Mar 17, 2022
|A invasão da Ucrânia pela Rússia abre um capítulo novo na Europa do pós-Guerra. Pela primeira vez, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, um Estado soberano é invadido por outro, com o poder russo a pretender aniquilar o país vizinho – Vladimir Putin disse que “a Ucrânia moderna é uma criação da Rússia”, negando assim que a Ucrânia possa existir como país independente.
Este novo capítulo de guerra tem como principal consequência uma militarização acentuada da Europa, em detrimento de um caminho para a paz e a necessária desmilitarização do mundo. É um recuo de décadas, aquele que se viveu no espaço destas últimas semanas.
Este é, no entanto, um “mundo moldado pela guerra”, na expressão de Margaret MacMillan, cujo livro Guerra – Como moldou a história da humanidade (ed. Temas e Debates, 2021) nos ajuda a melhor entender o que pode também estar em causa nestes dias de início de mais um conflito armado.
Na definição do teórico alemão Carl von Clausewitz, citado pela autora, “a guerra é um ato de violência destinado a obrigar o nosso adversário a cumprir a nossa vontade”. Está aí uma guerra que traduz bem esta definição e, independentemente de pensarmos sobre ela a cores, pode decidir-se a preto e branco (na expressão certeira de Pacheco Pereira), sobre de que lado se está.
[Abra-se um parêntesis pessoal, um pouco longo, para sublinhar o óbvio. Dizer não à guerra, não significa aceitar uma invasão ou, numa forma mais contida, encontrar uma justificação para essa invasão. Questionar a (pertença à) OTAN/NATO, que é algo que se deve fazer, não significa colocar no mesmo patamar esta organização e um autocrata-agressor-invasor. Entender que os EUA têm um comportamento demasiadas vezes questionável e criticável, como aconteceu na guerra do Iraque (e na falácia montada das armas de destruição massiva), não nos pode levar a aceitar que uma democracia – a quem exigimos sempre mais – seja moralmente equiparada a uma autocracia e ditadura. Querer a paz não é a mesma coisa que aceitar que a culpa da invasão não é do agressor. Feche-se o parêntesis.]
Este livro parece, no entanto, subitamente desatualizado. A “Longa Paz”, como lhe chama a autora, que a Europa – e o mundo dito ocidental – experimentou, depois de 1945, apesar da guerra fratricida da antiga Jugoslávia, tropeçou nas malhas de um imperialismo bafiento dirigido por Vladimir Putin.
Isto da guerra será coisa de um só homem, de um regime ditatorial? Ou os seres humanos carregam consigo esta “mancha escura indelével”, com esta atração pelo abismo? MacMillan defende que a guerra moldou as sociedades humanas, criou os estados atuais, trouxe uma maior organização e uma ordem às civilizações, e socorre-se da História para o exemplificar. Questiona-se Margaret MacMillan se a “propensão” dos seres humanos para “travar guerras” vem da “avidez ou competição por recursos cada vez mais reduzidos”, ou de “vínculos biológicos e cultura partilhada para valorizarmos os nossos próprios grupos, sejam eles clãs ou nações, e temer os outros”. “A guerra é algo que não podemos deixar de travar ou algo que construímos por meio de ideias ou cultura?” Sem respostas consensuais, até hoje, procurar responder a estas perguntas pode ajudar a “evitar conflitos futuros”.
O “paradoxo da bondade”
Hoje, num “paradoxo da bondade”, título de uma obra do antropólogo Richard Wrangham, que MacMillan cita, os homens e mulheres foram ficando mais amáveis mas também melhores a matar e numa escala mais ampla. Apesar do otimismo, sugerido por académicos, de que o homem tem vindo a matar menos (“mesmo tomando em consideração os grandes banhos de sangue das duas grandes guerras mundiais”), há números que continuam a lançar-nos numa depressão grande. E não é preciso estarmos sob os céus da Ucrânia.
A autora de Guerra sublinha que “um projeto de longa data realizado na Universidade de Uppsala, na Suécia, estima que, entre 1989 e 2017, mais de 2 milhões de pessoas morreram em consequência da guerra e, desde 1945, talvez 52 milhões foram obrigados a fugir em virtude de conflitos”. Ou seja, “a prevalência da violência e da guerra no passado e o facto de persistirem no presente suscita a questão incómoda de saber se os seres humanos têm uma programação genética para lutarem entre si”. Parece que esbarramos sempre na impossibilidade da paz (sim, o título deste texto encerra uma provocação).
MacMillan apresenta uma das linhas de investigação, que é a observação dos “nossos parentes mais próximos no reino animal: os chimpanzés e os bonobos”: os primeiros podem ser “brutais”, como definiu Jane Goodall (a famosa estudiosa de macacos), os segundos optam por “fazerem amor e não guerra”.
Em Condenação – A política da catástrofe, o conservador académico escocês Niall Ferguson argumenta que as guerras, artificiais e humanas, juntamente com as pandemias, foram “os maiores desastres da história humana”.
O professor de Harvard (comentador político que apoiou o Brexit, defendia uma colaboração próxima entre Trump, Putin e Xi, e gostava de ver Marine Le Pen na presidência francesa, por esta defender a saída da União Europeia) já tinha apresentado dois pesados volumes sobre a guerra: O Horror da Guerra 1914-1918 (ed. portuguesa Temas e Debates, 2018), centrado na I Guerra Mundial, e A Guerra do Mundo – Uma Idade Histórica de Ódio (reed. portuguesa da Relógio d’Água, 2021).
Agora, em Condenação, muito marcado pela pandemia da covid-19, recupera a teoria do indiano Amartya Sen – Nobel da Economia, “pai” do microcrédito e com um reconhecido trabalho de investigação sobre a pobreza – de que as “grandes fomes” foram fruto de “governos impunes” e dos “colapsos evitáveis dos mercados”, e a “melhor cura” para estas catástrofes “era a democracia”. Questiona-se Ferguson, “porquê aplicar a lei de Sen só às fomes?” E ensaia outra abordagem: “Porque não visar a mais artificial e humana das catástrofes, a guerra?”
Citado por Niall Ferguson, Amartya Sen defende que “nunca na história do mundo nenhuma fome aconteceu numa democracia funcional”, porque os governos democráticos “têm de vencer eleições e enfrentar as críticas do público, e têm grandes incentivos para tomar medidas que evitem as fomes e outras catástrofes”. Exemplos não faltam: a “Grande Fome Irlandesa”, no final da década de 1840, as duas grandes fomes na Ucrânia soviética (1921-1923, 1932-1933) ou a fome provocada pelo “Grande Salto em Frente” de Mao Zedong na China (1959-1961).
Democracia não protege um país contra “desastres militares”
No caso das guerras, regista Ferguson, “é paradoxal que a transição dos impérios para os Estados-nação mais ou menos democráticos fosse acompanhada por tanta morte e destruição”. A Primeira Guerra Mundial aconteceu “porque os políticos e os generais de ambos os lados calcularam mal”. E, insiste o académico, “a guerra matou muito mais britânicos no século XX do que o nevoeiro, e ainda mais do que a fome”, para concluir que “é notável que a democracia fosse totalmente incapaz de impedir isso”. Apesar de se tratarem de democracias incompletas, na sua moderna aceção, Grã-Bretanha e Alemanha envolveram-se numa “guerra prolongada e muitíssimo sangrenta”. E as catástrofes nas guerras sucederam-se ao longo do século XX, o que leva Niall Ferguson a concluir que “a democracia pode proteger um país contra uma crise de fome; claramente, não protege contra desastres militares”.
Nos dias de hoje, com a Rússia a atemorizar todos os dias os países democráticos da Europa, recorrendo inclusive à ameaça nuclear, Ferguson parece ter razão. Já Margaret MacMillan argumenta que “o preço elevado de duas guerras mundiais deixou-nos sem vontade de alguma vez voltar a ver tais baixas” e que “poucas centenas de baixas parecem demasiadas, quando outrora aceitámos muitos milhares”.
“E no entanto… o Ocidente é apenas uma parte, e uma parte cada vez menor, do mundo e as suas prestações e valores não são necessariamente universais”, lembra MacMillan, para completar que esta “apreensão” com as perdas de vidas “não preocupou” outros líderes, da China ao Vietname, do Irão e Iraque ou “atores infraestatais”, como a Al-Qaeda ou o Estado Islâmico, noutros conflitos pelo mundo. Agora, muito provavelmente a professora canadiana poderia juntar a Rússia de Putin, a esta lista de quem quer saber pouco das vidas que envolve nos seus jogos de poder e imperialismo.
Se Margaret MacMillan não antecipa em Guerra qualquer movimento de Vladimir Putin, como aquele que o presidente russo provocou nestes dias, a própria justifica-se: “As previsões acerca da forma futura da guerra são como apostar em cavalos ou adivinhar o caminho que a nova tecnologia irá seguir.” Ou o facto de que “as previsões feitas no passado sobre a guerra fornecem-nos uma história rica de pessoas que se equivocaram”, mas (avisada) “não deveríamos presumir que guerras importantes entre Estados já não são possíveis”.
A académica canadiana gosta do seu objeto de estudo – faz mover o mundo, argumenta, e por isso precisamos de estudar esse objeto, para “saber sobre as suas causas, o seu impacto, como lhe pôr termo e como a evitar. E, ao compreendermos a guerra, compreendemos algo sobre o ser humano, a nossa capacidade de nos organizarmos, as nossas emoções e as nossas ideias, e a nossa capacidade tanto para a crueldade como para o bem.” Mas tudo isto com uma certeza: “Não podemos deixar que se esfumem as recordações de guerra. Precisamos de lhe prestar atenção porque ela continua entre nós.”
Se ela está no meio de nós, está cada vez mais assustadora, com “novas armas aterradoras”, e MacMillan assusta-se e assusta-nos. “Não é o momento de nos desviarmos os olhos de algo que poderemos achar abominável. Temos, mais do que nunca, de refletir sobre a guerra.” Este fim do livro questiona-nos: como é?
O discurso pacifista ou em favor da desmilitarização perde terreno e atração. Qualquer possibilidade de refletir sobre a guerra esfuma-se em trincheiras difíceis de manter em tempo de discursos simplistas. O pior serviço prestado por Vladimir Putin e a atual clique dirigente na Rússia é fazer desmoronar as ténues tentativas de iniciar uma desmilitarização da Europa, de caminhar para uma pacificação séria do mundo – a Alemanha quebrou um tabu, ao apoiar militarmente um país estrangeiro, a Suécia e a Finlândia ponderam deixar cair a neutralidade e pedem um maior envolvimento com a OTAN. Muitos (como Niall Ferguson) apontam o dedo ao contínuo desinvestimento no Reino Unido e na União Europeia em matéria de defesa e segurança (como se aquilo que se gasta em armamento não fosse sempre exagerado).
Abra-se um novo parêntesis. Na América Latina, a Costa Rica e, bem mais recentemente, o Panamá apostaram numa política de proteger a sua soberania sem forças armadas. Curiosamente, ou talvez não, a Costa Rica é o único país da América Central que não experimentou nunca uma guerra civil ou um crescendo de violência social e política no seu território.
Putin espalhou a insensatez do medo da guerra
Por muito que se defenda a paz, que se questione a pertença à OTAN, que se queira a erradicação de forças armadas ou da indústria do armamento, neste momento, que garantias se podem dar a quem é invadido por um estado agressor cujo objetivo é a dizimação do país que atacou (Ucrânia, para já, e talvez outros)? Como se pode pedir a um estado agredido que não aumente também ele o seu armamento? Putin não armadilhou apenas a Ucrânia, espalhou a insensatez do medo da guerra pelo mundo e, em particular, pela Europa.
Uma sondagem muito recente diz que os europeus querem o aprofundamento da cooperação em matéria de segurança na União Europeia – o título é do Público. O inquérito realizado pelo Conselho Europeu das Relações Exteriores (ECRF, na sigla em inglês) em 12 países da UE, incluindo Portugal, ainda antes de eclodir a guerra na Ucrânia, “mostra que os cidadãos europeus valorizam a soberania europeia e a sua segurança”.
Os 15 mil cidadãos europeus de 12 estados-membros que foram auscultados consideram como “um ponto fundamental” a cooperação mais profunda nesta matéria de segurança. A paz e a não-violência perdem terreno, perante a ameaça concreta que uma ditadura como a de Putin representa. Apesar da chantagem, a resposta a dar pelas democracias é decisiva. A Cimeira de Versalhes, realizada a 10 de março, determinou um aumento “substancial” das despesas de Defesa dos estados-membros.
Também nas páginas do Público, o ensaísta António Guerreiro lembrava uma troca epistolar entre Einstein e Freud. O físico questionou o médico sobre se “existirá uma possibilidade de orientar o desenvolvimento psíquico do homem de maneira a torná-lo mais imune às psicoses de ódio e de destruição?”. Freud replicou: “Tudo o que promove o desenvolvimento da cultura, trabalha também contra a guerra.”
A paz será então possível, uma utopia demorada, apesar da provocação do título deste texto, e a inevitabilidade da guerra não tem de ser permanente, apesar da armadilha montada por Putin. Afinal, basta pensar nisto: António Guerreiro, na referida crónica, também recupera a “bem conhecida” resposta que Einstein deu, em 1948, quando lhe perguntaram como seria uma eventual Terceira Guerra. “Não sei como se fará a Terceira Guerra Mundial, mas posso dizer-vos o que será usado na quarta: pedras.”
Guerra – Como Moldou a História da Humanidade, de Margaret MacMillan
Temas e Debates, 2021
400 pp., 19,90 €
Condenação – A Política da Catástrofe, de Niall Ferguson
Temas e Debates, 2021
552 pp., 24,90 €
* Jornalista. Lisboa, Portugalassessor de imprensa no gabinete do Ministro da EducaçãoMinistério da Educação
Fonte: https://setemargens.com/da-impossibilidade-da-paz-a-guerra-molda-a-humanidade/?utm_term=Silwan%2C+Jerusal%3F%3Fm%3A+a%3F%3FQueremos+justi%3F%3Fa+para+todosa%3F%3F&utm_campaign=Sete+Margens&utm_source=e-goi&utm_medium=email
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