domingo, 5 de dezembro de 2021

John Steinbeck expõe chagas e lamentos dos EUA

 

 
 John Steinbeck, autor de “As vinhas da ira”John Steinbeck, autor de “As vinhas da ira”
 
 "As vinhas da ira", um dos principais livros do Nobel de Literatura de 1962, dá a dimensão da fome e da pobreza no país mais rico do mundo

Os norte-americanos escondem o que os Estados Unidos têm de mais verdadeiro e mais cruel jogando às traças e ao silêncio devastador a obra contundente de John Steinbeck, um dos seus escritores mais competentes. Vencedor do Nobel de Literatura em 1962, o autor de As vinhas da ira viu seu nome enxovalhado e sua obra rasgada porque exibia, com imensa qualidade, as chagas e dores deste gigante, cujo capitalismo nem sempre pôde estancar o sangue que corre das veias dos miseráveis.

Intérprete de um tempo dantesco chamado de “a grande depressão” — fome e miséria do Tio Sam —, Steinbeck não poderia ser diferente sob pena de trair a arte da escrita. Ali estão os pobres esforçando-se para viver, carregando nos ombros as mazelas da miséria e a fome sem precedentes.

Não creio que esta obra possa fazer medo a este país, que se ergueu das cinzas e das dores, mesmo que a miséria ainda esteja ali mordendo os calcanhares. Muito pelo contrário, em meio ao desespero, reluziu o ouro e a vitória.

Não se quer com isso dizer que não existe fome naquele país. É claro que existe. Todos nós sabemos. A raça humana se desespera e sofre em qualquer lugar. Eu mesmo vi pedintes desamparados na madrugada de Nova York, em 1989. Inevitável. Assim são construídas as nações. Impossível evitar.

É justamente a qualidade literária de Steinbeck que dá à cena de fome, de terrível fome, cercada de prantos e de gemidos, no final de As vinhas da ira, a dimensão humana da desgraça devastadora — e tudo isso sob o teto dos Estados Unidos.

A Família Joad, protagonista do romance, enfrenta todas as dificuldades para atravessar os campos secos e desgraciosos da Califórnia quando a noite chega e, com ela, tudo aquilo que testemunha a tormenta da noite. Não é possível continuar a caminhada. Para complicar, veio uma tempestade, dessas que molham mas não alimentam a terra. A família procurou onde se abrigar. De repente apareceu um celeiro com ares de esperança. Escreve Steinbeck:

A estrada serpenteava junto ao riacho. Os olhos da mãe perscrutavam a paisagem inundada. Ao longe, à esquerda, sobre o flanco de uma colina de sua declive, erguia-se um celeiro enegrecido pela umidade.

— Olha! — disse a mãe — Aposto que esse celeiro está bem seco. Vamos ficar lá , até a chuva passar.

O pai suspirou.

— Aposto que o dono do celeiro vai enxotar a gente.

Estava escuro lá dentro. Uma luz fraca apenas penetrava pelas fendas da parede de tábuas.

— Deita! Rosasharn — disse a mãe — Deitaí e descansa, ouviu?

Vou ver se dou um jeito para secar tua roupa.

Winfield disse:

— Mãe! — E a chuva que fustigava o teto do galpão abafou a sua voz — Mãe!

— Que é? Que é que tu queres?

— Olha ali naquele canto?

A mãe olhou. Havia dois vultos recortando-se na penumbra: um homem deitado de costas e um menino, sentado ao lado dele, de olhos arregalados, fixos nos recém-chegados. Quando eles o olharam, o menino, lentamente, pôs-se de pé e acercou-se deles. Tinha uma voz rouca:

— Esse celeiro é seu? — perguntou.

— Não — disse a mãe —, a gente entrou aqui por causa da chuva, mas não é nosso. Tamo com uma moça doente aqui. Será que vocês têm algum cobertor seco pra emprestar? Ela tem que tirar o vestido molhado.

O menino regressou ao seu canto, apanhou um cobertor seco e entrego-o à mãe.

— Muito obrigado — disse ela. — Que é que esse moço tem?

O menino respondeu com a mesma voz rouca e monótona:

— Primeiro ele ficou doente; agora ele está morrendo de fome.

— O quê!?

— É isso. Morrendo de fome. Ficou doente na colheita de algodão e faz seis dias que não come nada. A mãe foi ao canto obscuro e debruçou-se sobre o homem. Tinha uns 50 anos. Seu corpo era barbudo e descarnado. E os olhos muito abertos. O menino colocou-se ao lado da mãe.

— Ele é teu pai? — perguntou ela.

— É, sim. Ele sempre dizia que não estava com fome, ou que já tinha comido. Dava tudo o que tinha pra mim. Agora tá fraco que não pode nem se mexer.

A chuva amainou outra vez e tamborilava com brandura no teto do celeiro. O homem emaciado moveu os lábios. A mãe ajoelhou-se ao lado dele e encostou o ouvido à boca do homem, cujos lábios tornaram a mover-se.

— Bom — disse a mãe —, fica sossegado. Espera até eu tirar as roupas molhadas de minha filha..

A mãe voltou para junto de Rosa de Sharon.

— Trata de te despir, anda — disse.

Estendeu o cobertor, fazendo dele uma cortina para se escondê-la dos olhos dos outros. E quando Rosasharn estava nua, enrolou-a no cobertor.

O menino estava agora novamente ao lado da mãe, explicando:

— Eu não sabia de nada. Ele sempre me dizia que já tinha comido ou então que não tinha fome. A noite passada, eu entrei numa casa quebrando vidraça da janela e roubei um pão. Dei um pedaço pra ele comer, mas vomitou tudo e depois ficou mais fraco ainda. Devia era tomar sopa ou leite ou qualquer coisa assim. Será que a senhora tem algum dinheiro pra comprar leite?

A transcrição é longa, creio, mas não poderia ser diferente. Trata-se de uma cena extremamente dramática, que continua ainda muito bonita no antológico final deste romance que causou enorme mal-estar na América. Tratou-se logo de chamá-lo de comunista, justo naquele instante em que se chegava ao auge da Guerra Fria.

Mesmo assim, a transcrição continuaria para completar a emoção estética do leitor. Até aquela cena incrível em que o homem é obrigado a mamar no peito de Rosa para sorver o leite salvador — ela que acabara de dar à luz e o fizera com um sorriso misterioso nos lábios.

*É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Fonte: # , https://rascunho.com.br/colunistas/palavra-por-palavra/john-steinbeck-expoe-chagas-e-lamentos-dos-eua/

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