Tolentino Mendonça*
Conta-se que o escritor francês Fontenelle (1657-1757), a um mês de se tornar centenário, quando interrogado pelo médico, já em leito de morte, sobre como se sentia, terá respondido: “Sinto uma dificuldade de ser.” Outro escritor, Jean Cocteau (1889-1963), pega nessa frase para redigir um contundente autorretrato (seu, mas também de uma geração e de uma inteira época) partindo daquelas coisas que, em todas as vidas, ficam por dizer e que se espraiam depois, como indecifráveis enigmas e destroços, sobre a esplanada dos nossos vazios íntimos. O livro tem por título “A Dificuldade de Ser” e acaba de ser editado pela Sistema Solar, com tradução e apresentação desse extraordinário fabro chamado Aníbal Fernandes. É uma leitura que nos ajuda a pensar, porque entre as tantas aprendizagens que nos são hoje exigidas há lacunas que persistem. E uma delas é a aprendizagem dos sentimentos. Somos desde tenra idade escolarizados, trabalhamos a inteligência lógica e matemática, ganhamos competências para administrar a geometria da razão, iniciam-nos no sentido da realidade, pelo menos daquela imediata e visível, com todos os seus apelos. Tudo coisas certamente muito úteis, mas que não esgotam as necessidades que cada um transporta na sua bagagem de viajante. Conhecemos com obsessivo detalhe o mundo externo e faltam-nos recursos para reconhecer e cartografar a nossa paisagem interior. Multiplicamos a quantidade de saberes e ignoramo-nos a nós próprios. Familiarizados com um número sempre crescente de tecnologias e de fórmulas, não é raro que nos descubramos analfabetos da nossa própria alma, que nunca aprendemos verdadeiramente a escutar. E, contudo, não deveríamos esquecer que a convivência mais autêntica com o real nasce dentro de nós e que o timbre da nossa vida é, desde sempre, ressonância desse facto. Por isso, as palavras de Cocteau pretendem construir sobretudo uma diagnose que nos sirva de despertador a todos: “Desgraçado do que não reservou um retalho onde viver, em si uma parcela de si, e se entregou aos acasos que aproveitam a mais pequena nesga para enfiar lá as suas silvas. Porque elas, se nada houver a governar, crescem vindas de fora e de dentro.”
No pensamento do autor, indispensável no projeto de formação individual é escolher “uma linha” e cuidar da própria linha. Reconhecendo que esta outra coisa mais não é do que a vida, mas que é também o modo como escolhemos vivê-la, perseguindo coerentemente um andamento. Em vista desse labor, em “A Dificuldade de Ser”, insiste-se sobre alguns elementos decisivos. O primeiro é que “a linha premeia o fundo e a forma”, e deve alcançar em cada pessoa uma expressão que é única, constituindo aquilo que habitualmente se designa por uma personalidade. Por esse motivo, exemplifica Jean Cocteau, “a linha tanto existe em Renoir, Seurat, Bonnard, onde parece dissolver-se na pincelada e na mancha, como existe em Matisse ou em Picasso”. O segundo é que o segredo que está por detrás da criação, do heroísmo ou simplesmente da quotidiana integridade é a força motriz de uma linha que está a ser seguida. Quando ouvimos Beethoven ou lemos Shakespeare, por exemplo, é isso que nos emociona. O terceiro é que também acontece que a linha se torne em alguns momentos fraca “como um cabelo doente” e aí a “nossa terapêutica” consiste em protegê-la. O quarto e último elemento interroga-nos sobre o justo desenvolvimento da linha: o que fazer? Cocteau aconselha um método. Que sejamos capazes de substituir os espelhos pela observação direta. Não é tarefa pequena.
*Cardeal português. Biblista. Poeta. Escritor.
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