terça-feira, 25 de janeiro de 2022

O livro que não foi entregue

 Leo Aversa*

. Foto: Leo Aversa 
Foto: Leo Aversa 
 
 Queria ser um grande escritor e ter a sabedoria e o talento para escolher as palavras certas, as que tragam algum conforto e sentido para o que aconteceu

No início de outubro passado, Cidinha comprou dois livros iguais para os filhos, Victor e Conrado. Queria dar de presente algo sobre pais e filhos, os dois já têm os seus. Um carinho de mãe.

Não deu.

Conrado, que morava em outra cidade, faleceu no fim de outubro, num acidente. Cidinha não teve tempo de entregar o presente. Ainda tem o livro na cabeceira, esperando a hora certa de ler.

Ela me escreveu na semana passada. Sou o autor do livro que queria dar de presente. A mensagem pedia algumas palavras, um texto, uma crônica, algo que fale sobre o livro que não foi entregue.

É uma mãe que perdeu um filho, não é necessário dizer mais.

Queria ser um grande escritor e ter a sabedoria e o talento para escolher as palavras certas, as que tragam algum conforto para ela e sentido para o que aconteceu. Sei que é preciso grandeza para falar do que é importante, mas também sei que sou das coisas pequenas, do cotidiano, dos instantes que passam voando, como as páginas do jornal. Não sei se sou a pessoa certa, mas fiquei muito comovido com a mensagem, com a situação.

Mesmo sem as palavras exatas, sem o talento preciso, aqui estou.

Minha cara Cidinha, deixe para trás o que não foi entregue, o que não foi dito, o que não deu. Guarde o muito que vocês viveram. Não os grandes acontecimentos: aquela viagem de férias única, as festas de aniversário, as datas especiais. Esses ficam nos álbuns de fotos das estantes, nos vídeos do grupo da família, nos retratos enquadrados na sala de estar.

Eles já têm o seu lugar.

Que você guarde, com cuidado e com amor, o dia em que ele ralou o joelho no futebol e você ficou soprando o Merthiolate pra não doer. “Vai passar, vai passar”, você ensinou com carinho. Lembre aquela vez que você foi buscá-lo na saída da escola e ele voltou, de mãos dadas contigo, contando como tinha sido fantástica a brincadeira no recreio, dizendo que aquele tinha sido o melhor dia da vida dele. Guarde o sorriso que você deu. Não esqueça da sua felicidade quando ele trouxe um boletim só com notas altas, depois daquela bronca que você deu quando as notas ficaram vermelhas. Recorde quando vocês brigaram porque ele não queria arrumar o quarto, a vez que ele disse ia embora de casa. Lembre da cara dele na porta, ameaçando ir, mas só esperando o seu abraço para ficar.

Guarde na memória o momento em que você percebeu que ele já era um homem e que estava chegando o dia de ele ir embora de verdade, o tempo de ter sua própria casa. Foi quando você ficou triste e feliz ao mesmo tempo — aquela sensação que só os pais sabem como é — pensando como seria o futuro dele longe de casa, de você.

Não esqueça o dia em que ele avisou que ia ser pai. Aquele, você ficou pensando na vida que tinha passado, na vida que estava a caminho. Lembre dos sorrisos, das lágrimas. Lembre das coisas pequenas e cotidianas de vocês.

Cidinha, o livro que não foi entregue fala das pequenas recordações, que são minhas, são suas, são de todos nós, pais. São essas memórias do dia a dia que vão te acompanhar — pela mão — o resto da vida. São elas que vão soprar a sua dor, dizendo, com carinho, “vai passar, vai passar”.

* Jornalista. Escritor.

Fonte: https://oglobo.globo.com/cultura/o-livro-que-nao-foi-entregue-25365998 - 25/01/2022

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