sexta-feira, 25 de março de 2022

Por que os intelectuais estão indo além da academia para virar influenciadores digitais

 “Se existem meios pelos quais as pessoas se comunicam e eles têm um uso importante, não quero ficar à parte”, diz Nilton Bonder — Foto: Léo Martins 

 “Se existem meios pelos quais as pessoas se comunicam 
e eles têm um uso importante, não quero ficar à parte”, diz Nilton Bonder
 — Foto: Léo Martins 
 
Preocupação em desarmar a polarização ideológica por meio de um debate 
menos raso está entre as diversas motivações

Por Amália Safatle — Para o Valor, de São Paulo

Em 2015, um ano antes de falecer, o escritor, filósofo, semiólogo e linguista Umberto Eco causou furor ao proferir uma de suas frases mais célebres, a de que as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis. Eles, segundo Eco, só falavam nos bares, após um copo de vinho, e não causavam nenhum mal para a coletividade. Mas, com as redes, passaram a ter o mesmo direito de palavra do que um Prêmio Nobel. Se for verdade que as redes continuam ocupadas por imbecis, estes terão de dividir espaço com parte da intelectualidade, que passou a instrumentalizar o meio digital, quando não a disputá-lo palmo a palmo. Entre as diversas motivações estão a divulgação de ideias e cursos, o desejo de obter um termômetro do que acontece no debate público, a disputa de “narrativas” e a preocupação em desarmar a polarização ideológica por meio de um debate menos raso.

Quanta profundidade e consistência intelectual cabem no espaço exíguo, veloz, volátil e agressivo das redes sociais é uma pergunta que eles mesmo se fazem. Na academia impera uma máxima de que o rigor rivaliza com a relevância. Ou seja, para ganhar o alcance do grande público, não há como ser estrito na produção intelectual e vice-versa.

Mas alguns intelectuais ouvidos pelo Valor mostram que sua atividade como influenciadores digitais não só é compatível com a rigorosa produção acadêmica, como a enriquece, e ambas as vertentes se retroalimentam. Além disso, a atividade digital contribui para desfazer a ideia do conhecimento encastelado, que tanto gera ressentimentos entre a massa de eleitores voltada contra intelectuais e especialistas de forma geral. Entretanto, há também quem aponte divisões profundas entre os dois mundos, especialmente na medida em que o saber se torna refém de plataformas operadas a todo tempo pela lógica da monetização.

“Não sou afetado pela baixaria das redes sociais. Minha relação é absolutamente conceitual”, diz Luiz Felipe Pondé — Foto: Eduardo Knapp/Folhapress

“Não sou afetado pela baixaria das redes sociais. 
Minha relação é absolutamente conceitual”, diz Luiz Felipe Pondé 
— Foto: Eduardo Knapp/Folhapress

Em comum aos entrevistados, está a constatação de que é inútil lutar contra a presença nas redes, a começar do fato de que essa é a tecnologia dos tempos atuais, assim como houve no passado o advento da imprensa, do telefone ou do rádio. Embora identifique riscos no uso das redes por intelectuais, o rabino Nilton Bonder explica sua presença nelas: “Eu quero ser cuidadoso, mas ao mesmo tempo ser uma pessoa do meu mundo. Se existem meios pelos quais as pessoas se comunicam e eles têm um uso importante, não quero ficar à parte”, diz o escritor com 18,8 mil seguidores no Instagram, membro da Academia Carioca de Letras e diretor do Centro Cultural Midrash, no Rio.

Além disso, algumas dessas figuras públicas, se não estão nas redes, acabam “inseridas” nelas por meio de perfis falsos e citações inverídicas - caso do filósofo, professor e articulista Luiz Felipe Pondé, e do jornalista, escritor e professor Clóvis de Barros Filho. Pondé conta que entrou nas redes sociais seguindo o conselho de um colega da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) estudioso do tema: a melhor maneira de lutar contra a manipulação dos textos e a proliferação de contas falsas seria abraçar de vez as redes, criando espaços oficiais. Barros Filho diz que até 2020 tinha quatro contas no Instagram, todas falsas. A oficial foi então lançada para que as pessoas pudessem acessá-lo e contratar palestras.

Ambos contam com equipe profissional que faz a gestão das contas e filtra os comentários a serem respondidos. “Não sou afetado pela baixaria das redes sociais. Minha relação é absolutamente conceitual”, diz Pondé. A empresa responsável pela gestão é formada por ex-alunas que o informam sobre a temperatura do debate e a repercussão de determinadas postagens. “Sei quando estou sendo amado ou odiado. Mas elas não me fazem nenhuma demanda para aumentar o engajamento. O processo é completamente orgânico, como dizem.”

“O acadêmico está acostumado a um certo público. Quando percebe que pode ser ouvido, visto por mais gente, se vê obrigado a redefinir o seu discurso”, diz Clóvis de Barros Filho — Foto: Divulgação

“O acadêmico está acostumado a um certo público. 
Quando percebe que pode ser ouvido, visto por mais gente,
 se vê obrigado a redefinir o seu discurso”, diz Clóvis de Barros Filho
 — Foto: Divulgação

Barros Filho, com 334 mil seguidores no Instagram, diz que sua interação também é totalmente mediada pela equipe que cuida disso. “Sinto que me protegem muito. Falam que só chegam elogios”, diz ele, que faz uma avaliação positiva do uso desses espaços. A seu ver, a presença nas redes traz ganhos tanto para o intelectual como para a sociedade. “O primeiro aspecto é o fato de qualquer pessoa se aproximar daquelas que se dedicam à produção de conhecimento e à reflexão. Antes, isso era muito mais restrito, sobretudo pelos filtros institucionais da universidade.”

Além das maiores possibilidades de encontros e experiências com intelectuais qualificados, estes são provocados a pensar com a perspectiva de serem ouvidos por esse novo público. “Talvez isso seja mais desafiador do que parece, pois o acadêmico está acostumado a um certo público que quase sempre são seus pares na pós-graduação, nos eventos científicos e na graduação. Quando percebe que pode ser ouvido, visto e consumido por mais gente, imediatamente se vê obrigado a redefinir o seu discurso, pelo menos episodicamente”, diz Barros Filho. Com isso, o intelectual submete o que tem a dizer a outras provas: até que ponto as outras pessoas são capazes de entender o que ele está produzindo, e em que medida aquilo que produz pode ajudar as pessoas no seu cotidiano? “São provas interessantes para o profissional da academia aferir um pouco como é a presença do seu trabalho fora dos muros da universidade.”

Essa presença fora dos muros é digna de avaliação em universidades americanas, como a de Princeton, onde a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz é professora visitante. Segundo ela, a importância dada ao intelectual público já é realidade há muito tempo nos Estados Unidos, onde os ativismos sociais dos anos 1960 levaram os acadêmicos para o espaço do debate com a sociedade, enquanto uma imprensa muito ativa os chamou a comparecer à arena da opinião pública.

“Quando produzo um artigo que vai ao Lattes, é avaliado pelos meus colegas. No meu post, eu boto o celular no meu joelho, escrevo e pronto”, diz Lilia Schwarcz — Foto: Claudio Belli/Valor

“Quando produzo um artigo que vai ao Lattes, é avaliado pelos meus colegas.
 No meu post, eu boto o celular no meu joelho,
 escrevo e pronto”, diz Lilia Schwarcz
 — Foto: Claudio Belli/Valor

Mas, segundo ela, no Brasil falta espaço, por exemplo, na Plataforma Lattes (sistema nacional que integra as bases de dados curriculares) para registrar atividades que resultam da interação com o amplo público. “Eu tenho uma produção escrita quilométrica nas redes. Escrevo um ou mais posts por dia, mas não há um lugar na academia onde eu possa ser avaliada em relação a essa atividade. É como se simplesmente não existisse”, diz ela, que faz a gestão própria das redes, sendo 392 mil seguidores no Instagram, 46,9 mil no Twitter e 135 mil inscritos no YouTube. Ela também se queixa de que o trabalho que realiza como curadora de exposições - como a “Histórias Brasileiras”, no Masp, cuja divulgação a motivou a ingressar no Instagram - tenha menor representatividade do que a produção de um livro ou de um artigo.

Schwarcz diz que não se trata de inverter os valores, pois o tempo que leva para escrever um post, obviamente, não é o mesmo para escrever textos de fôlego. Além disso, há uma diferença metodológica entre os tipos de produção. “Quando produzo um artigo que vai ao Lattes, é avaliado pelos meus colegas. Quando escrevo um livro, as editoras muitas vezes têm conselhos editoriais. No meu post é o seguinte: eu boto o celular no meu joelho, escrevo e pronto.” Não se trata, a seu ver, de optar entre uma coisa ou outra, mas de somar espaços e públicos. “[A produção nas redes] não tem comparação com a importância que eu dou à minha atividade acadêmica, até porque eu acho que é uma espécie de decorrência”, diz.

É como pensa Christian Dunker, psicanalista, professor titular de psicologia na USP, blogueiro e articulista. Tudo começou há cinco anos, com a banda de rock de seu filho, formada por jovens que estavam se formando, sem perspectiva de trabalho e percebendo que as redes sociais poderiam ser um lugar para obterem renda. Dunker foi escolhido como uma espécie de projeto-piloto. “Tio, você é meio famosinho. Pode responder aqui a algumas perguntas para a gente entender como se posta, como se produz, qual linguagem usa?” Assim começou seu canal no YouTube, com 327 mil inscritos, gerido e produzido até hoje pelos integrantes da banda.

“Minha experiência é de que a gente aprende muito [em discussões nas redes]. São conversas que me levam a mundos que eu não frequentaria”, diz Christian Dunker — Foto: Claudio Belli/Valor

“Minha experiência é de que a gente aprende muito [em discussões nas redes]. 
São conversas que me levam a mundos que eu não frequentaria”, 
diz Christian Dunker
 — Foto: Claudio Belli/Valor

Dunker ignorou conselhos de lado a lado. Colegas acadêmicos diziam que a internet não era um lugar muito sério e ele poderia “se queimar”. “Quando o canal passou a crescer, enfrentei críticas inusitadas de meus pares, tais como ‘você está massificando a psicanálise’, e ‘aqui você errou quando falou do [filósofo Martin] Heidegger’ [1889-1976].” E quando a equipe responsável pela gestão das redes o orientou a não responder e nem mesmo a ver os comentários, especialmente os xingamentos, Dunker fez o contrário. Isso porque havia se comprometido a não recusar nenhum debate. “Falar com os nossos é sempre mais fácil. O difícil é falar com os outros.”

Se isso é diálogo ou briga, não sabe dizer. “Essa é uma boa questão, porque a minha experiência é de que a gente aprende muito nessa hora. São conversas que me levam a mundos que eu não frequentaria.” Ele teve, por exemplo, de preparar contra-argumentos para usar como munição contra os críticos e ler “O imbecil coletivo: atualidades inculturais brasileiras”, do ideólogo Olavo de Carvalho, morto neste ano - que chegou a processá-lo e apelidá-lo de Chris Donkey (asno). “Não acho que isso seja, realmente, uma perda de tempo.”

Além disso, na medida em que Dunker se torna mais conhecido, é forçado a ser mais afiado. “Fica cheio de gente querendo dizer que não sei algo. ‘Ah, você não viu esse dado? Ah, você não conhece esse artigo?’”, conta. O resultado é que ele acaba estudando e se informando mais. O psicanalista acredita que o fato de ser mais lido e citado no meio acadêmico não se deve a suas “ideias incríveis”, mas sim por ser mais conhecido do público.

Carla Akotirene vê sua presença nas redes como meio de chegar aos jovens: “São elementos que dão mais consistência a essa geração que está engajada e bem-intencionada” — Foto: Divulgação

Carla Akotirene vê sua presença nas redes como meio de chegar aos jovens:
 “São elementos que dão mais consistência a essa geração 
que está engajada e bem-intencionada” 
— Foto: Divulgação

No sistema Google Scholar, que dimensiona o impacto da produção acadêmica por meio de métricas, seu número de citações é mais que o dobro do segundo pesquisador que mais publica em seu departamento na USP. Segundo ele, isso também explicaria o sucesso de vendas de livros do qual foi coautor, com temas aparentemente pouco apetecíveis: “Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico” e “Patologias do Social”, que se esgotou, ambos da Editora Autêntica.

A seu ver, o reconhecimento entre pares, embora qualificado, de forma geral é “predatório e tendente a atravessamentos políticos e institucionais que consomem a vida do pesquisador” no Brasil. Este acaba passando muito tempo em busca de verbas e dedicado aos ritos internos dos departamentos, o que exige assumir cada vez mais funções administrativas, além de sofrer a pressão conhecida como “publish or perish” (publicar ou perecer). Com isso, a universidade, segundo Dunker, embora tenha o mérito de produzir bastante conhecimento com recursos escassos, facilmente dá as costas para sociedade e para os próprios alunos. “Isso contribuiu para o negacionismo e para o discurso de que a universidade é algo da elite para a elite, gerando o ressentimento social existente hoje contra intelectuais”, afirma. “Sempre fomos vistos como aqueles caras de nariz em pé, mas havia um certo respeito. Hoje vamos aos lugares públicos e levamos pedrada”, conta.

Questionado se as redes sociais ajudariam a refazer pontes entre a sociedade e a produção intelectual, o psicanalista entende que isso funciona bem nas áreas de filosofia e psicologia, pois dizem respeito a questões com maior apelo popular, como o sofrimento humano, as relações pessoais e a vida diária. Diferente do alcance, por exemplo, que teria a área de química orgânica ou de genética.

O que não quer dizer que todo conhecimento intelectual não possa ser trabalhado para envolver as massas. Conforme o “Livro das citações”, de Eduardo Giannetti (Companhia das Letras), “tudo o que pode ser dito pode ser dito claramente”, declarou o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein [1899-1951] há exatos cem anos. Há 140, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche [1844-1900] afirmou que o pensador é aquele que sabe tornar as coisas mais simples do que elas são. E até mesmo o físico neozelandês Ernest Rutherford [1871-1937] disse, há 90 anos, que, se uma parte da física não puder ser explicada a uma garçonete, então não é uma parte muito boa da  física.

Pondé pontua, entretanto, que na academia não se escreve para ser compreendido. “Na realidade, alguns acadêmicos entendem que, quanto mais compreendido você for, pior você é. Basta perguntar aos lacanianos”, ironiza. Ao escrever para jornais e falar na TV e no rádio, o filósofo passou a dominar técnicas de linguagem para capturar a atenção do público, como escrever frases com até quatro linhas no máximo e lembrar que o leitor não possui o mesmo repertório que o autor. “Quando cheguei no canal do YouTube, eu já sabia falar sobre coisas complicadas em três ou quatro minutos”, diz.

Hoje Pondé reúne cerca de 1,5 milhão de seguidores, sendo 939 mil inscritos no YouTube. Enquanto as redes dão ao filósofo um termômetro do que está acontecendo na sociedade e sinalizam temas de interesse público, ele nota um crescimento na inteligência das próprias redes. “Em minha experiência de cinco anos, percebo que as perguntas no canal do YouTube melhoraram. As pessoas estão de fato interessadas em saber o que eu penso sobre questões sociais, filosóficas, psicológicas. Não querem me engajar em baixaria.” Mas, como toda inteligência, ele avalia que a das redes é difícil de ser construída, complicada de se estabelecer parâmetros e fácil de ser destruída. Especialmente quando entra em jogo o marketing. “Não tenho patrocinador e não quero, porque o patrocínio hoje é uma forma de censura.”

No caso de Schwarz, o exercício para escrever a mensagem de modo mais acessível veio com “Brasil: uma biografia”, livro em coautoria com Heloisa Starling (Companhia das Letras, 2015). Já Dunker conta que o grande treino veio primeiramente com a experiência de aulas em faculdades nas franjas da Grande São Paulo, antes de lecionar na USP. “Em Guarulhos e Mogi das Cruzes, não há um boteco onde eu não tenha dado aula ou feito uma conferência. E ali era outro perfil de alunado, tinha bombeiro, cobrador de ônibus.”

Depois, quando foi à Inglaterra estudar psicanálise e teoria da linguagem, dominava o que chama de conhecimento básico da academia de ciências humanas, formado por referências como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jacques Lacan e Félix Guattari. Mas quando sua turma perguntou a ele o que sabia de Brasil e como as características do país afetavam a sua produção, deu-se conta de que era “um metido a estrangeiro”, que não tinha incorporado a experiência das aulas na periferia em seu percurso acadêmico, e se comunicava melhor em inglês com seus pares do que com as pessoas mais próximas. Retornou ao Brasil, há 20 anos, decidido a ampliar o diálogo.

Já Barros Filho, que dedicou 28 anos à atividade acadêmica, notadamente ao tema da ética na Escola de Comunicações de Artes da USP, passou a direcionar sua produção intelectual ao grande público desde 2015, especialmente por meio de palestras, livros e o podcast “Inédita Pamonha”. “Escrevi um monte de livros acadêmicos desses que ninguém lê. Eu mesmo não conseguia fazer a revisão, de tão chatos que eram”, diz. Então passou a escrever um pouco do conteúdo que expunha nas palestras - são 300 em média por ano, além de 35 livros publicados até agora, dos quais pelo menos a metade voltada ao grande público.

Um dos sucessos é “A vida que vale a pena ser vivida” (Editora Vozes) em coautoria com Arthur Meucci, no qual imagina respostas de dez pensadores a essa questão. Outro é “Reputação - Um eu fora do meu alcance”, com Luis Peres-Neto (Harper Collins, 2019). “O livro tem uma maquiagem popularesca, mas contém as ideias dos pensadores Mikhail Bakhtin, Noam Chomsky, Lev Vygotsky. Poderia ser perfeitamente uma sucessão de artigos acadêmicos”, descreve.

Barros Filho rejeita a alcunha de filósofo e se compara àquela figura que fica na porta do restaurante atraindo os clientes: não é o garçom, não é o cozinheiro e não é o dono. Mas, se não estivesse ali na porta, talvez o cliente não tivesse entrado e nada de bom que acontece lá teria ficado conhecido. “Sempre me vi como uma espécie de aperitivo. Por exemplo, se você gostou de mim, então agora vai lá e estuda. Muita gente foi cursar filosofia por ter me visto ou lido em algum momento.”

Mas ele alerta que dá um colorido ao conteúdo que nem sempre o aluno encontrará na hora do “vamos ver”. O mesmo diz Dunker. Diante da crescente visibilidade que a psicanálise e a psicologia ganharam no Brasil, pessoas buscam o material mais acessível, mais barato ou gratuito para se formarem. “Tivemos de esclarecer muita gente, com carinho e vídeos específicos, explicando: ‘Você não vai se tornar um psicanalista assistindo ao YouTube do Tio Chris, tá combinado?’”

Para Barros Filho, o acadêmico deve se concentrar na pesquisa, por mais que seja acusado de encastelamento, e deixar a tarefa da explicação e da divulgação para a área de jornalismo científico, por exemplo. “Vamos imaginar o [professor de filosofia da USP] Franklin Leopoldo e Silva pesquisando sobre [o filósofo irlandês George] Berkeley. Ele se encontra em tal nível de abstração que não se pode querer que ainda torne Berkeley apetecível na mesa do bar. O intelectual deve se dedicar a alargar o universo do conhecimento e ir atrás da verdade. A produção acadêmica é complicadíssima mesmo”, defende. “E que fique claro: uma sociedade é desenvolvida na medida em que respeita e legitima seus cientistas e seus grandes mestres.”

Confundir o mero compartilhamento de conhecimento e de informações com o alcance do verdadeiro entendimento é um dos riscos que Nilton Bonder vê no ambiente popular das redes. Ele remete à tradição rabínica, segundo a qual dois elementos são essenciais para o intelecto: “Ter um mestre e ter um parceiro de estudo. O mestre dá o conhecimento e tenta explicá-lo para que você alcance o entendimento. E, junto a seu parceiro, alguém que está no seu nível, você pode checar o que entendeu”. Para ele, as redes não constituem o espaço para isso, embora muitas pessoas busquem nelas um atalho.

Ao alertar sobre outro risco, Bonder também se vale de uma tradição rabínica, segundo a qual o saber não deve ser comercializado. “No momento em que vira um produto, a natureza econômica interfere na sua qualidade”, diz. “Claro que um professor de universidade ganha um salário. Mas se cada movimento dele como professor for monetizado, será colocado em um espaço que, do ponto de vista do saber, é prejudicial e perverso.” Isso porque, segundo Bonder, a lógica de soma zero - em que todos ganham com o oferecimento do saber - passa a ser uma lógica econômica, em que geralmente o ganho de um implica a subtração do outro.

“Com as redes, os intelectuais passaram a contar com um espaço interessante para promover a sua pessoa, sua profissão. Há uma democratização muito grande na possibilidade de trazer as suas ofertas. Mas, por serem monetizáveis, as redes maculam a relação intelectual”, continua Bonder. Ele reconhece a própria dificuldade em entender até onde e como seu trabalho na área do saber ultrapassa fronteiras e vende alguma coisa. “Não é simples esse limite.” É um cuidado que procura ter na produção de livros, sendo a mais recente a série sobre cabala, editada pela Rocco. Bonder, que começou a escrever para a editora juntamente com Paulo Coelho, diz que seus livros, embora apareçam em prateleiras de autoajuda, não são simples, e sim de estudo.

Outra questão na relação intelectual com o público via redes é o ativismo que esses meios propiciam. Até que ponto o posicionamento pode ferir o distanciamento científico? Lilia Schwarcz sentiu-se estimulada a entrar nas redes por motivos políticos, ao ver espaço das redes “por muito tempo invadido por um pensamento radical de direita”, mas garante que o necessário distanciamento permanece. “Não tenho nada contra o pensamento conservador, ao contrário, a democracia funciona melhor na contraposição de ideias. Mas, sobretudo o espaço das narrativas histórica e visual, onde me localizo, tem sido disputado taco a taco.”

A antropóloga, que se opõe declaradamente ao governo Bolsonaro, afirma ter formação suficiente para fazer de sua avaliação política uma avaliação científica. “Estudei governos autoritários e governos populistas, os golpes de legalidade, a Constituição de 88, a questão racial no Brasil desde o século XVI, e tenho como comprovar que Bolsonaro responde a todo o beabá do populismo e do autoritarismo.” O Palácio do Planalto foi procurado para comentar, mas não respondeu à reportagem até o fechamento.

A questão racial permeia também a atuação dentro e fora das redes de Carla Akotirene, professora assistente na Universidade Federal da Bahia, seguida por cerca de 18 mil pessoas no Facebook e 163 mil no Instagram, no qual ingressou por insistência da filósofa Djamila Ribeiro.

Em fase final do doutorado, Akotirene tornou-se aos 42 anos uma referência em estudos sobre interseccionalidade no Brasil, conceito sistematizado pela teórica feminista americana Kimberlé Crenshaw em 1989. “Significa perceber como raça, classe e gênero se  intercruzam”, resume a professora, que também trabalha no Sistema Único de Saúde atendendo vítimas de violência. “Consigo conciliar a dimensão teórica com a prática”, diz ela, que obteve formação política junto a nomes da intelectualidade feminina negra, tais como Makota Valdina (1943-2019), Luiza Bairros (1953-2016), Matilde Ribeiro, Vilma Reis, Vilma Reis, Valdecir Nascimento, Lélia Gonzalez (1935-1994), Carolina Maria de Jesus (1914-1977), Sueli Carneiro, Angela Davis, Bell Hooks (1952-2021) e, mais recentemente, Katiúscia Ribeiro, Djamila Ribeiro e Juliana Borges.

“Sou uma militante acadêmica. O que faço na academia é militância, mas que segue os moldes acadêmicos mínimos, para que o Estado, ao incorporar o meu conhecimento em forma de política pública, consiga entendê-lo dentro dos parâmetros científicos. [A socióloga americana] Patricia Hill Collins fala sobre isso: nós somos a forasteira de dentro.” Akotirene explica que uma feminista jamais vai escrever “sabe-se”, e sim “nós sabemos”. “Não existe neutralidade, todo o conhecimento é carregado de valor, o conhecimento é situado. Quem está falando fala de algum lugar, a partir de subjetividades formadas na experiência de classe, de raça, de gênero, de territórios e de linguagem.”

Em seu entendimento, a atuação nas redes sociais é importante para que uma jovem em contato com a pauta de direitos sexuais e reprodutivos, por exemplo, tenha acesso à crítica das feministas negras à política de esterilização que, segundo ela, perdurou até a década de 1990 no Brasil - como se as negras fossem responsáveis pela pobreza, ou pela incitação de jovens em situação de rua. “São elementos que dão mais consistência a essa geração que está engajada e bem-intencionada, mas muitas vezes não encontra na sala de aula autoras e autores com o mesmo posicionamento político, teórico, filosófico, epistêmico”, diz.

“Mostramos que, bem antes de uma autora branca como Simone de Beauvoir [1908-1986] escrever ‘O segundo sexo’, [a abolicionista americana negra] Sojourner Truth [1797-1883] já havia falado sobre isso. Só não ficou conhecida porque era escravizada e sofreu um apagamento da língua yorubá. E, se não houver um esforço de traduzir essas autoras, logicamente vamos achar que as intelectuais pioneiras são todas da Europa e dos Estados Unidos”, diz a professora.

Truth mostrou que, ainda que as mulheres reclamassem que os homens as ajudavam a subir em carruagens e a pular poças de lama, tratando-as como seres frágeis, as negras nunca foram tratadas como tal porque são um corpo racializado. Assim, demonstrou que a ideia de feminino estava associada a uma mulher branca, que é filha do pai, será entregue a um marido e vai virar mãe de alguém.

Já as mulheres negras não viveram isso, ao contrário, os filhos foram arrancados e escravizados para manter a engrenagem do racismo por meio do capital. Ou seja, Akotirene lembra que, 138 anos antes de Crenshaw cunhar o conceito de interseccionalidade, Truth havia denunciado a imbricação entre racismo, capitalismo e patriarcado. Tudo isso foi dito de improviso no discurso “E eu não sou uma mulher?” em Ohio, 1851. Discurso este muito popularizado nas redes sociais de hoje.

Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2022/03/25/por-que-os-intelectuais-estao-indo-alem-da-academia-para-virar-influenciadores-digitais.ghtml

Nenhum comentário:

Postar um comentário