Minouche Shafik diz que a verdadeira mudança no trabalho é causada pela tecnologia. “Por isso, precisamos do sistema educacional funcionando, ele é um aliado da tecnologia” — Foto: Jason Alden/Bloomberg
No livro ‘Cuidar uns dos outros’, Minouche Shafik, diretora da London School of Economics, defende que é preciso rediscutir políticas e normas na pós-pandemia
Por Helena Celestino — Para o Valor, de Nova York
03/12/2021 0
São muitos os sinais de que o velho contrato social está partido. O aumento do populismo, a politização da vacinação contra a covid-19, as guerras culturais em torno do papel da mulher na sociedade, a violência política, os protestos contra o racismo e a mudança climática indicam que é hora de refazer as políticas e as normas que regem a maneira como vivemos juntos em uma sociedade. É a partir dessa constatação que a economista Minouche Shafik escreveu “Cuidar uns dos outros” (Intrínseca, trad.: Paula Diniz, 336 págs., R$ 59,90) - ou “O que devemos uns aos outros”, numa tradução literal do título em inglês.
No livro, ela lista políticas públicas adotadas com sucesso em várias partes do mundo e desenha outras ainda não experimentadas para criar um novo contrato social entre o Estado, as famílias, os indivíduos, as gerações e o mundo empresarial. Difícil, claro, mas ela lembra que foi depois da Grande Depressão que os Estados Unidos lançaram o New Deal e a Europa criou o Estado de bem-estar social depois da Segunda Guerra Mundial. “Não foi um momento de epifania, em que de repente tudo foi resolvido. Há progressos e regressões”, diz.
Minouche, como gosta de ser chamada, tem uma trajetória impressionante. Nascida no Egito, ela recentemente tornou-se a primeira mulher a dirigir a London School of Economics, ao decidir interromper seu mandato como vice-presidente do Banco da Inglaterra, tempo em que era considerada a mulher mais poderosa de Londres - excetuando-se, claro, a rainha Elizabeth, que tornou Minouche baronesa e a nomeou membro permanente da Câmara dos Lordes. Antes disso, ela trabalhara 25 anos em instituições internacionais para diminuir a pobreza e, assim, tornou-se vice-presidente do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional.
Nesta entrevista, ela diz não ter dúvidas de que a pandemia causará profundas mudanças políticas. “Foi assim com a crise financeira de 2018, que levou ao populismo. Acho que a política não vai ser a mesma daqui a alguns anos, pode piorar, mas temos de fazer todo o possível para isso não acontecer. O meu livro é um manifesto antipopulista.”
Valor: Seu livro defende um novo contrato social entre o Estado, os indivíduos, as famílias, as empresas. Por que agora?
Minouche Shafik: Comecei a pensar nesse livro em 2016, quando vi o populismo crescer em todas as partes do mundo, nos Estados Unidos, no Brasil, na Europa e nas Filipinas, com políticos populistas explorando o fato de as pessoas estarem frustradas e com raiva, por verem que o sistema não está funcionando para elas. As pessoas fizeram o diagnóstico correto, mas as respostas estão erradas: nacionalismo, xenofobia, protecionismo, sentimento anti-imigrante não vão solucionar os problemas. Meu livro é um manifesto contra o populismo; tento tratar dessas questões de uma maneira diferente.
Valor: É por causa do populismo brasileiro que a senhora acha o seu livro especialmente importante para o Brasil?
Minouche: Sim, o Brasil tem um contrato social frágil e o resultado é um país muito desigual. Os dados de mobilidade social mostram que são necessárias nove gerações para o pobre chegar à classe média. Na Dinamarca, bastam duas gerações; nos Estados Unidos, cinco. A produtividade nos EUA cresceu muito ao incluir as mulheres, as minorias e os filhos das famílias pobres no mercado do trabalho. O Brasil perde muito em não permitir maior mobilidade social, e os números brasileiros são muito extremos. As pessoas percebem que as oportunidades não são compartilhadas de forma igualitária. Discuto estes tópicos no meu livro: como criar uma sociedade com mais segurança e oportunidades para todo mundo. Acho que o Bolsa Família foi muito importante para dar segurança às pessoas de que elas terão um rendimento mínimo. Foi um primeiro passo.
Valor: A senhora diz que o novo papel das mulheres e a revolução tecnológica quebraram o velho contrato social. Quando e como isso ficou claro para a senhora?
Minouche: Quis saber por que as pessoas estavam frustradas e onde estava a fratura na nossa sociedade. Acho que a desigualdade entre mulheres e homens é uma das causas, que leva também à desigualdade nos empregos e na segurança dos empregos. Em muitas sociedades, o Brasil entre elas, parte do contrato social é baseado nas famílias. Se você está doente, se alguém não pode trabalhar, a família absorve esses riscos. Frequentemente, são as mulheres que absorvem esses riscos. Cuidados com as crianças e os velhos tendem a ficar com as mulheres. Como as mulheres estão mais educadas e entraram no mercado de trabalho, ficou mais difícil para elas assumir essas responsabilidades. Isso me levou a pensar no papel das mulheres na economia e em como criar melhor infraestrutura de cuidado para mulheres poderem trabalhar. Se não usarmos os talentos delas, ficaremos pobres. Muitos culpam a globalização pelo fato de os empregos estarem mudando e algumas habilidades não serem mais valorizadas. Mas a verdadeira mudança é causada pela tecnologia. Por isso, precisamos do sistema educacional funcionando, ele é um aliado da tecnologia; criou muitas pessoas capazes de ter altos salários. Claro que há outras forças agindo também para essa fratura social: a mudança do clima, o envelhecimento da população.
“O Brasil tem um contrato social frágil e o resultado é um país muito desigual. O país perde muito em não permitir maior mobilidade social”
Valor: Para a senhora, o contrato entre as gerações foi rompido. Como rebalancear isso?
Minouche: Há dois pontos-chave para isso. Devemos nos dar conta de que estamos legando um meio ambiente diminuído às novas gerações. Elas estão recebendo muito mais capital físico - infraestrutura, cidades, inovações tecnológicas -, mais capital humano, já que são mais educados do que as gerações passadas, mas estão herdando muito menos capital natural. Nós destruímos muito do capital natural e disso resultou a mudança climática. A geração mais velha tem de reparar isso. A política de meio ambiente está mudando porque os jovens estão pressionando fortemente e levando muita gente com eles.
Valor: A senhora também diz que a geração mais velha terá de trabalhar mais tempo.
Minouche: É a outra coisa que devemos à nova geração. Eles vão viver muito mais do que nós, vão ter de trabalhar muito mais tempo. Minha geração teve carreiras de 30 anos, eles terão de trabalhar 50 anos ou mais. Para poderem passar 50 anos trabalhando, temos de reinvestir na educação deles ao longo desse tempo. Uma das maneiras de recompensar a nova geração é dar a ela maneiras de investir na sua própria educação ao longo da vida e, para isso, defendo a criação de um endowment [fundo] para financiar isso: agora a sociedade paga pela educação das pessoas até os 20 e terá de escalar isso para garantir retreinamento aos 30, 40, 50, 60 anos.
Valor: A nova geração também terá de pagar mais por causa do aumento da longevidade...
Minouche: Se olhamos para o retrato inteiro, vemos que as pessoas no passado viviam 65 anos, trabalhavam até os 60 e nos últimos quatro ou cinco estavam impossibilitados de continuar em empregos por problemas de saúde. Agora, elas vivem 80 e passam décadas aposentadas e em boa saúde. Especialmente em países como o Brasil, em que a população é jovem, é preciso acostumar com a ideia de trabalhar por mais tempo. No livro, proponho que a idade de aposentadoria seja reajustada à medida que a expectativa de vida aumenta. E, se fizermos isso agora, as pessoas se acostumam com a ideia. Atualmente, a cada dez anos os países tentam aumentar a idade da aposentadoria e explode uma crise. Politicamente não é nada fácil mudar isso. Se for automático, simplifica. A outra possibilidade é o que Portugal fez: se a expectativa de vida aumenta um ano, a aposentadoria chega seis meses mais tarde e os jovens arcam com o pagamento dos outros seis meses. A sociedade e os indivíduos dividem os benefícios.
Valor: Como forçar o mercado de trabalho a receber pessoas não mais tão jovens?
Minouche: É um problema, mas acho que já está mudando, o mercado está se acostumando com isso. O sistema de aposentadoria deveria ser desenhado para os mais velhos terem trabalhos de tempo parcial e oportunidade para serem retreinados e adquirirem novas habilidades. Eu digo aos estudantes que não devem pensar na carreira como uma escada, mas como uma árvore; às vezes você vai para o galho ao lado e é ajudado a se mover para o alto. Não é mecânico, e o mesmo deveria acontecer com os aposentados: atualmente, eles saem do topo para o zero. Eles poderiam descer aos poucos da árvore, fazerem diferentes coisas. Acho que temos de pensar a carreira de forma diferente
Valor: No livro, a senhora aponta muitas políticas públicas para um novo contrato social, mas desconsidera as dificuldades políticas e o papel dos movimentos sociais.
Minouche: Primeiro, é importante mostrar que é possível, que há soluções, e mostro no livro como os países estão implementando as políticas. Os movimentos sociais têm um importante papel para as mudanças: os movimentos ambientais, feministas, de direitos sociais estão dando munição para uma sociedade mais justa e com mais oportunidades, ou seja, são parte da solução. Os políticos... (risos). Em países presidencialistas, como o Brasil e os EUA, políticos querem servir seus clientes, e o resto da sociedade importa menos para eles. Por isso, os mecanismos de controle são importantes: imprensa independente, Judiciário, Congresso funcional, universidades com pensamento livre e crítico são importantes para pressionar os políticos a fazerem a coisa certa. Proteger estas instituições é importante. Muitos políticos pensam que, se o PIB crescer, eles serão reeleitos, acreditando naquela velha frase de que as pessoas votam com o bolso. Uma pesquisa feita na London School of Economics mostrou que as pessoas votam pensando no seu bem-estar, e o que faz as pessoas reelegerem alguém é a melhoria do seu bem-estar, sensação entendida como boa saúde mental e física, sentimento de comunidade e igualdade nas relações e na qualidade trabalho. Se um político quiser ser reeleito, que invista no bem-estar das pessoas.
Valor: A gente vive um momento de alta polarização politica, discursos de ódio. Como juntar as pessoas para um novo contrato social?
Minouche: Muitos políticos direcionam as energias das pessoas para assumir discursos de ódio, violência política, divisões e hostilidade entre as pessoas. Em vez de tudo isso, que tal discutirmos se as pessoas estão frustradas e ansiosas porque estão preocupadas com o futuro dos filhos, temem envelhecer e não ter dinheiro, ficar doente sem assistência médica. Estas são as questões reais e os políticos usam a polarização para nos dividir e serem reeleitos. Gosto de pensar que as pessoas, mesmo estando em lados políticos opostos, podem falar sobre as coisas que realmente importam para elas, mesmo que tenham soluções diferentes para os problemas.
Valor: O que acha da lei de proteção social de Joe Biden e por que nos EUA é tão difícil aprovar leis ligadas ao bem-estar social?
Minouche: As duas leis, a social e a de infraestrutura, são muito importantes. A de proteção social é muito parecida com o que proponho em dois capítulos do meu livro: prover proteção para as crianças, acesso gratuito às faculdades comunitárias, treinamento para pessoas desempregadas, valor mínimo garantido para todos cuidarem da saúde. Nos EUA, o contrato social é como no Brasil, muito reduzido, e isso cria grande insegurança. É muito frustrante ver tantos talentos de crianças e de mulheres desperdiçados por falta de oportunidade, todos perdemos com isso. Os americanos são muito individualistas, mas as pesquisas mostram que a maioria da população apoia as medidas-chave de Biden para ter um contrato social mais generoso. O problema é como o sistema de votação opera no Senado e também com as pessoas que não querem mudanças porque ganham com o antigo contrato social. Estamos num momento transicional. Ao falarmos com os jovens, vemos que têm opiniões muito diferentes sobre meio ambiente, sobre como o contrato social deve ser e sobre as expectativas para a vida deles. Acho que a pressão virá deles e das mulheres; as pessoas que querem um novo contrato social ainda estão fora do poder.
Valor: Vemos o aumento da desigualdade, o crescimento do trabalho precário; no Brasil até a fome voltou. O trauma com a pandemia acelerou mudanças econômicas, mas numa direção oposta às suas recomendações. Como as suas propostas de políticas públicas serão implementadas?
Minouche: A pandemia mudará a política em muitos países, mas ainda estamos vivendo no meio da crise e não mudamos líderes políticos no meio da crise. A consequência política da crise financeira de 2008 veio depois - só a partir de 2010 vimos o populismo acontecer como reação. Acho que na crise da pandemia será parecido: a paisagem politica vai mudar, as pessoas terão outras expectativas, vão querer mais segurança, mais cuidados de saúde, mais sentido de comunidade. Essa é a minha esperança. Escrevi esse livro para as minhas ideias serem parte da discussão quando as pessoas começarem a discutir o pós-pandemia.
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