Os Evangelhos, como toda a literatura canónica, são inesgotáveis nas suas propostas de nos fazer pensar – e envergonhar.
O Natal não é quando o homem quiser. Destituída da carga de mutação ontológica dos rituais de nascimento e passagem, a quadra natalícia agrega, no entanto, uma série de cerimónias que satisfazem necessidades de renovação, redenção e restauração da ordem moral, e que, na sua dimensão mítica e sagrada, reclamam uma celebração colectiva em ocasião bem definida no tempo histórico. Por outro lado, a festa que assinala a hierofania suprema irradia a grande ideia que lhe está associada: a dignidade dos seres humanos enquanto indivíduos, condição indissolúvel no fluido da humanidade. Com mais ou menos elementos profanos, o Natal é, dentro de certos limites, o que o homem quiser.
Nas sociedades contemporâneas, imersas numa crise espiritual, o Natal é sinónimo de ansiedade. O apelo ao consumo, à retribuição e à alegria perene, o domínio da amargura e do ressentimento, a dissipação da miragem infantil, as cadeiras desocupados pelo tempo que o inverno demográfico não preenche e que se impõem como símbolos inquietantes da conversão da morte em nada operada pela secularização, tudo concorre para a descaracterização e extinção paulatina do Natal.
É neste ambiente de fragilidade cultural e desconsolo que os burocratas de Bruxelas decidiram actuar: recentemente, para surpresa de poucos, foi divulgado um plano que visa a reformulação do vocabulário alusivo às festividades natalícias, plano que se insere num programa mais ambicioso segundo o qual nem os nomes próprios Maria e João devem ser poupados. No ano passado, a canção «Fairytale of New York», de Shane MacGowan, foi purgada do termo «faggot». Ao que tudo indica, em breve não poderemos ouvi-la ou sequer trauteá-la, a não ser que alguém a reescreva como fábula de um solstício de Inverno.
É certo que a manobra foi denunciada na praça pública e que a Comissão Europeia se sentiu forçada a recuar. Porém, não há razões para acreditar que a sanidade recuperou finalmente o seu senhorio. O recuo é estratégico, com certeza, e num momento mais oportuno consumar-se-á o assalto: quando o novo totalitarismo põe uma ideia em marcha, esta, mais tarde ou mais cedo, será concretizada. Não é o carisma ou a audácia profética que fazem de Michel Houellebecq uma espécie de vate literário; é a constatação de que a engrenagem que nos conduzirá à submissão já está em serviço e a subversão definitiva dos valores morais que nos moldaram ao virar da esquina.
É inevitável, neste contexto, recordar a Alemanha da década de 1930. Apesar de autorizarem as celebrações do Natal, os nazis tentaram adaptá-lo à doutrina nacional-socialista, subtraindo-lhe as referências cristãs e adulterando-lhe os símbolos. Aliás, o regime preparou mesmo a erradicação do cristianismo, com o propósito de substitui-lo por um novo paganismo inspirado na mitologia nórdica, que por sua vez fora cooptada como narrativa vital do nazismo. Na Alemanha de Hitler, Wotan deveria recandidatar-se ao lugar de Deus. Não seria, creio, o Wotan de Richard Wagner, um herói trágico que, consciente do desastre da sua intervenção, convencido do fim do reinado dos deuses e da inutilidade do seu empenho na criação de um homem que salvasse a velha ordem, proclama: «Um homem livre deve criar-se a si próprio; eu só posso criar escravos.» (Die Walkure, acto 2, cena 2).
Haverá quem se melindre com a menção ao nazismo e estou seguro de que alguns até se vão lembrar da falácia Reductio ad Hitlerum. É uma objecção legítima. No entanto, a História também é feita para que possamos debruçar-nos sobre ela e aprender com os acontecimentos que a definiram. O passado ensina-nos que tudo tem um princípio lento – Bergman chamou-lhe «o ovo da serpente» – e que os grandes desastres não são fruto de uma centelha fortuita; ao invés, têm origem numa rede complexa de factores, de causas primárias e secundárias e interacções, que, em virtude das idiossincrasias da natureza humana, tende a permanecer no tempo, adormecida, para despertar periodicamente. O início da década de 20 tem vindo a sublinhar esta asserção.
Se a evocação do totalitarismo nazista ou estalinista, mesmo diante do claro retrocesso da liberdade que o século XXI vem testemunhando, pode parecer exagerada, convenhamos que a divisão entre puros e impuros instituída pela ditadura sanitária, as insígnias amarelas usadas na sinalização dos rebeldes (não é exagero metafórico, aconteceu mesmo num colégio britânico), ou os cartazes postos à entrada das lojas alemãs para travar aqueles que, por qualquer motivo, não foram sujeitos à inoculação da moda, causam, quando menos, um certo desassossego. Há actos e emblemas que não têm como escapar da sua simbologia histórica.
Voltando ao Natal: será que ainda somos sensíveis às histórias contadas nas Escrituras? Estou a lembrar-me de um dos milagres relatados nos três Evangelhos sinópticos, a cura dos leprosos, ensaio sobre a subordinação do Levítico e das suas leis à compaixão e ao mais elementar sentido de justiça, e do episódio da negação de Pedro, terrível expressão do instinto de sobrevivência e aviso sobre quão fácil é para o medo e a cobardia se intrometerem nos espíritos mais insuspeitos. Os Evangelhos, como toda a literatura canónica, são inesgotáveis nas suas propostas de nos fazer pensar – e envergonhar.
Aproveitando a convocação do Novo Testamento para esta conversa, não queria terminar sem uma curta referência a Luz em Agosto (1932), de William Faulkner, romance em 21 capítulos, cada um com uma correspondência temática aos 21 quadros do Evangelho de João. Há uma personagem mariana, Lena, grávida de um pai ausente, que, como Blanche Dubois, depende da bondade dos estranhos, o mais cruel dos desamparos (todos sabemos do que são capazes os estranhos). Há um José (Byron Bunch) e um Judas (Lucas Burch). E há Joe Christmas, o Cristo em negativo, putativo mestiço sem lugar entre os brancos ou os negros, elemento impuro e proscrito pelas vicissitudes do destino, condicionado, na infância, ao exercício do mal pela inversão moral daqueles que tinham a obrigação de o proteger. Como Jesus, cujas acções são comandadas pelas profecias, Christmas é guiado por forças externas.
Na Jefferson, Mississipi, de Faulkner converge um grupo de criaturas espectrais, privadas da família – esse entreposto no caminho perigoso que vai do individualismo estrito à anulação na comunidade – e órfãs da religião e da tradição e de qualquer modelo externo que, qual fio de Ariadne das usanças, as oriente no labirinto social. Encerrado num território de conflito de raças, Luz em Agosto é, para o leitor de qualquer época, um recinto de espelhos de feira onde as personagens e as suas motivações se multiplicam e distorcem, como que perdidas numa parábola sobre o conflito entre o homem e a congregação. Perto do final, no capítulo 19, Christmas é finalmente morto e castrado. Ninguém pôde, quis ou conseguiu salvá-lo.
«Salvar o Natal»: eis uma das entradas do risível dicionário de termos pandémicos que tivemos a má sorte de conhecer. Como já não há muito para salvar, presumo que se trate de uma estratégia pragmática que tem como objectivo acautelar a injecção de dinheiro dos contribuintes necessária para o normal funcionamento das instituições e perpetuação do controlo social. Perdoem-me a insistência na imagética nazi, mas um livre-trânsito à circulação e ao consumo, seguido, na véspera de Natal, de um pequeno-almoço e de uma troca de compotas no vão de escada, e, no início do ano, de um curto recolhimento profilático, mais parece uma versão paródica do lema «o trabalho liberta». Foi assim, num manicómio em auto-gestão, que recebemos o Natal de 2021.
Perante o império da loucura e a agonia da Natividade, resta-nos a consolação de que o 25 de Dezembro assinala não só o nascimento de Jesus, como também outros acontecimentos sumamente relevantes na história recente da Europa. Ou pelo menos um: a execução por fuzilamento de Nicolae Ceaușescu no dia de Natal de 1989. Não é numa Saturnália que os progressistas querem transformar o Natal? Se for verdade que, nas suas origens, o ritual romano integrava sacrifícios com vítimas humanas, o melhor é definir desde já os critérios de admissão nos altares de sangue e fazer votos de que os canalhas tenham prioridade.
*Investigador científico no Instituto de Sistemas e Robótica de Lisboa.
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