Ana Ruepp*
A cidade moderna opõe a comunidade à sociedade.
No livro The Fall of Public Man,
de Richard Sennett, lê-se que uma comunidade, na cidade moderna,
actuará sempre como se fosse o único conjunto de indivíduos capaz de ser
verdadeiramente humano (à luz desta ideia todas as outras comunidades
serão vistas como menos humanas). Numa sociedade cujos espaços se
encontram fragmentados, as pessoas vivem sempre com medo de perder o
contacto próximo social. Impulso e intenção são as únicas substâncias
disponíveis para que as pessoas se possam relacionar na cultura moderna -
todas as emoções experienciadas numa comunidade determinam que tipo de
pessoas formam aquele grupo.
Para
Sennett, a construção de uma comunidade local proposta por urbanistas
pode ser extremamente perigosa para a vivência de uma cidade - muito
mais importante será a tentativa de reativar o verdadeiro sentido do
espaço público e da vida pública na cidade e no seu todo.
A
solidariedade que existe dentro de uma comunidade tem uma função
perversamente, estabilizadora em relação às mais alargadas estruturas da
sociedade, porque segundo Sennett, quanto mais envolvidas estão as
pessoas em problemas e desentendimentos de pequena escala, mais
intocável permanece a atual ordem social. (Sennett 2017, 382)
“Most
so-called progressive town planning has aimed at a very peculiar kind
of decentralization. Local units, garden suburbs, town or neighborhood
councils are formed; the aim is formal local powers of control, but
there is no real power that these localities in fact have. In a highly
interdependent economy, local economy, local decision about local
matters is an illusion.” (Sennett 2017, 383)
Uma
sociedade que receia impersonalidade encoraja fantasias relacionadas
com a constituição de vida coletiva e comunitária de carácter íntimo,
local, reduzido, segregado e fechado. A concretização de quem somos - a
nossa identidade - é feita através de diversos atos seletivos da nossa
imaginação: família, trabalho e vizinhos. Para Sennett, na sociedade
moderna torna-se cada vez mais difícil o relacionamento e a
identificação com aqueles que não conhecemos - pessoas que nos são
estranhas mas que até poderiam partilhar interesses culturais, étnicos e
religiosos comuns. Porém as ligações impessoais ainda que étnicas ou de
classe não são fortes o suficiente e para criar vínculos duradouros
entre pessoas que não se conhecem. Quanto maior a imaginação local maior
se torna o número ilusório de interesses em comum - quanto mais
reduzido é o sentido do eu, menos riscos pessoais serão tomados. A
recusa em lidar, absorver e explorar realidades fora da escala íntima é
aparentemente uma característica humana universal, porque está
relacionada simplesmente com o intrínseco medo do desconhecido.
Para
Sennett, qualquer comunidade está assim construída sobre uma fantasia, é
produto de um engano e da projeção de um ideal: “What is distinctive
about the modern gemeinschaftcommunity is that the fantasy people share is that they have the same impulse life, the same motivational structure.”
Comunidade
é então, como já foi escrito no início, a união entre semelhantes
impulsos e motivações, sentidos com grande intensidade local. Se dentro
de uma comunidade novos impulsos emergem esses terão de ser
imediatamente destruídos ou reprimidos - porque aquele alguém que muda
ou substitui os seus motivos estará a trair a comunidade. Para Sennett,
qualquer desvio individual ameaça a força do fragmento - por isso, todo o
indivíduo que pertence a um grupo fechado será sempre posto em prova e
estará sob constante vigilância. Suspeição e solidariedade formam então,
a comunidade moderna.
Mesmo
pertencendo a uma comunidade o ser humano experiencia sentimentos de
afastamento, de desentendimento e de indiferença em relação ao mundo
exterior. O mundo mais alargado em relação a uma comunidade moderna, é
visto como algo menos autêntico e menos real - é um mundo que não tem
espaço para emoções individuais. Ao não se deixar manipular ou
influenciar por desejos emocionais, o mundo exterior não é um desafio,
mas um vazio. O indivíduo moderno procura por contacto social íntimo,
somente junto daqueles que o entendem e desliga-se do mundo mais
alargado: “This is the peculiar sectarianism of a secular society. It is
the result of converting the immediate experience of sharing with
others into a social principle.”
Num
contexto mais alargado, as únicas ações que uma comunidade pode tomar
estão relacionadas com a coordenação e controlo de emoções e a constante
distinção entre aqueles que lhe pertencem ou não: “The community cannot
take in, absorb, and enlarge itself from the outside because then it
will become impure.Thus a collective personality comes to be set against
the very essence of sociability - exchange - and a psychological
community becomes at war with societal complexity.”(Sennett 2017, 385)
Sennett
escreve ainda que foram os urbanistas mais conservadores que fizeram
acreditar que uma pessoa só é sociável se se sentir segura, protegida e
num ambiente estreito e controlado. Segundo os mais conservadores, o ser
humano é destrutivo, violento e perigoso por natureza se não tiver
barreiras, fronteiras e distâncias mínimas. Este pensamento urbanista
conservador, para Sennett, é um erro mas o autor admite ser o resultado
de uma cultura gerada pelo capitalismo e pelo secularismo moderno que
transforma o conflito entre irmãos lógico sempre que se usam as relações
íntimas como base para as relações sociais. (Sennett 2017, 385)
Sennett
pensa que os seres humanos têm uma verdadeira capacidade para a vida em
grupo em condições de superlotação (de seres e de coisas) - a arte de
criar praças numa cidade tem sido praticada com grande sucesso desde há
séculos e geralmente sem arquitetos formalmente treinados. Sempre que o
urbanista procura melhorar a qualidade de vida comunitária tornando-a
mais íntima está a contribuir para uma irreversível esterilidade e por
conseguinte a contribuir ativamente para a morte da vida e do espaço
público na sociedade moderna. Sendo assim, se tomarmos tudo isto em
conta, a ideia de uma comunidade local forçada pode ser em casos
extremos perversamente utilizada como um meio eficaz de controlo e pode
por isso opor-se a qualquer ideal democrático.
“Historically,
the dead public life and perverted community life which afflicts
Western bourgeois society is something of an anomaly.” (Sennett 2017,
385)
*Mestrada em Arquitetura pela Universidade de Lisboa, Pós-Graduada e Mestra em Fine-Arts pela University of Arts de Londres
Fonte: https://e-cultura.blogs.sapo.pt/a-forca-do-ato-criador-1222326 01/03/2022
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