Juremir Machado da Silva*
A vida é permanente recomeço
03/01/2022
Mais um ano começa e eu me recolho diante do espelho para tentar me reconhecer na figura que me contempla, mais velha, mais oscilante, às vezes, mais triste, esperançosa, porém. Nos últimos dois anos, marcados pela pandemia, colhemos notícias ruins. Perdemos amigos, conhecidos, colegas. Sentimos na carne as vacilações da alma. Tememos por nós e pelos que amamos. Fizemos de tudo para tentar entender o que estava acontecendo. Só não conseguimos compreender os boicotes às vacinas contra a Covid-19. O tempo passou, num salto acrobático, enquanto tentávamos nos blindar contra o medo. Quando bons ventos pareciam soprar mais leves, aparece uma nova variante do vírus.
Ainda estamos em meio à tempestade. Semeamos, contudo, afetos, abraços virtuais, sentimentos reais, esperanças concretas, sonhos sem abstração, desejos realizáveis, planos que dependem de nossos braços e de boas políticas governamentais. Nesses meses todos, que se eternizaram na imagem da doença, acumulamos, sem dúvida, ressentimentos, até ódios passageiros, pois quem tem alma grande não cultiva sentimentos pequenos por muito tempo, perplexidade. Quantas vezes me vi diante deste mesmo espelho, a barba embranquecida brotando no rosto como tufos de algo perdido, perguntando ao homem de olhos baixos do outro lado do cristal: por que tudo isso? Sim, eu me faço perguntas retóricas, escrevo crônicas melancólicas, acredito nas virtudes do riso, mas também me permito momentos graves, até solenes.
Mais um ano se passou e eu ainda colo meus cacos, inventario minhas perdas, rego os meus brotos, cultivo a crença no futuro, planto palavras para colher encontros e alegrias. A principal característica do humano é certamente essa capacidade de voltar a semear. Quando tudo parece bloqueado, quando todas as luzes se apagam ou bruxuleiam, quando todos os caminhos se estreitam, ainda brilha, inexplicavelmente, alguma fagulha que faz recomeçar. As passagens de ano, meras convenções numa linha de continuidade existencial, têm esse dom de acender expectativas, por um instante fazer emergir a luz no fim do túnel, mesmo que seja apenas uma ilusão com data marcada para expirar. O vitalismo faz ir à luta, apostar, plantar, recomeçar.
E assim vemos a vida se ramificar. Por vezes, em tempos difíceis, tudo se desertifica. Depois, de repente, o verde ressurge. Olho, da janela, a arvorezinha que recomeça a brotar, pela terceira vez, e me entusiasmo. É como se ela me dissesse: resistiremos. Então eu volto ao espelho e digo: estamos vivos. Não é uma confissão, muito menos uma declaração de guerra, tampouco uma provocação. Apenas um murmúrio que se traduz numa quase ingênua crença na força do amor, da amizade, da vida. Imagens na televisão se contradizem, solidariedade e miséria, desalento e ajuda desinteressada, tudo se mistura. Um ano chega ao fim e eu me preparo para recomeçar. Quero novamente acreditar no futuro, encontrar portas abertas, esquecer as mágoas, aprender com meus erros, dizer para quem quiser ouvir: feliz ano novo. Avante!
*Jornalista. Escritor.
Fonte: https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/cada-ano-com-seus-desafios-1.749646
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