que vai ao ar na próxima semana no canal de CartaCapital no Youtube.
“As pessoas que falam mal da política e que dizem que todos os políticos são ruins têm o talento de escolher o pior dos piores”, afirma. “Quando se nivela tudo, acaba escolhendo os piores”, acrescenta.
O ex-ministro da Educação enxerga no ex-presidente Lula alguém com perfil para liderar o País para tempos de arrefecimento do ódio. “Vamos precisar de alguém que tenha a capacidade que vejo no Lula e pouco nos outros”, declara.
“Se a gente tiver a eleição de um candidato democrático, eu penso sobretudo no ex-presidente Lula, que reconstrua a maquina de estado e desenvolva políticas de inclusão social, parte do ódio vai sumir porque é abastecido por essa falta de futuro“, diz.
Para refletir sobre a pandemia, Ribeiro recorreu ao filósofo francês Jean-Jacques Rousseau e ao alemão Karl Marx para escrever o seu novo trabalho.
Leia a entrevista completa. As perguntas foram adaptadas para melhor compreensão.
CartaCapital: Professor, por que discutir filosofia e pandemia?
Renato Janine Ribeiro: O que me interessou muito neste período pandêmico foi ver quais são as ideias filosóficas que ajudam a entender o que aconteceu nesta época. Eu pensei primeiro em uma ideia de [Jean-Jacques] Rousseau, de que não é o conhecimento e a razão que fazem as pessoas melhorarem e sim a piedade, que eu traduzi como compaixão. Ou seja, o quanto você sente empatia por um ser vivo que está sofrendo. Quando Rousseau teoriza isso é que começa a mudar a sensibilidade da sociedade, em uma época em que o entretenimento público era, por muitas vezes, assistir a um suplício extremamente cruel. A compaixão que foi um fator importante na pandemia. Se não a houvesse, iriamos deixar todo mundo morrer.
A segunda ideia filosófica é de Karl Marx, que tem a seguinte frase: ‘A humanidade somente se coloca os problemas que ela pode resolver’. Essa pandemia ocorre em um período que se tu uma tecnologia, que é a internet, que permite um distanciamento físico que há alguns anos não era possível.
Se não houvesse esse avanço, não teríamos sido capazes de segurar boa parte da escolaridade, da comunicação, do setor de serviços. É uma ideia que se convém perguntar, porque tivemos pandemias no passado que foram muito cruéis. A peste negra por volta de 1350 matou um 1/3 dos povos afetados. Será que Marx está errado ou a frase está correta? A massiva mortalidade do século XIV não foi colocada como problema porque não tinha solução. Formular algo como problema é fazer uma pergunta que tenha resposta.
CC: O Bolsonaro nos levou a um período pré-Rousseau?
RJR: Uma questão importante é por que existe um sentimento de crueldade e de falta de empatia em uma parte latente da sociedade que desperta eventualmente. Foi assim no nazismo, com Trump, com o Brexit e com o bolsonarismo.
Havia eleitores que votavam no PSDB, mas que deviam achar o partido progressista demais e, cheios de ódio e raiva, encontraram agora o seu representante. Outra parte, sem ter tanto ódio e raiva, aderiu por causa de toda propaganda antipetista e antipolítica que a gente viveu. Havia sentimentos de ódio guardados que vieram à tona.
Quando se tem um período de perda de poder aquisitivo e sente que não há futuro, a tendência natural é procurar culpado e não achar que foi fruto de erro. É achar que houve maldade e no Brasil o nome dessa maldade é corrupção. No Brasil houve uma união de ignorância, arrogância e raiva.
CC: Esse ódio elegeu Bolsonaro?
RJR: Sim. O primeiro ponto é que tiraram uma presidente da República com acusações falsas e, a partir daí, se pode tirar qualquer um com qualquer critério. Ficar no poder não é mais prova de honestidade, como se viu com Temer e se vê com Bolsonaro. Daí vem uma espécie de atmosfera: se não existe Constituição e legalidade, e o STF não cumpre o seu papel, tudo é permitido e cada um faz o que quer.
O PSDB se subordinou ao Eduardo Cunha e acabou virando apêndice da extrema direita. A centro-direita no Brasil acabou. E a extrema-direita continua bem posicionada para ir ao segundo turno com Bolsonaro ou Moro. Tudo isso foi construído porque o PSDB decidiu se subordinar ao extremismo. E não tinha nada de combater a corrupção, era para combater uma fantasia que foi montada por horas e horas de TV Globo e manchetes da imprensa. O demônio tinha virado o PT e era preciso exorcizá-lo.
Veio o desastre de todos esses anos e continuam demonizando a política. As pessoas que falam mal da política, dizem que todos os políticos são ruins, têm o talento de escolher o pior dos piores. Na hora de votar, quando se diz que todos são iguais, se escolhe o pior possível. Quando se nivela tudo, acaba escolhendo os piores.
CC: Houve um fator determinante?
RJR: A crise econômica em 2008, que ainda tem efeitos como a redução de produção e de renda. No Brasil, a crise chegou mesmo por volta de 2014. Com o passar dos anos, as pessoas passaram a se sentir sem perspectiva e, quando se sentem sem futuro, procuram um culpado.
Você vai dizer para uma pessoa do interior do Brasil que a crise é do sistema hipotecário dos Estados Unidos? Isso é difícil de entender. Agora, se disser que ele está mal porque tem homossexual na rua, porque tem um governo do PT e porque as mulheres estão andando de minissaia e Deus está ofendido com isso, vai se alcançar mais pessoas. É a promoção da ignorância que faz com que o ódio prospere.
CC: O senhor acredita que uma derrota do Bolsonaro arrefece o ódio?
RJR: Há 20% da população que não só vota no Bolsonaro como afirma que não houve aumento de preço no supermercado. Votar no Bolsonaro é uma opção, mas negar um fato verdadeiro indica que há pessoas que vão longe na negação da realidade. Como diz um juiz americano, todo mundo tem direito à opinião própria, mas não tem direito a fatos próprios.
O Brasil começou a entrar nessa quando o Aécio [Neves] negou a vitória de Dilma [Rousseff em 2014]. Ao negar os fatos, ele abriu espaço para se ter duas visões de mundo radicalmente opostas: gente vendo noite ao meio-dia.
Se a gente tiver a eleição de um candidato democrático, eu penso sobretudo no ex-presidente Lula, que reconstrua a maquina de estado e desenvolva políticas de inclusão social, parte do ódio vai sumir porque é abastecido por essa falta de futuro.
CC: Qual o maior desafio?
RJR: Tem outros casos de ódio, como o sujeito que odeia a liberdade das mulheres, o branco que diz que perdeu o espaço ou o sudestino que acha que está diminuído.
Há também nos setores progressistas pessoas que vêm com muita sede de ódio e que falam bobagem. Por exemplo: um ato de solidariedade de um homem heterossexual a uma mulher ou a um LGBT às vezes é malvisto por não se estar em seu lugar de fala. Isso tem causado mais problema do que êxito. É importante que as vítimas falem, pois elas conhecem coisas que só elas sabem. Mas para eu poder falar eu não tenho que ter sofrido. Eu volto à compaixão de Rousseau, que é se colocar no lugar do outro para ajudar.
Entre nossas tarefas para o futuro está a de recuperar os nossos laços sociais e isso não será fácil. Temos um estado que foi desmontando, uma economia em frangalhos, políticas sociais revertidas e um ódio muito forte por parte da extrema-direita e também da esquerda.
CC: Mesmo com o antipetismo ainda enraizado?
RJR: O líder é capaz de motivar e mobilizar. Ele se cerca de gente mais capaz do que ele. O Lula foi brilhante nisso. Eu penso que nós vamos precisar de alguém que tenha a capacidade que vejo muito no Lula e pouco nos outros. Essa aproximação dele com Alckmin é curiosa e interessante porque mostra que ele não guarda ressentimento. Ele tem uma inteligência emocional rara. Ele tem uma dinâmica que poucos têm.
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