Uma vez, em Paris, fui encontrar Jean Baudrillard, grande pensador patafísico, no café La Rotonde. Eu não bebia álcool. Bebi até 1987. Voltei a beber em 2000. Parei de novo em 2013. São ciclos de treze anos. O que isso significa? Certamente nada. Jean pediu um vinho branco. Na verdade, era um líquido dourado. Não creio que ele fosse frequentador do lugar, mas era meio caminho das nossas casas. O assunto era a edição brasileira do seu livro “Tela total”, uma invenção nossa, que sairia primeiramente no Brasil, pela Sulina, e só mais tarde na França, pela Galilée. Eram as crônicas de Baudrillard publicadas no jornal Libération. São textos geniais. Sem exagero.
– O pessoal do Libé curte muitos os teus textos? – perguntei.
– Nunca se manifestam – respondeu.
Baudrillard era incomodado por ter dito que a guerra do Golfo não aconteceria. Ele se referia a uma guerra convencional. Para ele, o que ocorreu foi outra coisa, uma nova forma de exterminação. Comentamos algo sobre essa contenda sem fim. Ele não se abalava.
– Não ser o dono da verdade não significa nunca poder ter razão ou jamais ter convicção a partir de evidências – disse.
Admirei silenciosamente aquela segurança de um grande.
Então, sem mais nem menos, ele me fez uma pergunta engraçada.
– Como se diz “chatte” em português?
– Gata – respondi.
Ela vinha muito ao Brasil, tinha um apartamento em Lisboa, captava a sonoridade da língua e não se convenceu. Insistiu:
– “Chatte”?
– O animal?
Ele riu. Parecia sacolejar de tanto rir. Aí falou:
– Não, o buraco das mulheres.
Na época era possível falar assim. Eu comecei a rir.
– Boceta – eu disse.
Ele ficou repetindo a palavra como se procurasse alguma coisa. Estava num dia expansivo. Com saudades do Brasil. Por fim, comentou:
– James Joyce gostava de falar de boceta.
Eu me lembrava de um trecho de uma carta de Joyce para Nora Barnacle: “Minha língua lambendo faminta a sua boceta vermelho-vivo”. Não é pornografia nem vulgaridade, caro leitor. É de James Joyce que se trata. Jean elogiou meus conhecimentos literários. Joyce gostava de palavrões. As suas cartas não podem ser lidas em almoço de domingo.
– Bocita rouge…
– Não, bocita, não. Boceta, Bo-ce-ta…
– Bo-ce-ta – ele soletrou como um aluno aplicado.
– Perfeito.
Então falamos de problemas de cada um. Baudrillard era um perfeito franco-atirador. Já vivia para a ironia. Foi um dos homens mais inteligentes que conheci. Ele, Michel Maffesoli, Jean-François Lyotard, que fazia, por telefone, eu me sentir inteligente, sendo que a inteligência vinha dele, e François Furet. Em determinado momento, no segundo cálice do seu vinho dourado, Baudrillard disse:
– Transversal, transversal, frontal nunca.
Era uma maneira francesa de dizer: nunca bata de frente. A minha especialidade, contudo, era bater de frente. Jean ainda explicou:
– Se tu bates de frente, tu es foutu.
– Sei disso, eu já me fodi muitas vezes.
Eu poderia escolher outra palavra em português para esse termo, mas nunca o faço. Por exemplo, acabado. Quando era criança, acabar era gozar. Não se podia usar essa palavra na frente dos mais velhos.
Depois disso, Jean lembrou mais algumas frases de Joyce. Quando nos despedimos, a cidade estava banhada por uma triste luz glauca.
– Bocita rouge… – ele repetiu rindo.
Não corrigi. A boa pronúncia vem com o tempo.
As guerras continuam, inclusive as tradicionais.
Os mais fracos, especialmente os civis, sempre se fodem.
*Jornalista. Professor Universitário. Escritor.
Fonte: https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/colunistas-matinal/juremir-machado/juremir-quem-se-fode-na-guerra/
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