"O bacanal dos Andrianos", por Titian
Doutor em filosofia, professor da UFF e especialista em Platão, Fernando Muniz fala sobre como o prazer foi afetado pelo individualismo e pelo imediatismo do mundo contemporâneo
Isabelle Moreira Lima 23 de Maio de 2021
A noção que temos de prazer hoje é individualizada e tão baseada em estímulos rápidos que ele se torna praticamente inalcançável. Diante disso, ficamos ansiosos e insaciáveis, esperando sempre o próximo estímulo, o próximo encontro, exagerando a forma como consumimos, sem refletir sobre nada e beirando o vazio.
As ideias parecem pessimistas, mas há um outro lado. Movimentações culturais, relações recíprocas de amizade, de congregação e de solidariedade e, sobretudo, a reflexão podem (e têm conseguido) nos tirar do abismo. Essas ideias estão na conversa que a Gama teve com o doutor em filosofia antiga pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Fernando Muniz, um estudioso do prazer.
Para Muniz, que se debruçou sobre o tema em três pós-doutorados nos Estados Unidos e autor de “Prazeres Ilimitados” (Nova Fronteira, 2015), o prazer é mais do que um estímulo sensorial: é um modo de viver em sociedade, um antídoto para o horror que vivemos hoje. Estudioso de Platão, ele não sugere uma volta à antiguidade, mas que nos inspiremos nos gregos e vejamos o prazer como uma forma de resistência. “Uma coisa grandiosa como a vida exige que tenhamos atitudes de grandeza. E em momentos como o atual somos convocados a ser grandes”, afirma na entrevista que você lê a seguir.
O prazer é a resistência. É o que faz com que as pessoas ergam a cabeça e defendam a vida, o mundo, os outros
- G |Você escreve que nós, no mundo contemporâneo, não sabemos o que é o prazer e nem nos preocupamos em descobrir o que ele é, apesar de falarmos em prazer o tempo todo. O que a sociedade chama de prazer hoje é na verdade compulsão e voracidade. Vivemos esse paradoxo?
Fernando Muniz |
A visão do prazer, ao longo destes últimos séculos, tem sido reduzida a uma forma mínima, do prazer-sensação e da excitação, como, por exemplo, o prazer que temos ao tomar um sorvete. O que caracteriza a nossa época é uma espécie de ansiedade enorme em relação a uma satisfação que nunca se dá. Há um vazio que está sempre sendo experimentado e uma promessa de satisfação adiada. Um exemplo: as pessoas compram um produto e, quando chegam em casa, já perdem totalmente o interesse achando que essa satisfação virá num segundo item, num terceiro. As pessoas se envolvem com alguém e logo na sequência acreditam que a promessa de prazer está adiante, sempre adiante. É um adiamento perpétuo da satisfação. Isso se contrapõe aos gregos e ao modo como entendiam o prazer, à profundidade que davam a ele, com questionamentos sobre a tipologia, a diversidade e, fundamentalmente, sobre o lugar em que esses prazeres entram na vida. Não era questão de biologia, mas de que tipo de vida se quer ter, uma vida significativa, admirável, que dá orgulho de viver. Nada disso está no nosso universo cultural, nós sofremos certa amnésia.
- G |Até antes da pandemia se falava em hedonismo desenfreado. O que você acha dessa ideia?
FM |
O que significa hedonismo desenfreado? Significa que queremos mais e mais e mais. A palavra grega pleonexia designa um tipo de desejo desenvolvido pela insatisfação. Hoje há uma busca por uma experiência radical, animal. O nosso interesse não é mobilizado por algo que não seja um impacto de violência, que nos fira, que sacuda. Só assim eu me sinto vivo, se a minha sensibilidade for cortada.
- G |Isso tem a ver com a relação entre prazer e dor?
FM |
Ela também é conjugada de outra maneira na contemporaneidade. A dor passou a ter um papel significativo, dá significado à existência. Os mártires, os santos, os padres do deserto utilizavam a dor das suas próprias experiências corporais como uma maneira de ver uma relação com outro plano de existência. Essa busca culmina no plano de existência da plenitude. Hoje há uma busca por experiências cortantes, extremas, como o MMA. É um espetáculo que gera um prazer tão grande pelo extremo do confronto físico. Mais que hedonismo extremado, para mim, é o esvaziamento, é a redução do prazer dentro da estrutura autodestrutiva da cultura contemporânea.
- G |Isso me fez pensar nas práticas do BDSM. Nelas a relação muda?
FM |
Quando você pensa nessas experiências de prazer e dor, há um elemento de criatividade, no sentido de criar um certo mundo de forma comunal. Cria-se um tipo de prazer que estabelece uma relação com o mundo e com os outros, e não o prazer de estar dentro da própria subjetividade. Quando é um prazer recíproco, ele envolve uma coletividade, um mundo, o que dá sentido à existência. O que estamos sentindo é que hoje há a constatação do vazio dessa experiência, do vazio das experiências vitais.
Sócrates dizia que uma vida que não se examina não merece ser vivida
“O triunfo de pan”, por Nicolas Poussin
- G |Buscamos o prazer de forma tão errada que encontramos o vazio?
FM |
O suicídio de adolescentes na América do Norte é uma coisa chocante: pessoas que estão iniciando a vida e já estão desistindo de cara. É um fenômeno cultural que mostra a separação da vida do seu elemento básico, o de ser uma fonte de prazer. Viver é ter prazer em estar vivo. Quando uma cultura nos ensina desde cedo a não ser capaz de ter uma relação com o mundo, com os outros e com nós mesmos que seja prazerosa, ela está falhando já de saída. E nós estamos pagando um preço enorme por vivermos reféns do vazio, que é o que sobra. Quando há esse vazio, há as políticas extremadas. O ódio é uma manifestação de uma frustração gigantesca que vira ressentimento em busca de culpados.
- G |Como preencher esse vazio então?
FM |
Ele precisa ser preenchido, mas não com as novas sensações, com o próximo like. O preenchimento é a atividade cultural. É preciso que nós recriemos a nossa relação com o mundo e com as pessoas — e com nós mesmos — de forma intensa e verdadeira. Eu não tenho receita para isso, não escrevi um manual. Sei que temos uma esperança e um exemplo, que é a Grécia Antiga. Entendemos, no nosso mundinho contemporâneo, que o prazer vem de mim; eu sou o tirano do meu prazer, o centro, sou eu quem o sinto. Você tem o seu prazer e eu tenho o meu. E nós viramos esses átomos incomunicáveis flutuando. Não formamos uma sociedade real se a cola que nos une não está cheia de reciprocidade, de amizade. É preciso que essas relações sejam pautadas por esses elementos que constituem o maior cimento que existe, a cultura e o prazer. Vejo muita coisa rica acontecendo na periferia, muita gente disposta, muitas tribos que estão surgindo e escuto os tambores.
- G |Chegamos então à ideia de que o prazer é político?
FM |
Quando pessoas se unem por uma causa, com um aspecto comunal e recíproco, isso dá um prazer enorme de existir e um significado palpável e concreto para a vida. Não é uma mera excitação momentânea, mas um sentido profundo que tem a forma de uma resistência. O prazer é a resistência. É o que faz com que as pessoas ergam a cabeça e defendam a vida, o mundo, os outros. É a maneira de estar de pé. Relações recíprocas são o grande ponto do prazer e, para construí-las, é preciso ter senso de justiça, não pelo dever, mas pelo que se considera certo emocionalmente e intelectualmente. É preciso recriar a cultura para que possa desempenhar um papel ético. Essas coisas não podem ser separadas, a ética e a política. Elas foram separadas por uma série de operações históricas e nos deixaram desarmados diante do que a gente assiste. Mas não podemos cruzar os braços, temos que ficar com prazer, de pé, resistindo diante do nada. Não se trata de cobrir o vazio, mas de habitá-lo com coragem, com reciprocidade e coletividade. Nada é mais forte que as relações humanas.
- G |Agora na pandemia, vemos que as pessoas têm cada vez mais dificuldade para sentir e ver prazer nas coisas. Tem-se usado o termo definhamento para definir esse fenômeno. Como vê isso?
FM |
Acredito que houve a sobriedade de um recuo, que em muitos casos gerou uma percepção mais aguda do que havia antes. O desgosto não se dá somente em relação à situação atual. O recuo é de luta pela sobrevivência, tem um sentido. É bonito ver as pessoas recuarem não só para salvar suas vida, mas para salvar a vida dos outros. Isso tudo gerou uma insatisfação grande com o modo como as pessoas viviam e uma vontade de alterá-lo. Esse definhamento é a nossa situação real. Nós fomos levados a nos confrontarmos com um tipo de empobrecimento da vida, que sempre foi mascarado pelo novo iPhone. Afinal, tem sempre uma novidade que nos distrai e que adia a pergunta “o que eu estou fazendo da minha vida?”. Sócrates dizia que uma vida que não se examina não merece ser vivida.
Os gregos entendiam que o prazer é uma coisa vivida e compartilhada, é uma maneira de estar no mundo
"Bacanal", por Michel-Ange Houasse
- G |O que podemos aprender com os gregos?
FM |
Não proponho nenhuma volta aos gregos, o que seria
ridículo, patético. Mas dá para olhar aquela experiência como estímulo e
inspiração. Uma coisa grandiosa como a vida exige que tenhamos atitudes de
grandeza. Nesses momentos somos convocados a ser grandes. Os gregos entendiam
que o prazer é uma coisa vivida e compartilhada, é uma maneira de estar no
mundo.
Chamamos de anedonia a doença que nos faz incapazes de sentir prazer. É
confundida com depressão. Ela tem a ver com o nosso desejo ilimitado por cada
vez mais, algo que está nos levando à ruína. Os gregos tinham uma vacina para
essa doença, que não era edulcorada ou pacífica: eles viviam questões trágicas,
mas nunca por vazio, sempre por superabundância, por transbordamento de vida.
Agora, essa busca pelo mais vem de uma carência fundamental e de um abismo sem
fundo que está dentro de cada um e que leva ao desespero.
- G |O consumismo é um sintoma disso?
FM |
Na nossa sociedade, a carência é inseparável da discussão dos consumismos. Os objetos de desejo são objetos de consumo, e é a cara desse desejo sempre substituir as coisas que mais amamos. Essa é a maneira mais miserável de se construir a vida. Lembro a estilista e modelo L’Wren Scott, que namorava Mick Jagger. Era linda, famosa, estava sempre com um sorriso aberto. Um dia manifestava essa alegria e, no outro, se matou sem razão aparente. A linha é muito tênue entre a excitação e o vazio assassino. A pessoa passa muito rápido entre uma coisa e outra, porque não existe uma conexão real.
- G |E os prazeres ditos “pequenos”, como os que vêm da comida, da bebida?
FM |
Você pode entender que uma sensação gustativa pode
estar presa dentro de um universo muito individualizado, mas isso não se dá
necessariamente. Afinal, quando pessoas comem juntas, há ali uma unidade
cultural. Os prazeres que saem dali são intensificados pelo fato de que o
evento é compartilhado. Muitas vezes você está com alguém e a comida não tem a
menor importância ou não é a coisa principal. Você está ali para viver aquela
experiência em que a comida é um elemento gustativo também. Eu não acho que os
prazeres sensórios sejam inferiores. Para uma comunidade indígena, os atos de
beber e de dormir têm uma riqueza compartilhada enorme. É como aqueles almoços
de família que a pessoa passa anos frequentando: um dia você tem que comer sozinho
naquele mesmo lugar e parece que tudo desapareceu, é muito triste. Os prazeres
sensórios estão ligados às pessoas, às ciscunstâncias.
Platão propôs a ideia de que o prazer é inseparável do desejo. E que os desejos
são sempre de algo que você não tem, que lhe falta. Desejo é falta. A sede é
falta da água, fome da comida, e o prazer seria o preenchimento dessa falta.
Mas ele não se sentiu satisfeito com essa ideia, porque essa saciedade é
circular, a fome volta sempre ao ponto zero.
- G |Como a vida online altera a nossa relação com o prazer?
FM |
Isso tem a ver com compulsão, com desejos que são potencializados e nos fazem buscar sempre alguma outra coisa de uma maneira cega e desordenada, com pouco conteúdo reflexivo e argumentos menosprezados. Quando a vida online chegou, suplantou todos os outros modos de desejo — o virtual é esse local onde tudo é possível e as satisfações são imediatas. Muita gente está vivendo em um mundo em que a realidade não tem nenhuma função e o mundo virtual oferece muito mais e cria muito menos obstáculos. A pandemia nos trouxe um mal-estar inseparável de um diagnóstico de como a vida está sendo vilipendiada. Mas, num espaço virtual, a pessoa navega sem obstáculos, sem questionamentos, tem sempre um sim, um like. Essa possibilidade sem obstáculos potencializa a compulsão. É preciso que esse universo virtual seja ocupado também por outro tipo de prática que não seja a da satisfação imediata e a do escapismo. É preciso que a realidade saia pelo computador e atinja seu destino.
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