Anselmo Borges*
1 "Não acredito em Deus porque nunca o vi." "Pensar em Deus é desobedecer a Deus, / Porque Deus quis que o não conhecêssemos / Por isso se nos não mostrou..." Estas são afirmações célebres de Fernando Pessoa.
É verdade: se não houvesse nenhuma experiência de Deus, se ele se não mostrasse, se não se desse nenhuma possibilidade de encontrá-lo, como é que alguém poderia acreditar nele?
À pessoa religiosa Deus manifesta-se tanto na natureza - na sua contingência e ao mesmo tempo na sua beleza, no seu fascínio e nos seus enigmas, remete para uma Fonte criadora -, como na história, concretamente na história da liberdade e nos seus dinamismos: no apelo ao bem e ao respeito incondicional pela dignidade humana em si mesmo/a e nos outros e nesse impulso imparável de transcendência em ordem à realização pessoal e colectiva e da realidade toda, que só no próprio Infinito pode encontrar a sua satisfação adequada.
De qualquer modo, o encontro com Deus só pode dar-se verdadeiramente numa experiência pessoal. É de tal modo decisiva a experiência que Simone Weil, a filósofa e mística, dizia: "De duas pessoas que não fizeram a experiência de Deus, a que o nega está provavelmente mais perto dele do que a que O afirma." Esta experiência pode acontecer em múltiplas ocasiões e de muitos modos: na palavra que nos fala em silêncio no mais profundo de nós, na vivência da beleza sem nome de um pôr do Sol no horizonte sobre o oceano ou no longe da montanha, naquele súbito saber-se a si próprio como dom recebido a partir de uma fonte que jorra desde o abismo, no sentido da vida que de repente se vê ameaçado pela morte, na exaltação sublime de uma sinfonia ou do encontro no amor, no olhar abissal, triste ou saltitante de um ser humano, na solidão insuportável de um abandono, na visita surpreendente de um rosto que nos obriga a um transcendimento total, na recusa existencial radical do absurdo, no apelo suplicante e irrecusável de um esfomeado, no abalo até à raiz provocado pela morte da pessoa amada, no toque irrecusável do ser perguntado e do perguntar sem limites, naquela inquietação que impele permanentemente a pôr-se a caminho, numa experiência única de Jesus Cristo vivo, no acontecimento mais simples, que é, como escreveu o ateu Ernst Bloch, "a mística do quotidiano", sempre em conexão com "a pergunta inconstruível"...
Há sinais de transcendência no mundo. Deus aparece implicado nas experiências radicais e originárias da existência humana, e todas estas experiências são, em última análise, expressão do reconhecimento de que só no Infinito o finito encontra a sua verdade.
A experiência religiosa de Deus é a experiência pessoal mais radical que um ser humano pode fazer. Ela transforma a vida, de tal modo que já nada é como era. Estritamente falando, sobre a relação eu-tu entre Deus e o Homem só pode falar quem fez a experiência. Quem olha de fora é como se estivesse perante o vazio, pois Deus não é objecto de curiosidade objectivante. Mas, quando essa luz interior se acende, a pessoa pode experienciar que a sua existência já não soçobra no nada, não é roída pelo vazio, mas participa no mistério incomensurável, insondável e inesgotável da plenitude do Ser.
2 Fernando Pessoa rezava assim:
"Senhor, Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para
te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no
mar, e mãos para trabalhar em teu nome.
Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faz com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.
Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.
Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a Lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.
Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim."
Esta era a belíssima oração de Fernando Pessoa, num texto que deve ser de 1912.
O que é rezar?
Muitas vezes, crentes e até não crentes queixam-se de que Deus deve estar surdo. Mas ainda bem que Deus não ouve as nossas orações, pois frequentemente só pedimos disparates. Em vez de pedir o Espírito Santo, como Jesus mandou, pedimos a Deus o triunfo do nosso egoísmo e o abate dos nossos adversários; honra, glória e riqueza para nós, e os outros que fiquem na miséria e sejam nossos servos... Por um lado, queremos ser livres e autónomos e, por outro, desejaríamos que Deus resolvesse todos os nossos problemas... Com a ladainha das nossas petições, quereríamos manter-nos na preguiça, continuar infantis e colocar Deus pura e simplesmente à nossa disposição e serviço...
Afinal, Deus dá-nos tudo o que é bom, e rezar é agradecer e louvar e preparar-se para receber o que Deus tem para nos dar... Rezar é ficar à escuta do que Deus no silêncio tem para nos dizer. Rezar não é a tentativa idólatra de converter Deus ao nosso desejo, mas tentarmos nós próprios converter-nos ao desígnio de Deus, que consiste na liberdade digna e na dignidade livre de todos.
Rezar é fazer a paz dentro de nós e lembrar o essencial e olhar para o Infinito e ver o Divino em todas as coisas e contemplar a Presença viva de Deus no mais íntimo de nós e no rosto de cada homem e mulher...
Padre e professor de Filosofia. Escreve de acordo com a antiga ortografia
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/a-oracao-de-fernando-pessoa-14534997.html
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