David Diop foi o primeiro autor francês a vencer o International Booker Prize -
'Irmão de Alma' venceu o International Booker ao contar experiência de soldados negros na trincheira francesa
"Ao observar os olhos azuis do inimigo, costumo ver o medo e o pânico da morte, da selvageria, do estupro, da antropofagia", narra Alfa Ndiaye, um soldado negro que se deslocou do Senegal para lutar pela França na Primeira Guerra Mundial. "Vejo em seus olhos o que lhe disseram de mim e aquilo em que acreditou sem nunca ter me encontrado."
O escritor David Diop criou o personagem que elabora essa definição tão íntima do olhar discriminatório alimentado por uma dualidade que também o habita.
Diop nasceu há 55 anos em Paris. Ainda criança, se mudou para morar com a família de seu pai em Dacar, a capital senegalesa. O protagonista de seu romance "Irmão de Alma", o primeiro livro de um autor francês e de ascendência africana a vencer o prêmio International Booker, faz a viagem contrária, rumo à Europa.
É tentador pensar que o romance é um esforço do escritor para reconciliar suas raízes, marcadas pelo sangue da violência colonial. É uma ideia que ele recusa.
"Quando escrevo meus romances, coloco em ação as minhas duas sensibilidades culturais", afirma, em entrevista. "Elas não são antagonistas, se harmonizam na minha escrita. Assim, se trata de conciliação, não de reconciliação. A reconciliação supõe um antagonismo pregresso entre duas culturas, o que não existe em mim."
O personagem principal de "A Porta da Viagem sem Retorno", seu último romance, que chega ao Brasil pela editora Nós a tempo da participação do autor na Festa Literária Internacional de Paraty, também viaja entre as duas culturas.
Michel Adanson é um naturalista europeu, inspirado num personagem real, que se desloca à África Ocidental para estudar sua flora. A mudança de perspectiva é igualmente radical, mas em sentido oposto e com impactos distintos.
Mas algo que liga os dois romances, nas palavras de Diop, é que ambos tratam de "superar os preconceitos que poluíam os olhos de uns sobre os outros na época em que a França tinha um império colonial".
Os livros entram, assim, na prateleira cada vez mais abarrotada das obras decoloniais. Só para ficar no gancho da Flip, autores como Djaimilia Pereira de Almeida, Ailton Krenak e Micheliny Verunschk —com quem Diop dividirá mesa neste domingo às 16h— pensam todos maneiras de refundar as histórias marcadas pela dominação europeia em novas razões e sensibilidades.
Em "Irmão de Alma", a poluição que cega os olhos franceses se manifesta, por exemplo, quando o capitão do destacamento de Ndiaye diz que "os chocolates da África Negra são naturalmente os mais corajosos entre os corajosos". "Os jornais só falam em suas façanhas!"
O narrador rápido identifica que esse papo só serve para estimular que os soldados africanos saiam "afoitos para serem ainda mais massacrados, gritando como loucos furiosos, o rifle regulamentado na mão esquerda e o facão selvagem na mão direita".
Sua compreensão cristalina das falas do capitão logo se verte num sutil manifesto anticolonial, quando Ndiaye fala para si mesmo: "Ninguém sabe o que eu penso, sou livre para pensar o que quiser. O que eu penso é que querem que eu não pense."
Essa é uma das múltiplas linhas interpretativas que surgem de "Irmão de Alma", que também pode ser lido como um conto sobre a deterioração da sanidade —provocada pela culpa que Ndiaye sente pela morte de um amigo que era como um "gêmeo parido no mesmo dia"— ou como uma ruminação sobre a proximidade entre o afeto e a violência.
É curioso, por exemplo, como Diop descreve o ato de irromper das trincheiras como "sair do ventre da terra" —ao insistir em comparar as frestas cavadas no chão a uma vagina, o autor avizinha o nascimento e a morte. Também se aparentam suas descrições sensoriais dos cadáveres que têm os intestinos vertidos para fora e a sensação de penetrar o corpo feminino no sexo.
Mesmo que possa ser definido como romance de guerra, gênero exaustivamente encontrado na literatura europeia, este se distingue ao beber da ancestralidade africana. Afinal, seu protagonista não é como a maior parte dos que habitam esse tipo de livro.
"Eu tinha vontade de ouvir a voz de um combatente africano há muito tempo", lembra Diop. "Sempre fui curioso em relação ao que eles poderiam pensar quando chegavam ao teatro de uma guerra europeia. Se existem os testemunhos de senegaleses, eles não traduzem geralmente sua terrível intimidade com a guerra. É pela ficção que tentei imaginar o inferno que viveram."
O escritor, que também pesquisa literatura dos séculos 17 e 18 em sua cadeira na Universidade de Pau et des Pays de l’Adour, na França, conta que recorreu a teses historiográficas sobre o papel dos atiradores de Senegal durante a Primeira Guerra, quando eram comumente usados como bois de piranha no front, conforme mostra o livro.
"Mas fiz todas essas leituras sem tomar notas, porque no momento da escrita entra em jogo minha memória afetiva. O que me tocou nos documentos históricos ressurge nas minhas palavras sob a influência da emoção."
Assim Diop consegue entender a guerra numa costura profundamente pessoal entre dois mundos que, na verdade, são um —o seu próprio.
"Acho que Deus está sempre atrasado em relação a nós", confessa Ndiaye, após assassinar um menino que sabe, no fundo do coração, que era uma boa pessoa. "É isso a guerra: é quando Deus se atrasa na música dos homens, quando não consegue desemaranhar, ao mesmo tempo, as linhas de tantos destinos."
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