Mas o poeta da floresta e da integração latinoamericana, preso e exilado pela ditadura de 1964, ainda acredita: é possível construir uma sociedade solidária
A história é poética. Não poderia ser diferente. Personagens principais: um poeta e uma poesia. Thiago de Mello, ainda moço, está preso em uma cela, “muito estreita”, lembra ele. E, pelo tom de sua voz, podemos até preencher os espaços vazios do relato e imaginar uma luz sombria; um policial resvalando o cassetete nas grades enferrujadas; paredes com pintura desvanecida pelo tempo, inscrições e até mesmo com aqueles risquinhos de contagem do tempo.
Estamos em 1968. Os militares estão no poder e o poeta “rodou” depois de participar da Passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro. É certo que ele pensa que se fodeu e que a incerteza sobre o que o aguarda nas próximas horas o consome. Mas ele lê na parede: “Faz escuro mas eu canto porque a manhã vai chegar”. Dá também para imaginar como seus olhos se iluminaram e até ouvir uma trilha sonora em crescente. Afinal, é seu poema épico, ao lado de “Estatuto do Homem (Ato Institucional Permanente)”, que escreveu em uma noite chilena de 1964, renunciando ao seu posto diplomático (era, então, adido cultural no Chile) após os militares brasileiros tomarem o poder e publicarem o Ato Institucional nº 1.
Mas, enquanto Thiago de Mello me conta essa edificante história sobre seu famoso poema, só penso em um Ford EcoSport. Aquela caminhoneta percorrendo cenários idílicos e despovoados em uma propaganda da TV. Uma voz, em tom grave, ao fundo, declamava o Estatuto do poeta amazonense. Pelo menos, foi assim que, na infância, aprendi a admirá-lo: em um comercial de carro. Queria saber quem era aquele cara que falava que as janelas deveriam ficar sempre abertas para o verde e que poderíamos brincar com os rinocerontes.
Ouço a história e, enquanto decido se conto ou não sobre isso de poesia/EcoSport, faço um comentário trivial.
Então o senhor chegou a ser preso na época da ditadura…
Eu fui preso, mas não me gastaram, não. Fiquei um mês e meio só, interrogatório, tal isso, tal aquilo.
Essa conversa aconteceu no ano passado. Thiago de Mello visitava
São Paulo para comemorar seus 90 anos – segundo ele, completados em 30
de março de 2016 com “disposição renovada”. O Poeta da Floresta,
amazonense de Barreirinha, vive atualmente à beira do rio Andirá, a 330
quilômetros de Manaus, e seria homenageado pela Biblioteca Mário de
Andrade. Estávamos no lobby de um hotel do centro; ele vestia branco,
calças e camisa, combinando com sua cabeleira, o que lhe conferia ares
messiânicos. Perguntou a minha idade e, como se avaliasse minha
juventude, chacoalhou a cabeça.
Eu pertenço a uma geração em que os editores queriam valorizar o escritor-moço e corriam atrás. O José Olympio [que fundou a editora homônima, em 1931]
a [editora] Brasiliense com o Caio Prado Júnior, Péricles Eugênio [da
Silva Ramos, editor de diversas antologias], José Paulo Paes [da editora Cultrix]. Hoje tem a 7Letras [editora carioca, uma das pioneiras da “impressão por demanda”]
em que um moço como você tem que pagar para publicar. Ninguém publica
mais poesia porque a alma do negócio não é mais o sonho, mas o lucro.
Eu também balancei a cabeça, em resposta, condescendente. Ele continua.
Mas sonhar só vale quando se tem os pés cravados no chão. Eu posso sonhar de levar vocês dois [está presente também seu assessor de imprensa] para a floresta: vocês entram no coração da floresta comigo e, dali a pouco, vocês estão até namorando uma cabocla.
Um sonho possível. Só ter milhas para comprar a passagem de avião.
É. Vamos trabalhar?
Vamos. É meio clichê, eu sei, falar que “há muitos brasis”. Mas o senhor está agora aqui, no centro de São Paulo, sendo que há dois dias estava em uma cidadezinha do interior do Amazonas. Viu – e vê – esse contraste. Qual sua impressão desses brasis?
Quero que tu saias da terceira pessoa do singular e eleve-se. Subas para a segunda, para o tu. Na floresta, quando vou sair para o barco, vêm as crianças e falam: “poeta, poeta, tu me levas pro outro lado?”. Mas isso na cidade de São Paulo é difícil.
Acho que a resposta que eu tenho para ti é que essa variedade, diversidade, só valoriza essa sociedade humana chamada Brasil. Porque a gente a encontra no lugar mais diferente – e para usar uma palavra pobre e infeliz do ponto de vista de uma sociedade capitalista – “mais atrasado”, como, por exemplo, essa pequena comunidade no meio da floresta onde eu vivo – chamada Freguesia do Andirá, nome antigo dado pelos portugueses – e em São Paulo, cidade considerada a maior metrópole da América Latina.
Aconteceu alguma coisa em São Paulo. Para começar: o Mário de Andrade viu em um seringueiro dormindo um homem igual a ele e ficou espantando! Ele não sabia que os homens da floresta que cortavam a seringueira para tirar leite também dormiam cansados e, quando viu isso, pensou: “ué, ele é igual a mim”. Mas, quando Macunaíma vem para cá, eles se encontram.
A primeira vez que sai da floresta – com 15 anos de idade, para ir pro Rio de Janeiro porque lá [no estado Amazonas] não havia faculdade – eu me espantei: tem bonde aqui! Essa diversidade valoriza, ao invés de confundir, em um difícil processo de aculturação. É difícil. Veja: a criança pergunta à mãe: “por que a gente não tem essas coisas aqui também?”. Vê, na televisão e na internet, a cidade e a selva: aqui tem metrô e lá só tem canoa! De vez em quando, aparece um motor rabeta: essa é a máxima velocidade para eles.
Isso tudo enriquece a sociedade humana dentro da qual a gente vive e trabalha para que seja uma sociedade humana solidária. Estamos longe de ser, mas cada um de nós faz a sua parte. A minha é a palavra escrita. Meus versos. Meus pensamentos. Meus sentimentos. Aproveito para dizer que eu sou um poeta que, cada vez mais, acredita que não há uma separação formal e infeliz entre o sentimento e a inteligência.
É, uma oposição muito trabalhada na história, não é mesmo?
Isso! Para começar, os dois são cérebro. O sentimento não está no coração. Aqui [dá duas batidinhas no peito, com a mão espalmada] está o músculo cardíaco que controla as coronárias, os vasos, a circulação correndo pelas artérias. Inteligência está aqui [cutuca com o indicador a fronte]. E sentimento também. Tanto que muita gente morre de infarto com gol do Corinthians.
No seu trabalho estão sempre presentes a questão amazônica e a integração latino-americana. É um sonho antigo a busca pela “Pátria Grande”, vem mesmo antes de Bolívar. Mas como superar as feridas coloniais? Parece que o Brasil dá as costas para a América Latina.
O trabalho pioneiro que iniciei como adido cultural das embaixadas do
Brasil em países da América Latina – que eu chamei de integração
cultural – era muito mais amplo. Era a ideia de que um país rico pudesse
ajudar um país pobre, liberando impostos e integrando mão de obra.
Certas riquezas capitalistas da construção industrial ficaram somente no
campo da ciência. Quando eu estava no Chile, embora eu tivesse ajuda do
próprio governo chileno e da embaixada do Brasil, fazíamos inúmeras
reuniões com representantes da América Latina. Éramos pioneiros.
Falávamos que éramos – e continuamos a ser – um continente que não se
conhece. Um continente cujas relações são só em nível de governo e de
ministérios da economia. Os verdadeiros valores culturais de cada país
não estão na diferença de idioma que existe entre países de língua
hispânica, tanto que na Venezuela ninguém sabe nada do Peru e no México
não se sabe nada do Equador. É preciso afirmar isso com esperança, mas
dizer a verdade: não nos conhecemos.
Tratamos de fazer isso [integrar os países]
através dos escritores, dos poemas, dos cantores, dos músicos e
consegui, depois de seis meses de integração, trazer o Pablo Milanés [cantor e compositor cubano]
para cantar em São Paulo e no Rio de Janeiro. Também trouxemos
escritores numa ação conjunta. Fizemos a promoção do Chile no Brasil,
mandando vários arquitetos, escritores e jornalistas para lá.
Integrar é conhecer. Depois da fase de se conhecer, se passa para uma maior: a conscientização da necessidade de integrar. Essa integração que se pretende em nível continental sequer é feita entre os estados brasileiros. As universidades, por exemplo, não têm um nível de integração. Vivemos ilhados.
Por que a gente não se conhece?
É cultural, algo que veio também do nosso passado colonial. Embora naquele tempo do Brasil Colônia se conhecesse muito de Portugal e, hoje, se conhece pouco. Ninguém lê mais Eça de Queiroz aqui. Está se lendo pouco Machado de Assis, nosso principal escritor. Eu faço uma pergunta para você. Você se comunica com outros órgãos do país?
Sempre tem a internet e dá para rolar alguma comunicação. Mas, no geral, sempre ficamos “ilhados” nesse trechinho Rio-São Paulo.
Pois é pouco. Vivemos ilhados.
O discurso de preservação e de sustentabilidade parece, muitas vezes, apropriado pelo capitalismo. Falo isso porque muito se fala da natureza, mas não de que essas ações predatórias são políticas e de quem mais sofre com ela: o povo das florestas.
Sim, é mais sério. Assim como o Brasil desconhece a vida de nossos irmãos da América Latina, também desconhece o maior manancial de vida que tem o planeta: a floresta amazônica. Para a integração entre floresta e povo é preciso, em vez de preservar, salvar a floresta. Senão não há integração. E sem o povo a floresta é só paisagem. Quem dá vida à floresta – no sentido da dinâmica da vida dela – é o homem. É o homem que passa a conhecê-la numa relação mágica: bate no tronco e conhece a resistência da árvore contra ventanias e temporais; através de experimentações, conhece a lenha; descobre até remédios. Para todas as doenças que existem no mundo há um remédio. Nesse momento se estuda a casca de uma árvore chamada unha-de-gato e o chá de sua casca que pode ser usado para tratamento do câncer, desde que o diagnóstico tenha sido feito precocemente. Quando os portugueses chegaram na floresta os índios já tinham a copaíba [anticicatrizante] e a andiroba [antibiótico], o melhor curativo que tem. Eu dou o exemplo de Anita, minha gata selvagem de rua – salvamos a vida dela –, que me arranhou aqui [mostra o braço direito]. Passei pomada de copaíba e, três dias depois, olha só! [sorri, mostrando algumas discretas marcas] Mas eu não vou castigar ela, não. Ela não é educada, coitada.
Não há um risco – ou até um fato, como estamos vendo em muitos casos – desse discurso de preservação ser apropriado pelo capitalismo?
Há muito tempo a ação intensa do poder do capitalismo sobre a floresta é só de cifrão. É um exemplo danoso: abatem a floresta para extrair suas riquezas. E, com a avanço do capitalismo, muitas áreas das florestas são escolhidas para se abater e serem transformadas em áreas agrárias, como acontece hoje na Amazônia com o plantio de soja. No estado do Mato Grosso há um enorme trabalho de abatimento dessas áreas para a pecuária. Também temos muitos estrangeiros comprando terrenos na floresta. Vivemos uma ocupação estrangeira e o Brasil até hoje não tem uma política florestal. Isso a Marina [Silva, liderança da Rede] diz muito bem. No estado amazônico um empresário chega ao governo e faz decretos para ampliar seus hectares [reduzindo as áreas de preservação] e passa a adquirir propriedades. Não temos uma política florestal rígida. Eu tenho um livro chamado “Amazonas – Pátria da Água” [Editora Bertrand Brasil, 2002] que trata disso. Eu busquei contribuir para o conhecimento da floresta com meus livros. São seis ou sete livros só sobre a vida na floresta: suas lendas, seus mitos, seus milagres, suas grandezas, suas misérias também. Afirmei com veemência que, dentre os bilhões de vegetais que ali existem, não chegam a cinco por cento aqueles cujos princípios químicos ativos foram estudados no Brasil. Os naturalistas, os biólogos e os cientistas europeus estudaram a floresta. Nós, infelizmente, não estudamos. Agora, você não quer saber nada de poesia né?
Já que perguntou, aqui vai uma pergunta poética. O senhor… quer dizer, você escreveu que a “liberdade é algo vivo e transparente”. A gente está fazendo bom uso dela ou nesse contexto político estamos mesmo num “pântano enganoso”?
Nós estamos. Eu estou celebrando a juventude dos meus 90 anos. Só vim a saber fazer a minha parte, para servir a determinada causa, quando fui atingido pelo raio da pobreza e da injustiça. Com a formação que eu tive dos meus pais, comecei a ter uma consciência solidária. Tenho minha arte que é comprometida com a construção de uma sociedade humana solidária. Eu fiz essa opção. Eu coloco a minha arte a serviço da conscientização e acredito que é possível a construção de uma sociedade humana solidária. Coloca essa frase no final.
Fonte: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/assimchegamos-a-era-do-futilitarismo/ 14/01/2022
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