Anselmo BORGES*
1. Uma característica essencial do ser humano é que conjugamos os verbos no passado, no presente e no futuro.
Há quem
julgue que a salvação está no passado. Há sempre os saudosistas do passado:
antigamente é que era bom. É a saudade do Paraíso perdido. Também há aqueles
que não querem preocupar-se nem com o passado nem com o futuro. O que há é o
presente, o aqui e agora, o agora a que se segue outro agora: a salvação
consiste no amor e fruição do presente. Depois, há os sonhadores e os ascetas.
Fogem do agora, para refugiar-se no amanhã. Nunca estão no presente, pois a sua
morada é só o futuro...
Ora,
pensando bem, se, por um lado, não podemos instalar-nos no passado, por outro,
ninguém pode abandonar o passado, como se fosse sempre e só o ultrapassado. De
facto, quando damos por nós, já lá estamos, o que significa que vimos de um
passado que nem sequer dominamos. E temos de aprender com o passado, para, a
partir dele, nos decidirmos no presente.
Depois,
também não é possível a simples instalação no presente, já que só podemos viver
no presente projectando-nos constantemente no futuro. O Homem está voltado para
o futuro, pois é constitutivamente esperante. Vivemos voltados para o futuro,
porque somos projecto: agimos e somos, antecipando sempre. Sem esta
antecipação, não poderíamos agir humanamente. Mas, por outro lado, não se pode
esquecer que realmente a esperança também significa que, se desejamos, é porque
não temos, e isso implica que não se é feliz. E, depois, quando temos, há
sempre o temor de perder o que temos, o que nos coloca em permanente
inquietação... Viver humanamente não pode, portanto, significar viver
exclusivamente do futuro e para o futuro, pois viver unicamente da esperança é
nunca viver, já que verdadeiramente só se vive no presente. Viver unicamente da
esperança seria adiar constantemente a vida, no sentido do viver. Aliás,
colocar permanentemente o presente ao serviço do futuro, vê-lo exclusivamente
em função do futuro, é abrir as portas ao perigo da tirania: quantos homens e
mulheres não foram de facto vítimas do sonho de "amanhãs que
cantam"?!...
É isso:
querer viver exclusivamente do presente e para o presente não é humano, pois
isso significaria viver na imediatidade animal, sem horizonte de futuro e transcendência.
Mas, por outro lado, quem quisesse viver exclusivamente do futuro e para o
futuro nunca poderia afastar a dúvida de estar apenas a lidar com as suas
ilusões. A arte de viver humanamente consiste em, a partir do passado, viver
com tal intensidade e dignidade o presente que se torna legítimo esperar a vida
plena futura...
2. Ah!, o
tempo! Se soubéssemos o que é o tempo... Já Santo Agostinho, um dos pensadores
que mais profundamente reflectiram sobre o mistério do tempo, se queixava: Se
ninguém me perguntar, eu sei o que é o tempo; mas se alguém me perguntar e eu
tiver de responder, eu não sei o que é o tempo. De facto, o passado já passou,
já não existe; o futuro ainda não chegou, ainda não existe; e o presente,
quando queremos agarrá-lo, já lá não está.
Mas
sabemos que o tempo corre vertiginosamente. Sabemos que envelhecemos. Este é o
tempo mensurável dos relógios, o tempo de Cronos, que, segundo o mito, devora
os seus próprios filhos.
Por outro
lado, o tempo não é completamente homogéneo. Há o tempo novo, o tempo
qualitativo, aquele instante em que a eternidade irrompe no tempo. Esse é o
tempo da liberdade, da criação, o tempo do amor, da beleza. Aí, trata-se
daquele instante em que se frui realmente a eternidade e que tem a ver, por
exemplo, com a exaltação exultante do final de uma sinfonia, na suspensão do
tempo. É desse instante que se diz no Fausto, de Goethe: “Pára, és tão
belo!”
A todo o
homem e mulher já alguma vez, por exemplo, perante um pôr-do-sol à beira-mar,
na dilatação do horizonte no cume da montanha, no acto amoroso, no abismo
encantante, sereno e misterioso do olhar de uma criança, aconteceu, de repente,
uma experiência desse instante pleno. Trata-se de algo que o Homem não pode
provocar, mas de uma visita daquilo que o preenche. É uma presença imediata do
que chega e se revela de repente como plenitude. É apenas um instante no tempo,
e, no entanto, só através desse instante é que o tempo tem sentido. Mostra-se o
que nos realiza plenamente e que vale por si mesmo. Aí quereríamos ficar para
sempre. A própria angústia da morte fica suprimida, e até se poderia morrer,
pois essa é a experiência da não-morte.
É a um
desses instantes que se refere também Tolstói em Guerra e Paz. Ferido de
morte, o príncipe André caiu de costas. "Por cima da sua cabeça, nada mais
havia além do céu, um céu muito alto, não claro, mas imensamente alto, onde
erravam tranquilamente pequeninas nuvens cinzentas. ‘Que calma, que paz, que
majestade! Como é que eu nunca tinha visto isto, este céu profundo e infinito,
sem limites? E que feliz me sinto de o ver finalmente'."
É preciso
dar-se tempo para alguma experiência desse instante que nos redime do tempo que
nos devora: o tempo de exaltar-se com esse céu imensamente alto e sereno, sem
limites; extasiar-se com o perfume de uma rosa que é sem porquê e que nem
sequer repara se olham para ela, como disse Angelus Silesius; deixar-se visitar
pelo infinito do olhar de alguém; ouvir o indizível, que só na poesia e na
música tenta dizer-se; marcar visita com o Infinito, através da oração... O que
é rezar senão visitar e ser visitado por Deus, o Infinito?
*Anselmo Borges
Padre e
professor de Filosofia
Escreve
de acordo com a antiga ortografia
Artigo
publicado no DN
| 4 de dezembro de 2021
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