Anselmo Borges*
Bertolt Brecht, o dramaturgo marxista ateu, para quem a Bíblia era livro fundamental de referência, deixou esta história: "Alguém perguntou ao senhor K. se Deus existe. O senhor K. disse: Aconselho-te a reflectir sobre se o teu comportamento mudaria segundo o tipo de resposta à pergunta. Se não mudaria, podemos deixar cair a pergunta. Se mudaria, então posso pelo menos ajudar-te até ao ponto de dizer-te que já te decidiste: Precisas de um Deus."
O dramaturgo alemão viu claramente que a fé em Deus por interesse, de tal modo que se acreditaria para alcançar o Céu ou para evitar o inferno, está ferida de suspeita. Se Deus existisse como recompensa para que as pessoas façam o bem e sobretudo como travão para que deixem de fazer o mal, não estaríamos em presença de Deus, mas do Polícia do mundo. Esse Deus está ameaçado de não passar de projecção do desejo humano e do medo. Desse modo, Freud teria razão no seu ataque à religião, ao considerá-la uma ilusão infantil e infantilizante, que leva o crente simultaneamente ao aconchego e à blasfémia.
Ao crente é preciso perguntar: Se lhe fosse revelado que afinal Deus não existe?! Sentir-se-ia aliviado? Finalmente livre? O que é que mudaria na sua vida? Seria a derrocada moral? Ou pura e simplesmente não aceitaria essa "revelação", porque, ao viver de certa maneira - na dignidade, na solidariedade, na fraternidade, na beleza, na interrogação radical e sem limites... -, já experienciou que a realidade e a sua própria existência devem ter um valor e Sentido últimos? Deus não é o garante da vida moral, mas pode ser experienciado enquanto co-implicado nas grandes experiências humanas, também na existência moral. A fé significa essencialmente uma determinada atitude face ao todo da realidade e da existência.
O que deve unir crentes e não crentes é a busca honesta e sincera da verdade e o combate generoso por uma Humanidade melhor, mais solidária e feliz. Nesta procura e nesta luta comuns, pode entreabrir-se a esperança fundada de um Sentido final para a realidade e para a existência. O ateísmo, se não for banal nem primitivo ou ridicularizante, mas inteligentemente desafiante, responsavelmente reflexivo, com dúvidas e um perguntar inexaurível, não é inimigo da fé que sabe que precisa de purificar-se sempre. Como a fé adulta constituirá permanentemente um desafio para o ateu que não se contenta com o dado, que quer ir até à ultimidade, que transcende para o Humanum na sua radicalidade. A fé enquanto abertura à Transcendência é sempre antídoto contra o narcisismo individual e colectivo.
Afinal, como escreveu Joseph Ratzinger, "o crente e o não crente, cada um à sua maneira, participam na dúvida e na fé... Nem um nem outro podem subtrair-se completamente à dúvida e à fé... Talvez precisamente a dúvida, que impede um e outro de se fecharem totalmente em si mesmos, pudesse tornar-se o lugar da comunicação. Ela evita que ambos girem exclusivamente à volta de si próprios; abre o crente ao que duvida e o que duvida ao que crê; para o primeiro, ela é a sua participação no destino do não crente, para o outro, a forma como a fé, apesar de tudo, permanece nele um desafio".
Isto significa que a fé não pode encerrar-se nas muralhas de um dogmatismo fixo e morto, mas tem de abrir-se ao diálogo e à razão crítica. Esta abertura e este diálogo são tanto mais urgentes quanto os fundamentalismos, também os fundamentalismos religiosos, se tornam um desafio e perigo maiores.
A fé verdadeira não tem medo da razão autónoma, pois sabe que a razão, levada até aos limites das suas possibilidades, se acende na noite e também sabe que só o Homem livre pode dizer sim ao Mistério. Para tentar balbuciar este Mistério, é necessário entrar em diálogo com todas as ciências, com todas as filosofias, com todas as religiões.
Nestes tempos de penúria e de noite, como disseram o poeta F. Hölderlin e o filósofo M. Heidegger, nestes tempos de niilismo, é tarefa decisiva da Igreja não deixar obturar a interrogação originária que nos faz homens e mulheres livres. É necessário manter acesa a pergunta radical e inconstruível, que é o sinal de que o Homem transcende o dado e de que não pode ser encerrado num positivismo crasso e obtuso.
Afinal, onde está Deus?
Deus está, antes de mais, nesta própria pergunta. Enquanto houver homens, hão-de confrontar-se com os enigmas do tempo e do amor e da morte, com a pergunta pela origem e pelo Sentido último da realidade, e, consequentemente, com a questão de Deus. Suponhamos uma sociedade na qual não existisse sequer a palavra Deus. O que é que aconteceria, se a simples palavra "Deus" deixasse de existir? Respondeu o famoso teólogo Karl Rahner: "Então o Homem já não ficaria situado perante o todo da realidade enquanto tal, nem perante o todo uno da sua existência enquanto tal. Pois isto é o que faz a palavra "Deus" e só ela. Não notaria que já só pensa perguntas, mas não a pergunta pelo perguntar em geral. O Homem teria esquecido o todo e o seu fundamento e teria ao mesmo tempo - se é que assim se pode dizer - esquecido que esqueceu. Que seria então? Apenas podemos dizer: deixaria de ser Homem. Teria realizado uma evolução regressiva, para voltar a ser um animal hábil. O Homem só existe propriamente como Homem quando diz "Deus", pelo menos como pergunta. A morte absoluta da palavra "Deus", uma morte que eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já não ouvido por ninguém, de que o Homem morreu."
Padre e professor de Filosofia. Escreve de acordo com a antiga ortografia
Imagem da Internet
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/e-se-deus-nao-existisse-14489915.html
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