Januária Cristina Alves*
É preciso mostrar narrativas nas quais os personagens compartilhem como é estar na guerra, viver em conflito, fugir e perder seus entes mais amados
Se a guerra entre a Rússia e a Ucrânia não dá trégua, se as redes sociais seguem com seus bombardeios ensurdecedores de notícias misturadas à toda sorte de desinformação, aqui, em cada casa de família, em cada sala de aula, nós, adultos, tentamos explicar às crianças e adolescentes que história é essa. Tarefa inglória, não é verdade? E o que é pior, fadada ao fracasso, pelo menos à primeira vista. Como explicar às crianças que, até agora, a cada minuto, uma delas torna-se refugiada? Como fazê-las entender que há muitos outros interesses em jogo por entre bombas e tanques, que são maiores e mais preciosos que a vida humana?
Seres humanos que somos, compostos por palavras e gestos, tanto quanto como por átomos, mais uma vez parece que só a arte, e em especial as histórias, nos salvarão do buraco negro do medo da morte iminente que, nesse mundo globalizado, espreita cada um de nós. “Por fazermos parte de uma saga escrita com palavras, precisamos ser nutridos não somente com leite, mas também protegidos por estas mantas: histórias, contos e poemas – capazes de ligar os que estão chegando com os que chegaram há tempos e com os que já se foram. Ler é assistir essa conversa entre os que estão – aqui e agora -, os que vivem longe ou já morreram e os que viverão quando já não estivermos aqui”, diz a escritora Yolanda Reyes, especialista em literatura colombiana, em seu livro “A substância oculta dos contos: As vozes e narrativas que nos constituem” (ed. Pulo do Gato). As histórias nos conectam, nos ensinando que estamos todos no mesmo barco e por isso, nos tornam mais conscientes dos nossos medos, fragilidades, prazeres e alegrias, e sobretudo, nos fazem mais empáticos, nos proporcionando a sensação de pertencimento que, se cultivada desde sempre, certamente evitaria guerras como essa.
Não à toa uma imagem desse conflito (já são tantas e sempre tão doloridas!..) viralizou nas redes sociais: a foto de uma janela de um apartamento integralmente fechada por livros em Kiev correu o mundo, suscitando tantas interpretações quanto os cliques que o post recebeu. A imagem foi originalmente publicada pelo usuário Lev Schevchenko, que viu a cena no seu bairro, Voskresenka, uma área residencial a nordeste do centro da capital ucraniana. Atrás da janela daquele quarto alguém se escondia: talvez crianças, ou seriam escritores, bibliotecários, ou simplesmente uma pessoa que só tinha livros para se proteger dos estilhaços das bombas? Fico imaginando que, concretamente, esses livros protegiam aquele apartamento do horror, garantindo a vida de seus habitantes, e, tal como narra uma das nossas maiores escritoras infantojuvenis Lygia Bojunga Nunes em seu “Livro – Um encontro (Casa Lygia Bojunga)”: “Pra mim, livro é vida; desde que eu era muito pequena os livros me deram casa e comida.”
Como explicar às crianças que, até agora, a cada minuto, uma delas torna-se refugiada nessa guerra? Como fazê-las entender que há muitos outros interesses em jogo por entre bombas e tanques?
Além de estarem vivendo a guerra e tentando compreendê-la, as crianças são personagens dela. Imagens e vídeos de meninos e meninas sendo levados no colo, arrastados pelas mãos, chorando ao se despedirem dos pais que vão para a luta, se multiplicam nas redes sociais, como o vídeo de Amelia Anisovych, uma menina de sete anos, refugiada em um bunker na Ucrânia, compartilhado mais de 15 milhões de vezes só no Twitter. Com um sorriso no rosto, sonhando em um dia ser uma cantora famosa aplaudida num palco, a garota canta “Let it Go”, tema do filme “Frozen”, emocionando a todos do esconderijo e a todos nós, espectadores dessa história cujo final queremos acreditar que virá em breve e será feliz.
E já que as crianças são parte de tudo isso, é preciso iluminá-las com histórias, com livros que tragam narrativas nas quais os personagens compartilhem como é estar na guerra, viver em conflito, fugir de seu país, de suas casas e escolas por causa de uma invasão, perder seus entes mais amados no meio de um fogo cruzado onde não há vencedores. Nesse sentido, as crianças brasileiras são privilegiadas, porque dispõem de um amplo leque de opções para lerem (ou ouvirem um adulto ler para elas) sobre a guerra, em suas múltiplas dimensões. Já em 1942 o visionário escritor Monteiro Lobato se preocupava em explicar a Segunda Guerra Mundial aos pequenos leitores em “A chave do tamanho” (ed. Companhia das Letrinhas), nas palavras da maior de todas as avós da nossa literatura, Dona Benta: “A humanidade forma um corpo só. Cada país é um membro desse corpo (...) Uma bomba que cai numa casa em Londres e mata uma vovó de lá, como eu, e fere uma netinha como você (...) me dói tanto como se caísse aqui.”
Para quem quer se embrenhar nessas histórias com seus filhos, alunos, sobrinhos, afilhados, amigos, agregados, e por que não, com a “sua criança”, aquela que nos fará lembrar das dúvidas infantis que tínhamos e que ao longo da vida não soubemos responder, deixo algumas sugestões literárias dentre as muitas que as nossas livrarias dispõem em suas prateleiras. Esses livros poderão ser um refúgio para nossas crianças e jovens tão embrenhados nesse mundo ligeiro e caótico, talvez se tornem “casa e comida”, porque podem ser lidos, relidos, ter suas histórias contadas muitas vezes, permitindo que cada leitor, à sua maneira, a partir de sua leitura e experiência, possa encontrar um sentido para o que acontece e o que nos acontece. Pois, como afirma Maria Teresa Andruetto em “A leitura, outra revolução” (ed. SESC): “...a literatura nos propõe, no transcurso da leitura, riscos, lutas e sobretudo o enfrentamento das nossas carências. Ela não nos oferece soluções, mas diríamos que nos sugere perguntas, porque problematizar o que nos foi naturalizado é uma das funções fundamentais da arte (...)”.
Para ler com e para as crianças:
- “Dois idiotas sentados cada qual no seu barril”, de Ruth Rocha (ed. Salamandra);
- “A cruzada das crianças”, de Bertold Brecht (ed. Pulo do Gato); “Migrantes” (Isa Watanabe - Solisluna);
- “Os meninos da rua Paulo”, de Ferenc Mólnar (ed. Cia das Letras);
- “Uma travessia perigosa”, de Jane Mitchell ( ed. FTD);
- “Como pode uma chuva de estrelas deixar a noite mais escura?”, de Stela Bataglia (ed. Sowilo);
- “Valentes”, de Aryane Carraro e Duda P. de Souza (ed. Seguinte);
- “Amal e a viagem mais importante de sua vida”, de Carolina Motenegro (ed. Caixote);
- “Dois meninos de Kakuma”, de Marie Ange Bordas (ed. Pulo do gato);
- “O muro no meio do livro”, de Jon Agee (ed. Pequena Zahar)
*Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.
Imagem da Internet
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2022/Crian%C3%A7as-guerra-e-literatura-como-entender-essa-hist%C3%B3ria?utm_medium=Email&utm_campaign=NLDurmaComEssa&utm_source=nexoassinantes
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