Antonio Delfim Netto*
O teimoso retorno das discussões sobre qual é a "taxa de juros real neutra" sugere que algumas tribos da nação dos economistas professam uma espécie de platonismo. Os conceitos que utilizam seriam aproximações físicas deformadas de sua existência perfeita e eterna no mundo das ideias. Se você "acredita" (do verbo crer) que apesar de complexidade da demanda física global ela mantém uma relação unívoca contínua e decrescente com relação à taxa de juro real, então podemos afirmar (aqui já não é mais uma questão de "crença" mas de lógica que parece lhe dar um ar de "ciência") que deve EXISTIR uma taxa de juro real única que iguala a demanda global a qualquer oferta global (que resta determinar). Trata-se da curva de demanda total.
E como se determina a oferta global? Voltemos ao mundo platônico das ideias e imaginemos que existe uma "função de produção" matemática bem educada, contínua, diferenciável (mais algumas propriedades convenientes) e que revela a produção global (oferta) máxima com relação ao uso de dois fatores de produção: trabalho (horas trabalhadas) e o estoque de capital. Com um dos fatores fixo, a função revela rendimentos decrescentes quando aumentamos o uso do outro. Mesmo no mundo das ideias o estoque de capital (trabalho do passado cristalizado em máquinas, equipamentos, estradas, portos etc) é fixo no curto prazo. Podemos, portanto, explorar as variações da "função de produção" (a oferta máxima) para cada acréscimo de hora trabalhada. Essa relação é conhecida como "produtividade marginal" física do trabalho.
Para lançar um pouco de luz sobre essa caverna platônica, suponha uma fábrica de sapatos na qual o aumento de uma hora de trabalho produz mais um par de sapatos. Se o empresário quiser maximizar o seu lucro quantas horas de trabalho ele deve contratar? Como o estoque de capital físico é fixo, a produtividade marginal do trabalho é decrescente. Logo, a última hora que ele empregará é a que lhe custará exatamente o valor do seu sapato. A condição de maximização do lucro é, portanto, que o preço do sapato multiplicado pela produtividade marginal física do trabalho seja igual ao salário nominal. Em outras palavras, o salário real do trabalhador deve ser igual à sua produtividade marginal (decrescente quando aumenta o mínimo de horas utilizadas).
No mundo platônico das ideias, todas as funções de produção (desde as de uma usina atômica até a de um pé de banana) podem ser agregadas e todas as horas trabalhadas somadas, o que revela o nível de emprego. Para maximizar o "bem estar geral" e obter a oferta máxima de um misterioso bem chamado "Produto Interno Bruto", basta determinar quantas horas de trabalho (qual o nível de emprego) serão utilizadas. Mas para fazer isso é preciso conhecer o salário real (físico) idêntico à produtividade marginal física do trabalho.
Como se faz isso? Pensemos um nível fixo de preços. O salário real é igual ao salário nominal dividido por ele. A oferta e a procura de trabalho dependem, no mundo platônico das ideias, apenas do salário real. Supondo, de novo, que essas ligações sejam bem comportadas, a oferta de trabalho cresce e a demanda decresce com o crescimento do salário real. Num ponto qualquer (como uma é crescente e a outra decrescente) elas se cruzam e determinam o salário real de equilíbrio, onde, por hipótese, todos os que podem e desejam trabalhar têm emprego. Isso exclui, por construção, qualquer desemprego "involuntário". No ponto de encontro da oferta e da procura a produtividade marginal física do trabalho é igual ao salário real e determina o ponto ótimo do emprego.
Alguns economistas professam uma
espécie de platonismo
Temos assim a oferta global que maximiza o lucro do capital e, por construção, produz o "pleno emprego". É preciso entender que essa oferta global é fixa no curto prazo. O passo seguinte é juntar esta conclusão à relação inicial (que liga a taxa de juros real à demanda global) e verificar que, então, deve EXISTIR uma taxa de juros real "neutra" que iguala a oferta global à demanda global que, em condições estáticas, produzirá o máximo PIB, o pleno emprego e a estabilidade da taxa de inflação.
O problema é que mesmo no mundo platônico podem acontecer choques de oferta (quebra de safra) ou de demanda (excesso de crédito, pressões redistributivas etc) e a taxa de inflação flutuará sob a pressão dos eventuais desequilíbrios entre a oferta e a procura global. Essa relação é chamada de curva de Phillips. Ela sugere aos Bancos Centrais um mecanismo de controle (uma regra monetária) que relaciona a diferença entre a taxa de inflação e a meta de inflação desejada (a que aconteceria no mundo congelado) aos desequilíbrios entre a oferta e a procura globais.
Temos aqui três relações: a primeira que liga a demanda global à taxa de juro real, que exige o conhecimento da taxa de juros real "neutra"; a segunda que liga a taxa de inflação às pressões derivadas das diferenças entre o nível do PIB e o desconhecido PIB potencial; e a terceira que dá ao Banco Central a possibilidade de manobrar a política monetária para manter na meta a taxa de inflação (fixada pelo poder político).
As contas fecham no mundo platônico das ideias, mas as coisas ficam mais feias no mundo real. Nele não há equilíbrio estático. A complexidade das relações é muito maior e instável. Existe assimetria de informação e as estimativas da "taxa de juro neutra" e do "produto potencial" são imprecisas e seus erros têm custos sociais importantes. Se olharmos com cuidado, mesmo os mais sofisticados modelos de que dispomos (o Samba, do nosso Banco Central, por exemplo) têm no seu DNA a sementinha daquelas três relações. É por isso que vale a pena escrutinizar cuidadosamente as suas estimativas. Está na moda espancá-las para ver se elas ficam de pé...
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*Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.
Fonte: Valor Econômico on line, 07/02/2012
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