Juremir Machado da Silva*
Ele sabe que chegou a hora, não há mais como postergar, a verdade está pulsando na sua cabeça feito a chuva fina que cai quando ele se põe a caminhar. Os pensamentos se aceleram numa vertigem que o faz tropeçar: nas pernas, nos sonhos, nos medos – como sente medo! –, um medo sempre maior de cair, de não levantar, de ficar sozinho no meio do nada, atravessando o deserto com o camelo nas costas, uma ampulheta na mão esquerda, o relógio de pulso na mão direita, o sangue vertendo no pulso de onde o relógio saiu, os passos maiores do que as pernas numa esteira que não obedece ao comando.
Sabe que sua camiseta verde com uma estampa da Rodésia não o salvará da queda nem o levará a um porto seguro onde possa contar o que sente. E o que sente? Uma mistura de cansaço com raiva, muita raiva de já não ser o que fora, de já não ter a coragem de antes, de não ser mais o cara que prometia mudar o mundo e acreditava na promessa com a fúria de um canto seco e rouco, a voz do sonhador chorando na esquina enquanto tudo se perdia na convulsão do tempo, aos solavancos, tendo ataques, beijando o solo, erguendo-se para continuar numa solidão povoada de sombras e assombrações.
Se pudesse, ele se diz enquanto corre, enquanto morre, faria tudo de novo com algumas pequenas diferenças: olharia no olho do furacão e sorriria como se fixasse o olhar na lente para uma foto três por quatro. Nunca soube, contudo, olhar para a câmera, sentindo sempre a fixação perversa da lente, olho cruel que desvendava os seus segredos na luz triste das tardes ou na escuridão senil das noites escritas no quadro verde da sala vazia. O que lhe restava era essa sensação de pureza, de planta que se exibe sem razão de ser, de lugar solitário na melancolia do parque, como um banco, um pássaro, uma pedra, uma poça de água lenta para evaporar ou vazar.
Agora ele caminha no sentido oposto ao do começo, anda mais devagar por descobrir que do outro lado só há mais do mesmo, a cidade sem bosque, edifícios rondando as nuvens numa tentativa fracassada de tocar o céu. Se soubesse, cantaria uma música em homenagem ao fim do dia, aos transeuntes – gosta dessa palavra feia –, aos que voltam para suas casas cumprindo a rotina dos barcos, dos elefantes e dos empregados com crachás ainda pendurados nos casacos repetitivos. Então se apressa para ser o primeiro a cumprir o esperado, essa meta inútil que o desafia e satura, objetivo que alcança a cada dia sem comemorar nem perceber, feito máquina bem azeitada e obediente, eis a sua principal característica, ia dizer virtude, essa capacidade de seguir a direção da luz, inclusive da luz agonizante.
Ainda se extasia, sim, ele se extasia, com os matizes das cores na descida do céu, assim como se encanta com as súbitas mutações da luminosidade dos dias. Ele sabe que terá de contar tudo de si, algo que o constrange e cansa, não que tenha um grande segredo, talvez seja o mesmo contrário, nada tem para contar, exceto essa certeza de ter feito o caminho, de ter andado sempre para frente sem perceber o quanto regredia, que é como andam as pessoas depois de certo tempo, quando o grande salto já se tornou improvável, ou impossível, e toda manhã se confunde com uma tarde de agosto, aquela tarde de agosto em que teve consciência de si. Não se sente diminuído nem perdido, detesta as dramatizações e ouve música para se alimentar de boas doses de beleza, o que está pegando é uma inclinação repentina para as caminhadas mais longas, os passos mais curtos, o coração mais acelerado, as lembranças se chocando umas com as outras numa pressa esquisita de confessar, de se confessar, de gritar uma mensagem ao mundo.
Houve o tempo em que andava com suas lanças, houve o tempo em que singrava mares, o tempo em que sangrava nas madrugadas. Agora, enquanto aperta o passo sem sair do lugar, busca o ar e o crepúsculo com olhos marejados. Terá de falar e isso o incomoda, pois economiza as palavras para os momentos mais especiais, aqueles em que o silêncio goteja como a chuva fina, que agora aperta, bela na sua leveza, triste na sua melancolia, carregada de história que não voltarão. Ele se vê num espelho imaginário e diz: eis o homem. Tem gosto por essa fórmula, assim como por outra, lida num clássico, avante, pois! É isso que quer, que faz, jogando os braços para frente, sentindo as pernas forçarem o tecido da calça jeans, estufando o peito sem que as velas se enfunem apesar do vento que sopra assobiando.
Pode ficar uma sessão inteira diante do terapeuta sem encontrar todas essas palavras que o habitam enquanto caminha. Quando, contudo, tenta expulsá-las, ou canalizá-las para alguém, elas se calam, refugiando-se nos recantos mais turvos da sua alma, lugares jamais alcançados pelas sondas que lança em busca de informações sobre esse ser, ele mesmo, que se esconde em galáxias distantes, onde nunca alguém esteve, nem ele, no domínio das suas faculdades mentais. O tempo escoa, é hora de cumprir a rotina:
– Avante, pois!
*Jornalista. Escritor.
Fonte: https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/avante-pois-1.734713
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