Na última segunda-feira (3), o jornalista Juremir Machado da Silva escreveu uma série de postagens em suas redes sociais anunciando que havia sido demitido do jornal Correio do Povo, onde trabalhava desde 2000. “Hoje, fui demitido. O projeto de extrema direita bolsonarista não quer saber de pluralismo”, escreveu.
Nas postagens, ele lembra que já havia sido demitido da Rádio Guaíba, que, assim como o Correio do Povo, é de propriedade da Rede Record, em agosto de 2020 após um episódio em que o programa que apresentava à época, o Esfera Pública, ter sido impedido de entrevistar o ex-presidente Lula.
Nesta sexta-feira (6), Juremir conversou, por meio de aplicativo de videoconferência, com a reportagem do Sul21 sobre os episódios. Na conversa, que durou cerca de 30 minutos, ele conta que rádio e jornal deram uma guinada para a extrema-direita com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência, especialmente a partir de 2020. Chefes passaram a controlar a lista de convidados do programa de rádio, temas começaram a ser proibidos de serem abordados em sua coluna de jornal, ao ponto que, na fase final de sua trajetória, já se autocensurava por saber que alguns temas “não iriam passar” e seria apenas uma perda de tempo.
“Teve o episódio do feijão e do fuzil, em que o Bolsonaro disse que idiota era quem comprava feijão, que o mais importante era comprar fuzil. Eu fiz um comentário bem irônico para o podcast e aí o chefão lá, o bispo que manda na empresa, disse: ‘Tira’. Extinguiu o podcast. O podcast que eu tinha fazia há um bom tempo acabou. Ali foi uma sinalização bem clara do que pode e do que não pode. Aos poucos, política não podia mais”, diz.
Juremir, que segue como professor Escola de Comunicação, Artes e Design da PUCRS, também fala sobre o contexto atual do jornalismo brasileiro, em que os espaços para a discussão plural se fecham cada vez mais.
Sul21 – Eu queria que tu começasse falando sobre esse episódio da saída do Correio do Povo, que citou nas redes sociais que já vinha lá trás, citando o episódio que a direção Rádio Guaíba te impediu de entrevistar o ex-presidente Lula faltando dez minutos para o início da conversa. Mas como foi esse processo final?
Juremir Machado: Deixa eu te dizer o seguinte, a Guaíba e o Correio do Povo, como as pessoas sabem, pertencem à Rede Record e estão aqui no Rio Grande do Sul desde 2007. A chegada deles aqui, para mim, profissionalmente, foi boa. E, durante muitos anos, foi uma relação com boa, com muitas oportunidades e coisas que foram acontecendo positivas para mim. Por exemplo, a criação, em 2010, do programa Esfera Pública, na Rádio Guaíba, que eu fiz durante dez anos com a Taline Oppitz.
Aí, com a chegada do Bolsonaro ao poder, as coisas começaram a se transformar. Ainda ao longo de 2019, foi razoável, deu para fazer. Mas, em 2020, eles se assumiram como bolsonaristas de fato, radicais. O trabalho foi ficando difícil. O Lula foi libertado no final de 2019. Eu tive covid-19 lá por março e, depois disso, quando eu voltei ao rádio, consegui uma entrevista com o Lula, que seria para nós uma bela entrevista, um belo momento. Na hora de botar a entrevista no ar, faltando dez minutos, eu recebi a ordem de que não podia fazer. Derrubamos a entrevista. Aquilo ficou marcado, o Nando Gross, que era o chefe, lutou muito para que a entrevista pudesse entrar no ar, não deu, e depois disso ele também se desgastou e uns três meses depois foi demitido. Passou-se mais um mês, eu acho, e também fui demitido. Não foi uma coisa imediata entre a entrevista e a demissão, mas aquilo deixou marcas. Até tem um detalhe, um mês depois da entrevista cancelada, eu tentei de novo. Fiz uma consulta se ‘podia agora entrevistar’ e houve uma nova recusa. Pelo menos, essa segunda vez não teve o vexame de estar com o presidente plugado e não poder fazer a entrevista.
Isso deixou marca e fez com que eu fosse visto, cada vez mais, como um corpo estranho, esquerdista, petista, radical. Coisas que eu não sou. Não tenho nada contra os petistas, nada contra os militantes, mas eu não sou, sou um jornalista independente que expressa a sua opinião, que faz as suas entrevistas, que escreve crônicas, que escreve artigos. Então, o que se viu é que, em 2020 e 2021, a bolsonarização foi crescente. Ela foi por partes, primeiro a Guaíba e depois o jornal.
Sul21 – O Esfera Pública foi, provavelmente, o programa mais importante de debates políticos na rádio do Rio Grande do Sul nos últimos anos, pela questão de sempre ter convidados da política. Lembro de ir à Assembleia Legislativa cobrir votações e o Esfera estar realizando debates ao vivo com deputados de vários partidos, debates quentes dos assuntos em pauta. Quando começou ter essa questão de que não era bem para convidar todo mundo? Teve isso de questionar porque estavam ouvindo tanto ‘esquerdistas’? Essas orientações para não ser tão plural vinham de cima para baixo?
Juremir: O Esfera Pública, eu tenho orgulho disso, foi um programa que começou e as pessoas não acreditavam. ‘Uma hora da tarde, vai concorrer com o Sala de Redação’. Tinha gente que dizia para mudar o horário. Depois se consolidou, justamente por ser um programa muito pluralista. Aconteciam coisas fantásticas ali. Eu lembro de um deputado que decidiu renunciar. Foi apertado com denúncias e renunciou ao vivo no programa. Isso é uma coisa, jornalisticamente falando, incrível.
Sul21 – Quem foi?
Juremir: O deputado Baségio [Diógenes, PDT, renunciou em 2015 após ser acusado de praticar a ‘rachadinha’ em seu gabinete na Assembleia Legislativa]. Eram coisas que aconteciam. A gente cobria tudo. O pessoal lembra de 2013, da época do Movimento do Passe Livre, eles iam lá. A esquerda ia lá, a direita ia lá, os movimentos sociais, o Stédile ia lá, a direita toda, toda. Bibo Nunes ia lá, todo mundo ia lá. A gente fazia debates, de vez em quando, tinha gente que se engalfinhava e tinha que apartar, porque poderiam sair no corpo a corpo. As pessoas falavam, não era só um minuto e acabou. Eu sempre conto a história de uma vez que tive que derrubar uma ligação porque o cara não tinha retorno e falou por 25 minutos. Ia falar a vida inteira. Coisas assim, era fantástico, divertido, empolgante, porque tinha aprofundamento. O programa foi se consolidando. As pessoas vinham de fora e avisavam: ‘Olha, estou indo aí’. Guilherme Boulos, Roberto Requião, a gente entrevistava grandes figuras nacionais. O Lula, antes de ser preso, foi entrevistado por nós. Fomos a São Miguel das Missões. Isso é uma prova de que até ali podia, depois mudou.
Sul21 – Durante a caravana pelo Estado, em 2018?
Juremir: Isso. Começou a mudar em 2019, 2020. Com a saída do Nando, aí já era outra coisa. Mas, antes disso, já tinha um diretor que começou a exigir lista dos convidados do Esfera uma hora antes do programa entrar no ar. Ele ainda não interferia. Via ali, fazia cara feia, opinava contra um nome, mas não interferia. Depois disso, já era outra fase. Eu me lembro bem disso, ‘vamos parar com esse Lenio Streck’, e outros nomes. Esse tipo de coisa começou a acontecer e foi ficando bem difícil. Eu senti que ia ser demitido e fui. Teve um episódio até da escolha do reitor da UFRGS, que não era o primeiro da lista.
Sul21 – O reitor Carlos André Bulhões, indicado por Bibo Nunes.
Juremir: Eu fiz críticas e elas foram malvistas internamente. O ponto culminante foi o dia que tivemos uma entrevista com a Fernanda Melchionna [deputada federal pelo PSOL] e, depois, para equilibrar com o Jerônimo Goergen [deputado federal pelo PP]. Já era na pandemia, era tudo por telefone, não dava tanto para fazer os debates. A Fernanda falou bastante, a entrevista foi longa. Na vez do Jerônimo, a internet falhou, a conexão caiu, não dava para ouvir direito e a entrevista ficou bem mais curta e truncada. Aí ficou parecendo, para quem queria ver assim, que a gente tinha privilegiado a Fernanda e mal e mal colocado o Jerônimo. Depois disso, eu recebi um telefonema do RH pedindo o meu atestado de liberação para o trabalho, porque eu tinha voltado da covid sem entregar. ‘Ah, não, é só para botar na pastinha’. Mas já era para estar com a documentação pronta para a minha demissão.
Sul21 – Tu ficou no Correio do Povo por mais de um ano, um ano e meio. Como foi esse processo? Tu passou por alguma questão de controle de conteúdo nesse período?
Juremir: É uma mesma empresa, mas com nuances, aspectos específicos. O Correio é muito mais aberto, enquanto o Nando foi demitido, o que abriu o caminho para a bolsonarização da rádio, o Telmo felizmente continuou no Correio. É um grande diretor de redação e tudo isso ajudou a manter um certo espaço de pluralidade. Mas ele foi se esgotando, porque quem decide mesmo está em cima. O problema não é com a redação, as pessoas da redação são maravilhosas. O problema era lá em cima. Um exemplo disso, quando a coisa realmente começou a fechar, foi lá por agosto. Mas aí, também, eu fui ficando cheio de cuidados…
Sul21 – Tu chegou a te autocensurar?
Juremir: Claro que eu me autocensurei. É dentro dessa linha que eu iria explicar. Eu acredito nessa linha da Teoria da Trincheira, ficar dentro de uma trincheira, de uma estrutura, não podendo dizer todas as coisas, mas tentando dizer as essenciais. Eu acho melhor do que estar fora e não poder dizer nada. Uma posição pragmática, guerra de guerrilha. É uma coisa que eu aprendi com o meu mestre Edgar Morin, na França, que dizia: ‘Temos que explorar as brechas. Não temos tudo, mas se tem uma brecha, temos que explorar’. Eu fiquei ali por todas essas razões, não era uma razão, antes de tudo, alimentar. Se fosse, seria mais que legítimo. Quem tem um emprego tem que zelar pelo seu emprego. Mas não era, era uma questão de gostar e de acreditar que podia ainda mudar, porque tinha sido bom antes, poderia voltar a ser. Bastava, por exemplo, que o chefão que está aí fosse embora, e eles vão embora sempre. Então, eu estava ali na luta do dia a dia, tentando resistir e passar algumas coisas. De vez em quando, passava um contrabando, uma coisa mais ácida.
Mas a coisa realmente começou a fechar quando — eu tinha um podcast no site do jornal — teve o episódio do feijão e do fuzil, em que o Bolsonaro disse que idiota era quem comprava feijão, que o mais importante era comprar fuzil. Eu fiz um comentário bem irônico para o podcast e aí o chefão lá, o bispo que manda na empresa, disse: ‘Tira’. Extinguiu o podcast. O podcast que eu tinha fazia há um bom tempo acabou. Ali foi uma sinalização bem clara do que pode e do que não pode. Aos poucos, política não podia mais. Eu tinha sido muito um comentarista político. Criticar o Bolsonaro já não podia mais, de jeito nenhum. Mas havia muitos outros assuntos importantes que eu queria tratar e fui tratando dentro dessa ideia de explorar as brechas. Eu falava muito, por exemplo, de combate ao racismo. Aí também chegou um momento lá em que o sujeito disse: ‘Esse negócio de racismo divide o País, vamos tirar um pouco o pé’. Tava muito difícil. Aí as pessoas dizem: ‘Mas por que não saiu?’ Eu não sai porque acreditava que devia combater, devia estar lá dentro, eu gostava de estar e achava que, aos pouquinhos, conseguiria respirar de novo, ter espaço. Pensava assim: ‘De repente chega o fim do ano, passa o bolsonarismo e tudo melhora’. Era essa a crença, pode ser uma crença ingênua, mas era a minha aposta. Sempre foi a minha aposta entrar num lugar, negociar. Claro, a maior parte do tempo eu tive condições melhores, foram esses últimos dois anos que realmente ficaram ruins. E a coisa foi crescendo. Ela era mais ou menos, depois ficou ruim, ficou muito ruim, até que ficou insustentável.
Sul21 – Tinha um controle forte sobre o teu trabalho. Parece que tudo que tu fazia era olhado com lupa.
Juremir: Mas claro. Absolutamente tudo. Já não saia mais nada sem chegar, como a gente diz, no terceiro andar. Era o terceiro andar que decidia o que podia e o que não podia. Eu estava sob observação estrita. Claro, eu sou um cronista também, fazia crônicas que eu gostava muito, belíssimas crônicas, do meu ponto de vista, modestamente falando. Claro, tinha dias que era vergonhoso, porque um assunto que deveria ter sido tratado não fora tratado, porque não passaria, seria uma perda de tempo. Eu me inspirava um pouco no pessoal da turma do Chico Buarque, durante a ditadura, e eu emitia uns contrabandos cifrados. Meu penúltimo texto foi bem isso. No sábado (1º), sobre o filme ‘Não olhe para cima’. Eu critiquei o negacionismo, critiquei o obscurantismo, sem precisar citar o Bolsonaro, nem ninguém. Ali, passou.
Sul21 – Tu chegou a publicar poesias também, né?
Juremir: Publiquei muita poesia, porque eu sou poeta, vou publicar um livro de poesias agora. Mas também, às vezes, publicava porque ‘vou me incomodar menos hoje’. ‘Hoje eu não quero me incomodar, então vai uma poesia’. Me incomodava com outros, porque a poesia é um terreno complicado, tem os donos do campinho. ‘Ah, tu não é poeta’ (risos). Os donos do campo ficavam indignados, me esculhambavam. Mas aí era outra coisa, o problema mesmo era ter ficado sufocado.
Sul21 – Eu queria fazer uma pergunta para o Juremir professor. Como tu vê a situação do jornalismo brasileiro nesse momento? Não olhando só para o teu caso, que, claro, é talvez o maior exemplo de censura, ao menos no Rio Grande do Sul. Como tu vê esse período e como compara com outros momentos em que políticos também tinham dificuldades, digamos assim, com a imprensa?
Juremir: Eu queria dizer que eu acho que a academia é o último reduto de liberdade no País. Por isso que o governo não gosta. São pessoas que se posicionam. A academia é muito pluralista, multifacetada. Eu estou dentro de uma universidade maravilhosa, que é a PUCRS, tenho orgulho de ser professor há 27 anos. A PUCRS, como outras universidades, tu olha para o lado e tem um professor que é social-democrata, outro que é socialista, outro que é comunista, outro que é neoliberal. Todos ali, convivendo, algo espetacular. Tu vai a um congresso, tem gente de todos os horizontes ideológicos. A ideia de que a academia só tem esquerdista é coisa de quem não conhece. Tu está sentado nas alamedas e passa um neoliberal, daqui a pouco passa um social-democrata. Então, eu me orgulho de pertencer à academia.
O jornalismo está passando por grandes transformações, a primeira é o resultado da mudança tecnológica, que tem um impacto enorme. A tendência é que o jornal em papel acabe, imagina o custo, a operação, quando isso já está, de certo modo, superado, é mais geracional. Tem uma geração que ainda curte muito o papel, mas as coisas se aceleraram. As redações precisam de menos gente, encolheram. Claro, também tem sempre a exploração capitalista, que quer ganhar dinheiro fácil explorando as pessoas, mas acho que o principal problema é tecnológico. E essas novas gerações não são tanto de ler jornal. Mas ainda tem muito impacto o jornal, eu vi na própria saída do Correio agora. Modestamente, foi uma avalanche de manifestações. Ainda tem muita leitura. Um noticiário como o Jornal Nacional está numa decadência, mas tem 50 milhões de espectadores, um troço impressionante.
Agora, comparando tempos políticos, eu pesquisei muito, como historiador, sobre o período getulista, a ditadura, escrevi livros. E eu achava que isso era passado. Não imaginava que nós viveríamos isso e que eu seria vítima disso. Eu sou um historiador, um jornalista, estou fazendo contigo, aqui, uma espécie de terapia. Eu não sou o tipo que alguns dizem, que o ‘Juremir é muito radical’. De radical, eu não tenho nada. Posso ter tido num passado muito distante de estudante anarquista. Eu sou um cara moderado que convive bem com todo mundo. Me dou bem com a direita, me dou bem com a esquerda. Lá no programa ia o Marchezan [Nelson, ex-prefeito de Porto Alegre pelo PSDB], sou super amigo dele. Ia o Pozzobom [Jorge, prefeito de Santa Maria pelo PSDB]. Era amigo dele, temos uma relação cordial. Eu não sou do tipo ideológico, que detesta uma pessoa porque ela é ideologicamente diferente de mim. Não, tenho grandes amigos de direita, conservadores. Meu grande amigo francês Michel Houellebecq, talvez o escritor mais importante do mundo hoje, é um cara conservador. Os livros dele não são, mas ele é. Falei com ele na semana passada, entende. Eu não sou de dizer que não vou ser amigo de uma pessoa porque ela é direita ou esquerda. Claro, a extrema-direita é difícil de suportar, porque ela é, num momento como esse, negacionistas, obscurantista e complica um pouco. Mas eu acho, de toda a maneira, que o jornalismo está bem no Brasil. Está dividido como sempre esteve. Tem a Record bolsonarista ao extremo, e tem a Globo que hoje é o contrário. A Globo está fazendo um jornalismo muito bom. O jornalismo do Jornal Nacional e da Globo News está muito bom, estão dizendo as coisas que têm que dizer. O editorial do Jornal Nacional de ontem [quinta-feira] em relação às bobagens que o Bolsonaro disse sobre crianças serem vacinadas, que ele nunca viu uma criança morrer por não ser vacinada contra a covid, foi um belo editorial. Então, tem coisa boa. E tem toda a imprensa, como esta, do Sul21 e tantos outros, que é essa nova imprensa alternativa na internet, que está fazendo um trabalho espetacular. Aí tem da imprensa mais militante a menos militante, mas fazendo um trabalho fantástico. Então, o jornalismo está sendo reinventado. Claro que essas reinvenções e mutações provocam um estrago, pessoas perdem empregos. Por exemplo, há toda uma transformação no negócio jornalismo, na maneira de fazer. Quando eu comecei, na Zero Hora, em 86, a redação tinha, sei lá, 300 pessoas, hoje certamente não tem. Havia uma multiplicidade de funções, o fulano faz isso, o beltrano faz aquilo, essas coisas foram desaparecendo. Então, mudou muito, mas o jornalismo não vai desaparecer, o que possivelmente desapareça é o jornal impresso.
Sul21 – Não te preocupa esse fechamento de espaços que tentavam ser mais plurais, mesmo em redes que não eram tão plurais, buscando, como o tu disse, as brechas? A gente sabe que o jornalismo está se fechando em nichos e a grande imprensa sempre foi quem tentou falar para mais gente. Agora, mesmo ela parece estar querendo falar para públicos específicos. O que aconteceu na Record não parece ser exclusividade. Tu pega as outras rádios de Porto Alegre e elas também tentam falar para esse mesmo público. Tu ainda crê na possibilidade de espaços plurais?
Juremir: Olha, eles estão se fechando e é triste. Eu sou um discípulo de John Stuart Mill, liberal inglês do século XIX, que defendia a importância do debate, contraditório, das ideias em confronto, para que as pessoas tirem as suas conclusões. Era isso o Esfera Pública. Coloca as pessoas para debater e o ouvinte tira as conclusões. Durante um bom tempo, eu participei do ‘Guerrilheiros da Notícia’ [programa da antiga TV Guaíba], do Flávio Alcaraz Gomes, que era um homem conservador e tinha essa visão. Convidava pessoas de bordas diferentes para o debate. Eu mesmo ia lá e não era de direito. Isso era legal. Durante dez anos, na Guaíba, eu passei diariamente do programa do Rogério Mendelski, eu era o contraponto. Funcionava. A grandeza do programa era isso, não eram várias pessoas pensando a mesma coisa. Eu era, em carne e osso, ali, a diferença. Eu acho muito ruim que isso desapareça e só existam bolham, mesmo de esquerda ou de direita, tem que misturar. Eu sou amigo de um grande sociólogo francês, Dominique Wolton, que escreveu um livro fantástico chamado ‘O elogio do grande público’. Para ele, a TV aberta era a mais importante que a TV a cabo, na época em que a TV a cabo estava sendo cantada em prosa e verso. Por quê? Justamente por isso que tu disseste, é o espaço que reúne a diferença. Enquanto que a TV segmentada, e a mídia segmentada, fala para os convencidos. Aí, tem uma utilidade, mas eu sou de uma escola que acredita que tem que mesclar. Claro, tu não vai passar todo o tempo dando espaço para o cara, todos os dias, dizer que a Terra é plana. Pera aí, isso aí não adianta, é para coisas que possam ser sustentadas e debatidas. Então, eu acho lamentável que os espaços fiquem tão reduzidos e tão poucos plurais. A Guaíba virou um foco de extrema-direita quando era um espaço plural. Não estou dizendo que tinha que ser uma rádio de esquerda, não, eu acredito no pluralismo. Eu acho que tem que servir diferentes pratos nesse cardápio e, às vezes, até no interior de um mesmo programa. O Esfera Pública fazia isso. A gente convidava muito o Lenio Streck, que é um cara brilhante. Mas a gente convidada também o outro lado, o Ives Gandra Martins, o Modesto Carvalhosa. Convidava o Kim Kataguiri, mas convidava a Márcia Tiburi. Aí o pessoal diz que eu fiz uma arapuca para ela. Foi uma grande injustiça. Por que eu ia fazer? Eu adorava a Márcia Tiburi, qual seria a motivação para eu sacanear ela? A gente esqueceu de avisar num dia de correria, o dia do julgamento do Lula no TRF4. Foi um erro lamentável pelo qual nós pedimos desculpas, mas esses erros acontecem. Imagina que nós íamos querer sacanear quem a gente gostava, não tem lógica. Nós éramos vistos, eu, principalmente, como de esquerda. Por que eu iria sacanear a Márcia, que é de esquerda, para favorecer o Kim, que é de direita? Tem que ter uma racionalidade nesse negócio, não tem. Ali era fazer falar todo mundo. A gente levou lá o Cesare Battisti, mas levava o extremo oposto.
Sul21 – O Bolsonaro antes de ser presidente.
Juremir: Ficamos mais de uma hora e meia nos engalfinhando. E mais de uma vez ele foi foi entrevistado no programa.
Sul21 – Para fechar, tu pretende, agora, aproveitar dessa maior liberdade ou pensa em buscar um novo espaço para fazer a luta de trincheira?
Juremir: Várias coisas. Eu sou professor, fui a vida inteira e continuarei professor. Por exemplo, se quisesse, ia imediatamente para a França, tenho convite para ser professor visitante em universidade francesa. Mas, agora, com a pandemia, não vou sair do Brasil. Depois, certamente em algum momento aproveitarei esse tipo de convite. Agora, estou conversando com várias pessoas. Se der para fazer, em algum lugar, um Esfera Pública, vai ser fantástico. Durante algum tempo, fiquei afastado porque a minha voz não estava boa, mas queria voltar. Tem várias possibilidades na internet ou fora e vamos ver. Existe vida fora.
Fonte: https://sul21.com.br/noticias/entrevistas/2022/01/juremir-fala-sobre-censura-e-demissao-nao-podia-mais-falar-de-politica/
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