Steven Kurutz, The New York Times
Frances Moore Lappé fotografada em Belmont. Autora de 'Diet for a Small Planet', publicado há 50 anos, se tornou líder do vegetarianismo Foto: Cody O‚ÄôLoughlin/The New York Times
Autora de 'Dieta Para um Pequeno Planeta', que estimulou um movimento em direção ao vegetarianismo, relembra seu legado
01 de dezembro de 2021 | 17h00
O último hambúrguer de Frances Moore Lappé foi em 1971, o mesmo ano em que publicou Diet for a Small Planet, seu influentíssimo livro sobre comida e sustentabilidade que praticamente criou o nicho editorial da política alimentar e transformou Lappé naquilo que ela mesma, com certo humor autodepreciativo, já chamou de "Julia Child do circuito da soja".
Em Diet (Dieta Para um Pequeno Planeta, em português), Lappé argumentou que os americanos comem muita carne, especialmente carne bovina, e que nossas refeições centradas na carne são um enorme desperdício de recursos. Tanto nosso corpo quanto o planeta seriam mais saudáveis se, em vez disso, tivéssemos uma dieta baseada em vegetais.
Naquela época, o vegetarianismo era um jeito estranho, senão herético, de se alimentar. O centro do prato americano estava reservado para um bife, uma grande costeleta de porco. No prefácio de certa edição de Diet, ela se lembra de quando tentou promover seu livro em um talk show local da TV de Pittsburgh em meados da década de 1970. Lappé foi ao ar ao lado de um especialista em Ovnis e a única pergunta que o apresentador lhe dirigiu foi: "O que você acha que eles comem lá em Ovnis?".
Ser vegetariano também era um desafio logístico naquela época. Mollie Katzen – que leu Diet aos 20 anos, quando ainda era estudante universitária, e tempos depois o usou como referência quando ajudou a fundar o restaurante vegetariano Moosewood, em Ithaca, Nova York, no ano de 1973, de onde veio seu também influente Moosewood Cookbook – lembrou que muitos ingredientes não eram fáceis de encontrar nos supermercados da época.
"Não havia ervas frescas em lugar nenhum", lembrou Katzen, de 71 anos, em uma entrevista recente. "As pessoas não cortavam cebolas. Só usavam cebola em pó. Você não conseguia nem encontrar uma garrafa de azeite – era só óleo." Adotar um regime vegetariano, observou Katzen, era "definitivamente uma coisa bem alternativa".
Meio século depois, Lappé não só viveu para ver Diet completar 50 anos – uma edição de aniversário atualizada saiu em setembro –, mas também para ver suas ideias sobre alimentação e nutrição serem adotadas por milhões de americanos e até mesmo gerar chavões de marketing para a indústria do bem-estar.
Sopa de cenoura
Numa tarde semanas atrás, Lappé recebeu o repórter em sua casa, numa vila arborizada nos arredores de Boston, para falar sobre como comíamos no passado e como comemos agora. Apesar de seu sucesso – Diet vendeu mais de 3 milhões de cópias e ela foi agraciada com o Right Livelihood Award, uma espécie de Prêmio Nobel alternativo – Lappé, ou Frankie para os íntimos, é uma pessoa bem pé no chão, uma mulher alegre de 77 anos. Ela deu as boas-vindas a seu convidado com uma quente e reconfortante tigela de sopa de cenoura, uma das receitas clássicas de Diet, que ela preparara especialmente naquela manhã.
"Fiz essa sopa para Betty Ballantine", contou Lappé com todo o entusiasmo, se referindo à editora que ficara tão impressionada com a mensagem de Lappé que se arriscara a pedir que ela escrevesse um livro. Até então, ela não tinha publicado nada, mas, a partir daí, escreveu mais 19 livros sobre tópicos que vão desde a sustentação de nossa democracia até a criação de filhos sem TV.
Ao longo dos anos, muitas pessoas categorizaram Lappé como chef ou autora de livros de receitas, a exemplo de outra de suas contemporâneas, a ativista alimentar Alice Waters. Na verdade, foi Ballantine quem sugeriu que Lappé incluísse receitas em Diet, para suavizar o argumento e aumentar o potencial de venda daquilo que era essencialmente um manifesto político. Muitas das receitas foram colaborações de amigos.
Lappé garantiu que nunca se imaginara como líder de uma revolução travada estritamente na seção de produtos hortifrutigranjeiros. Como ela disse: "A recompensa não é a quantidade de vegetarianos que criei". Em vez disso, ela fica feliz quando as pessoas vêm até ela e lhe dizem: "Li seu livro e ele mudou minha vida".
Se você trocou o peru pelo tofu neste Dia de Ação de Graças, em vez de agradecer a um pássaro, poderá agradecer a Lappé. O inventor da proteína vegetal, Seth Tibbot, leu Diet e, como contou aos produtores de um documentário da Vice sobre o futuro dos alimentos, o livro mudou sua vida. Outro discípulo é Ethan Brown, fundador do Beyond Meat. E, é claro, você pode incluir a própria autora entre aquelas pessoas cuja vida foi radicalmente mudada pelas ideias de Diet.
Lappé tinha 25 anos e estava fazendo pós-graduação na Universidade da Califórnia, Berkeley, quando começou a questionar o propósito de sua vida. Como muitas pessoas de sua geração, ela leu The Population Bomb (A Bomba Populacional), o livro de 1968 no qual Paul Ehrlich previa (erroneamente, ao que parece) uma fome iminente por causa da superpopulação, e foi inspirada pelo movimento ecológico que levou à criação do primeiro Dia da Terra.
Lappé também estava conhecendo novos e diferentes alimentos, como o tofu e o triguilho. Ela começou a fazer cursos sobre ciência do solo e se debruçar sobre relatórios acadêmicos na biblioteca agrícola de Berkeley, para entender melhor o sistema alimentar e a fome global.
Ela ficou surpresa com suas descobertas: mais da metade da área cultivada nos EUA da época se destinava à alimentação do gado, o que significava que, se esses recursos fossem redirecionados, haveria comida mais do que suficiente para todos. Lappé imprimiu um folheto e saiu distribuindo por Berkeley. Por intermédio de uma amiga, um livreto expandido chegou a Ballantine.
Diet foi um best-seller improvável, um argumento contundente contra o bom e velho hambúrguer, com gráficos bem assertivos sobre as safras americanas e uma ilustração de grãos de milho e trigo logo na capa. Mas foi publicado durante "uma época muito idealista para a juventude americana, muitos estudantes universitários como eu estavam em busca de uma forma alternativa de viver que tivesse menos impacto na Terra. Havia também essa ideia de que o pessoal é político. O livro dela preencheu todas as lacunas", acrescentou Katzen. /
TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,livro-de-frances-lappe-a-madrinha-da-vida-baseada-em-plantas-faz-50-anos,70003913691
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