Por Amália Safatle — Para o Valor, de São Paulo
Maria Homem diz que estamos no ápice de um movimento de desconstrução do patriarcalismo — Foto: Silvia Zamboni/Valor
Discussões sobre equidade, rejeição à dominação do homem branco e hétero ganham força em diversos segmentos da sociedade
21/01/2022
A pauta conservadora de costumes ganhou muitos porta-vozes nos últimos anos, mas, ao mesmo tempo, uma parte da sociedade tem se movido na direção contrária, impulsionada por movimentos refratários à chamada masculinidade hegemônica, ou seja, a dominação do homem branco, hétero e sem deficiência nas instâncias de poder da sociedade.
A discussão sobre equidade e diversidade ganhou contornos mais firmes e passou a ocupar ambientes empresariais notadamente nos últimos dois anos - o período da pandemia. Para alguns dos especialistas ouvidos nesta reportagem, isso significa mais que uma coincidência: vê-se clara correlação com o contexto da covid-19, que acelerou transformações já em curso, ao evidenciar a necessidade do cuidado com os mais vulneráveis e desvelar dados sobre o aumento explosivo da violência contra as mulheres, acometidas também pela sobrecarga de trabalhos - o que colocou os homens na berlinda.
“Estamos no ápice de um movimento global que explodiu nos últimos 50 anos, de desconstrução do patriarcalismo e de diluição da sociedade binária, dividida entre homem e mulher. Cada vez mais usamos expressões como fluxo, gênero fluido, modernidade líquida. E, com a pandemia, tudo o que estava oculto, recalcado, vem à tona de maneira mais clara”, observa a psicanalista Maria Homem, que lecionou no fim de 2021 o curso Masculinidades.
Fábio Mariano da Silva diz que a pandemia expôs a importância da política do cuidado — Foto: Divulgação
“A política do cuidado, exposta na pandemia, é uma questão fundamental para alterar a relação de equidade e a relação com o outro”, explica Fábio Mariano da Silva, doutor em ciências sociais e professor do curso Masculinidades Contemporâneas da PUC-SP. Ele pretende lançar no primeiro semestre de 2022 um livro também intitulado “Masculinidades”, como parte da coleção Femininos Plurais, coordenada pela filósofa Djamila Ribeiro. Segundo os especialistas, a expressão no plural é definidora desse debate.
Para o fundador e diretor de pesquisa e desenvolvimento no Instituto Papo de Homem, Guilherme Valadares, não há discussão séria sobre o tema sem envolver uma perspectiva múltipla, capaz de levar em conta não apenas gênero, mas também raça, orientação sexual e classe. “Deixar isso de lado significa manter uma imensa maioria de líderes brancos nas organizações, trazendo mais mulheres, mas deixando os demais grupos minorizados para trás”, diz.
O clipe do compositor pop Tiago Iorc “Masculinidade” (no singular), lançado em novembro e com mais de 2 milhões de visualizações no YouTube, suscitou elogios mas também críticas nas redes sociais, entre as quais usar clichês do tal homem desconstruído, que se coloca como vítima de uma situação, e por falar apenas da perspectiva do homem branco hétero. “Homens discutem a si mesmos sempre do seu lugar. Mas, no momento em que o vídeo foi lançado, diversas pessoas me perguntaram o que eu tinha achado. São pessoas que não vejo nos meus grupos usuais, então isso mostra o lado positivo da repercussão, de colocar o tema em pauta”, conta Silva.
“Mais importante do que ser um homem desconstruído é sustentar uma prática antimachista”, diz afirma Pedro Ambra, da PUC-SP
Diante da pergunta se surge um “novo homem”, Maria Homem diz que o que existe são novas possibilidades de ser. “Entre um homem biologicamente homem até um sinteticamente homem, que usa hormônios, existem todas as gradações possíveis. Isso mostra que todos os grandes conceitos em ética e em estética estão se desmontando. Não existe mais resposta para o que é ser homem, ser mulher, ser branco, rico, negro, bonito, legal e assim por diante.”
Mas a ideia de que se pode ser o que quiser não é tão simples e tampouco isenta de sofrimento. Segundo a psicanalista, na medida em que o mundo estruturado em hierarquias de poder e definições de papéis derrete, a reação conservadora é de angústia, por vezes seguida de violência. “Por isso chamamos esse movimento de reacionário. Os conservadores não precisavam ser tão conservadores quando o mundo estava com eles. Agora, precisam”, afirma ela.
O embate entre as forças conservadoras e progressistas ocorre hoje, segundo a filósofa, poeta e psicanalista Viviane Mosé, porque a diversidade vai no fulcro na estrutura de poder da sociedade, ou seja, desafia aquele que manda, o patrão, o de cima, o pai. “As mulheres, por exemplo, não aceitam mais o papel que lhes foi conferido. Isso é ponto e não tem mais retorno.”
Guilherme Valadares diz que ainda são as mulheres que contratam seu instituto — Foto: Claudio Belli/Valor
Segundo ela, isso ocorre porque, diante das diversas crises fabricadas por quem esteve historicamente no comando - a ambiental, a social, a econômica, a sanitária -, o poder vigente se enfraqueceu, começou a desabar, e quem estava oprimido passou a crescer. Ao mesmo tempo, o mundo, incluindo o setor produtivo, precisa de inovação para lidar com todas essas crises. “Se a empresa não inova, não avança. Quem faz inovação é quem cria. E quem cria é bicho solto, que tem a cabeça ‘fora da caixinha’. As pessoas que ainda vivem de PowerPoint não têm mais o que fazer neste novo mundo e reagem”, explica.
No campo do contra-ataque, surgem cursos de esposas submissas em grupos evangélicos brasileiros, movimentos nas redes sociais como o TradWives e a Darling Academy, que ensinam as mulheres a se comportarem como nos anos 1950, e até a proposta de ensino de masculinidade na China, onde o governo pretende estimular a educação física para formar lideranças másculas e evitar trocas de gênero. Uma busca no Google Trends mostra a clara reação de grupos conservadores, a exemplo do MGTOW, sigla para Men Going Their Own Way (homens seguindo o próprio caminho). Em uma comparação traçada desde 2008, é possível notar que o interesse pelo termo MGTOW no YouTube americano ultrapassa a expressão “feminismo” a partir do fim de 2018. No Brasil, a busca pela sigla misógina explode a partir de 2019, seguida por uma competição acirrada com “feminismo”.
“Outro exemplo é aquela figura com cornos que representou a invasão do Capitólio [em 6 de janeiro], nos Estados Unidos, trazendo a ideia de que uma masculinidade quase pré-moderna precisaria voltar e se impor, articulada a discursos misóginos que são extremamente perigosos”, diz Pedro Ambra, professor de psicologia da PUC-SP e autor do livro “O que é ser homem? Psicanálise e história da masculinidade no Ocidente” (Annablume, 2015).
Mirian Goldenberg diz que o machismo não é vantajoso para o homem como se pensa — Foto: Divulgação
O livro de Ambra resulta de sua dissertação de mestrado motivada, segundo ele, pela constatação de que havia parcos estudos sobre masculinidade na psicanálise, o que lhe pareceu um problema e deu uma pista: talvez tivesse pouca coisa escrita a respeito do assunto por ainda acharem que o homem é algo universal - e o universal não precisa ser explicado, enquanto o diferente é a mulher, é o louco, é a criança.
Na sua pesquisa, que remonta à modernidade dos séculos XV e XVI, Ambra conclui que a crise da masculinidade não é prerrogativa do mundo contemporâneo, e sim permeia toda a História. Toda vez que há algum tipo de modificação social, com ampliação de direitos às custas da ameaça a determinado privilégio masculino, as explosões dos homens ficam mais evidentes, a fim de resgatar uma masculinidade supostamente perdida - o que o estudioso chama de “mito viril”. E, na medida em que esse discurso conservador é chancelado pela sociedade, sua radicalidade diminui e ele se difunde, dando a aparência de uma maior normalidade. “É um pouco o lugar em que o Brasil se encontra hoje”, diz. “Ao mesmo tempo que o discurso da masculinidade está em xeque, ele mostra toda a sua força, com sinais de que não vai sair de cena tão facilmente.”
A antropóloga Mirian Goldenberg, professora titular da UFRJ, não vê uma crise da masculinidade em si, mas sim dos modelos que associam o homem à superioridade, à violência, à agressividade e à competição. Não que esse questionamento vá trazer transformações para já. “Os discursos e comportamentos estão mudando, mas valores culturais não se alteram tão rapidamente. Por isso, ainda vemos a reprodução e até mesmo o fortalecimento de um modelo de masculinidade já superado”, explica.
“Estamos em plena guerra cultural, na qual se pretende tirar a subjetividade de cidadãos e estipular papéis. Isso é fortalecido por uma ministra [Damares Alves] que reproduz um pensamento fundamentalista e bíblico”, diz Fábio Mariano da Silva. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos foi procurado pela reportagem, mas não respondeu até o fechamento da edição.
Se os estudos acadêmicos sobre masculinidade se mostraram escassos, como observou Ambra, os consultórios psicanalíticos ficaram cheios. Pesquisa nacional com mais de 40 mil pessoas, realizada em 2019 pelo Instituto PdH com a Zooma Inc., que deu origem ao documentário “O Silêncio dos Homens”, mostra que sete em cada dez homens dizem que foram ensinados na infância e adolescência a não demonstrar fragilidade. E também sete em cada dez declaram lidar com algum distúrbio emocional hoje.
“Na medida em que o conservadorismo avança, os homens passam a se movimentar: ou para reforçar esse padrão conservador, ou para questionar o lugar do qual não querem mais fazer parte”, diz Silva. É neste segundo campo que os chamados grupos reflexivos, que se valem de metodologias terapêuticas, passaram a pipocar pelo Brasil, com a finalidade de debater angústias e dilemas masculinos, e para cumprir judicialmente penas determinadas pela Lei Maria da Penha. Neste caso, foram mapeados 312 programas, iniciativas ou grupos voltados para homens autores de violência contra mulheres, segundo pesquisa de 2020 desenvolvida por Adriano Beiras e demais autores. Beiras é um dos criadores da Metodologia de Grupos Reflexivos de Gênero.
As iniciativas de caráter judicial se somam àquelas que surgem espontaneamente na sociedade. Foram listadas 129 no último levantamento do Instituto Papo de Homem, realizado em 2018 - número que, segundo Valadares, já mudou muito, pois toda semana ele diz receber mensagens de pessoas interessadas em montar um novo grupo reflexivo. Uma das movimentações mais significativas que ele observa hoje parte do ambiente corporativo.
O instituto - um desdobramento do portal Papo de Homem, com 1 milhão de acessos únicos por mês - realiza anualmente cerca de 100 palestras e treinamentos em organizações e atende por volta de 30 empresas, entre as quais Google, Unilever, Diageo, Gerdau, Bradesco, Ambev, Cargill e iFood. O tema em comum é o papel e a responsabilidade dos homens na equidade. Valadares informa que a maioria dos pedidos hoje é voltada para a gerência, diretoria e alta liderança. “Quem geralmente nos contrata nas empresas ainda são as mulheres. Fomos contratados por homens apenas duas vezes”, diz.
No entanto, mais de 80% dos homens atendidos afirmaram que gostariam de ser mais capacitados para dialogar sobre o tema em suas organizações. Se há cinco anos os pedidos mais comuns eram de palestras de sensibilização para o público aberto da empresa, de dois anos pra cá o quadro mudou: houve aumentos nos pedidos para realizar ações de aprofundamento e continuidade, com treinamentos mais intensos e ação de longo prazo. Além disso, agora há mais grupos de homens interessados em equidade que já nascem dentro das empresas, o que Valadares vê como um ótimo sinal.
No Memoh, negócio social que também promove grupos reflexivos em ambientes corporativos, cerca de 600 homens já foram atendidos desde 2017, segundo estimativa do fundador Pedro de Figueiredo. Hoje são três grupos por semestre, mais diversificado que no início graças à mudança tecnológica forçada pela pandemia, ao permitir a participação on-line de gente fora do círculo social de Figueiredo - “um cara branco, de classe média, que estudou”, como se descreve.
Foi ao participar do Carnaval de rua que Figueiredo, então funcionário do marketing de uma multinacional, acabou se engajando na causa de movimentos feministas. Daí a montar o Memoh foi um pulo. “Comecei a me tornar um ‘homem incomodado’, como a gente costuma dizer, quando me dei conta de como contribuía para perpetuar a violência baseada em gênero. Nunca me considerei um babaca ‘more’, mas mesmo eu e meus amigos queridos apresentamos comportamentos que não são legais, para dizer de uma maneira ‘soft’. Como todo homem, comecei errando muito. Estava mais preocupado com o que as mulheres tinham ou não de fazer do que olhar para o meu umbigo”, conta.
Ele brinca que participar dos grupos e atividades do Memoh não confere um “selo do Inmetro de cara legal”, de Rodrigo Hilbert, de Lázaro Ramos. “Não existe fórmula mágica para você ser o ‘homem desconstruído’. Muita gente começa a olhar para esse debate de masculinidade como uma possibilidade de adotar um ‘lifestyle’. Assim como tem o do surfista, o cara do mercado financeiro, e agora o do homem sensível. Mas o ponto não é sobre um estilo de vida, é sobre um compromisso ético com essa pauta há mais de meio século debatida e confrontada pelas mulheres”, diz.
“Mais importante do que ser um homem desconstruído”, afirma Pedro Ambra, “é sustentar uma prática antimachista que vai desde passar o rodinho na pia até apoiar movimento de mulheres sem necessariamente buscar um protagonismo”. Em seu entendimento, rever conceitos de masculinidade é algo que fará bem aos próprios homens, na medida em que abandonar o mito viril pode ser libertador.
No entanto, ele diz acreditar que a transformação nas relações de gênero não deve passar apenas por uma modificação de postura pessoal. “Isso é importante para cada indivíduo, mas o mais necessário é mudar a estrutura. Como se eu pudesse de fato me desconstruir e me transformar totalmente, a despeito da sociedade [que mantém uma estrutura patriarcal]. A coisa me parece um pouco mais complexa”, diz.
Um dos incômodos de Figueiredo, do Memoh, é o fato de que até hoje as mulheres, além de trabalhar e muitas vezes chefiar a família, dão o suporte para que a sociedade funcione, fazendo o cuidado das casas, das crianças e dos idosos - enquanto os homens estão na rua criando suas redes de networking e com mais tempo de se desenvolverem profissionalmente.
Mirian Goldenberg se surpreende que os homens brasileiros ainda usem a expressão “ajudar” nas tarefas domésticas, enquanto em outras sociedades, como a alemã, a sueca e a espanhola, objeto de suas pesquisas, eles naturalmente fazem compras, cozinham, lavam e buscam os filhos, sem que a mulher tenha que ficar dizendo o que precisam fazer. “Lá existe um acordo entre cada casal. As mulheres estudam, trabalham e querem um parceiro, um companheiro para a vida. E não um ajudante.”
Mas é um engano, na visão da antropóloga, pensar que o machismo pode ser bastante vantajoso para o homem ao cultivar condições privilegiadas como essas. No livro “A invenção de uma bela velhice” (Record, 2020), ela explora as diferenças entre homens e mulheres e mostra como o modelo de masculinidade também produz sofrimento nos homens, levando-os ao alcoolismo e à depressão, principalmente quando envelhecem. “Quando eles saem do mercado de trabalho, o grande pânico não é o de perder o trabalho: é perder os colegas, o prestígio e a posição social. Quando saem, eles vão para onde? Vão para casa, um espaço que nunca dominaram.”
Mas Goldenberg também vê casos de homens que, com o envelhecimento, tornam-se capazes de descobrir um mundo que não conseguiram viver enquanto jovens: o do afeto, da família e do cuidado. “No entanto, são pouquíssimos os que conseguem fazer disso um projeto de vida, porque, na cultura brasileira, o homem que não está ativo no mercado de trabalho é como se não existisse.”
Mosé, que diz já ter sido criticada por mostrar os homens como vítimas do próprio patriarcado, reafirma que de fato eles sofrem de uma opressão que individualmente não criaram, e que resulta de um profundo processo histórico. Além dos indivíduos, a sociedade também padece ao assumir características masculinas. Segundo ela, é o mundo competitivo que não levou vacinas para a África, assim como é o mundo agressivo que faz girar a economia às custas da destruição ambiental. “A visão machista não vai encontrar o caminho para esses problemas. E nem a feminista. A que vai encontrar soluções é a da diversidade”, diz.
Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2022/01/21/o-que-e-ser-homem-hoje.ghtml
Nenhum comentário:
Postar um comentário