Marcia Disitzer
Marcia Disitzer Foto: Foto de Eduardo Alonso com arte de Silvana Mattievich
Marcia Disitzer faz relato a fim de retirar a aura de tabu do assunto como parte do mês dedicado à valorização da vida
Eu lembro como se fosse hoje. Devia ter uns 25 anos e fui fazer exame médico para ser admitida no meu segundo emprego em um jornal, no qual ingressei, na época, como produtora de moda. Ainda não tinha me formado em Jornalismo. O médico, bastante frio e mecânico, fazia as perguntas de praxe sem olhar nos meus olhos. Até começar a investigar o meu histórico familiar. ‘Sua mãe tem alguma doença?’, ele perguntou. ‘Já morreu’, respondi, querendo desconversar. Mas ele prosseguiu. ‘Qual foi a causa?’, indagou. ‘Suicídio’, disse, como quem dispara um tiro curto e seco para ninguém ouvir. Ainda assim, o homem-gelo continuou. ‘E seu pai, algum problema de saúde’. Respirei fundo e avancei mais uma casinha. ‘Também já morreu’. ‘De quê’, ele retrucou. ‘Suicídio’, balbuciei entre os dentes, constrangida. Nesse instante, ele levantou a cabeça e pousou seus olhos, pela primeira vez, sobre mim. Ele queria saber quem era aquela menina: teria eu herdado o DNA suicida? Seria uma pessoa propensa à depressão com esse currículo sombrio? Quando ele me enxergou, deparou com uma sobrevivente. Assim eu me sentia aos 20 e poucos anos.
Apesar de o suicídio ser até hoje um assunto pouco debatido, cercado de preconceitos, existem atualmente campanhas de conscientização e de prevenção, como a do Setembro Amarelo, e o Centro de Valorização da Vida (CVV). Mas em 1979, quando meu pai decidiu morrer, era um tabu absoluto. Nasci no Rio, numa família judia de classe média. Meu pai era engenheiro e minha mãe, apesar de ter se formado em Química, tocava o negócio fundado pelos meus avós maternos, que vieram da Romênia para o Brasil antes de o nazismo se instalar na Europa. Aqui, eles passaram a vender roupa e, na década de 1970, tinham uma próspera loja no Flamengo, em frente ao antigo cinema Paissandu. Sou a caçula de três irmãs. Ao contrário delas, comunicativas e populares, era uma criança extremamente tímida, ao ponto de a minha mãe me colocar na terapia com 8 anos, numa época em que isso era pouco comum. Tudo parecia sob controle, mas mal sabia eu que vivia numa panela de pressão, prestes a explodir. Fui atropelada pelo suicídio aos 12 anos, de um dia para o outro. Meu pai se enforcou com um cinto no banheiro da suíte do casal. Isso depois de algumas tentativas frustradas, sendo que, numa delas, a queda livre janela abaixo foi impedida por mim, que o segurei. O que levou o meu pai a procurar a morte foi o fato de a minha mãe desejar a separação. ‘Mas três filhas não seriam motivo suficiente para querer viver?’ pensava, inconformada. Não quando se tem uma doença psiquiátrica denominada PMD (psicose maníaco-depressiva, o equivalente ao transtorno bipolar na terminologia atual), tentavam me explicar os médicos. Nada fácil de entender.
Entrei na adolescência, graças à terapia, bem mais soltinha. A década de 1980 era uma festa e eu participei dela. Adorava ir à praia no Posto 9, frequentava embalos que não tinham fim, tinha amigos e namorados. Mas, em casa, o mundo desabava. A culpa e o desvario do suicídio do meu pai fizeram com que minha mãe, uma mulher ativa e superelegante, entrasse num beco sem saída. Fui, então, apresentada a outra doença, a depressão. Minha mãe passava os dias ensolarados dentro do quarto, com as cortinas fechadas. Eu chegava e saía, e lá estava ela, dormindo.
Minha mãe procurou a ajuda de psicanalistas e psiquiatras, que passaram a medicá-la. E foi aí que outro problema começou: não bebia, não fumava e não se drogava, mas os comprimidos receitados para aliviar a dor logo pararam de surtir o efeito desejado. Então, em vez de uma pílula, ela passou a tomar duas, três, quatro, quantas fossem necessárias para apagar e se desligar do mundo. Tornou-se dependente química. Ao contrário do meu pai, que como um homem-bomba se explodiu rapidamente, ela foi se matando a prestação, com remédios que a deixavam 100% ausente. Em plena adolescência, eu ia e vinha sem ter que deixar recado. Era livre no abandono.
Aos 18 anos, conheci meu primeiro grande amor. Marcio tinha 34 anos, três (lindos) filhos e era um dos donos do Circo Voador. A gente se apaixonou. Agarrei-me a ele como quem gruda numa tábua de salvação num oceano agitado. Ele era o oposto do que eu presenciava todos os dias. Animado, produtivo, sorridente e contador de ‘causos’, ele me colocava para cima. Profissionalmente, andava bem perdida; estudava Jornalismo na UFRJ, mas não sabia onde me encaixar. Até passar um mês em Fortaleza, com o Circo Voador, e assinar o figurino de uma montagem da peça ‘No Natal a gente vem te buscar’. Eureka! Eu queria trabalhar com figurino. Voltei ao Rio e meu namorado me apresentou a uma famosa figurinista, a Biza Vianna. Tranquei a faculdade e me tornei assistente dela em peças teatrais. Fomos muito felizes trabalhando juntas e tive a oportunidade de participar de espetáculos incríveis. Na noite de estreia de um deles, chamado ‘A mulher carioca aos 22 anos’, o inevitável aconteceu. Minha mãe, 11 anos depois do meu pai, deixou o gás do fogão tomar conta da cozinha. Acordei com o telefonema da minha irmã mais velha me dando a notícia de que ela havia se matado. Lembro de ter dado um grito que ecoou por toda Santa Teresa, bairro em que morava.
Mas, como o universo é mágico, cerca de três meses depois, recebi um telefonema que, além de me tirar do luto, mudaria a minha vida para sempre. Assim, tal qual um milagre, a jornalista Regina Martelli, então editora de moda da Revista de Domingo do Jornal do Brasil, me ligou. Ela estava em busca de uma produtora de moda; eu, de um sentido para minha vida. Fui à icônica redação da Avenida Brasil no dia seguinte, usando uma saia de matelassê laranja e na boca, um batom vermelho. Ela me olhou de primeira e disse: ‘Está contratada’. Nossa empatia foi imediata e Regina entrou na minha vida como um anjo, abrindo caminhos, apontando direções e provando que a vida e o trabalho poderiam ser bem divertidos. Graças a esse encontro, destranquei a faculdade de Jornalismo e me formei em dois anos. Tinha, finalmente, encontrado o meu propósito. Cinco anos depois, em 1996, já separada do Marcio e casada novamente, nasceu minha única filha, Sarah. E aí sim pude ser a mãe que gostaria de ter tido (um pouco exagerada, tenho que admitir).
Hoje, aos 52 anos, sinto-me pronta para falar sobre a morte dos meus pais. Filha de dois suicidas, eu sempre amei viver e consegui ficar do lado do sol. De uns tempos para cá, volta e meia, recebo a notícia de pessoas que tiraram a própria vida, jovens, inclusive. De acordo com o Ministério da Saúde, em dado revelado em setembro do ano passado, um caso de suicídio aconteceu a cada 46 minutos, em 2016. Já os familiares, aqueles que ficam, são chamados de ‘sobreviventes enlutados’ no jargão psicológico. Resolvi compartilhar a minha história para, quem sabe, ajudar alguém. Este depoimento é o primeiro passo.”
08/09/2019 - 04:30 / Atualizado em 13/09/2019
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