Anselmo Borges*
Pergunto-me a mim próprio se a maior revolução na história das religiões não está naquela ordem que Jesus, na continuidade dos profetas, essas figuras colossais da História, coloca na boca de Deus: “Ide aprender o que isto quer dizer: ‘Eu não quero sacrifícios, mas justiça e misericórdia’.”
Por princípio, nas diferentes
religiões, uma das componentes essenciais é precisamente o sacrifício a
oferecer à divindade. E degolam-se cordeiros, vitelos, bois, pombas, cabritos.
Mesmo pessoas humanas foram sacrificadas. Quem não se lembra do terror de
Isaac, o miúdo carregando com a lenha do sacrifício, desconhecendo que a vítima
era ele próprio? Também por princípio, só os sacerdotes podem oferecer
sacrifícios. Há quem afirme que no tempo de Jesus, serviam no Templo de
Jerusalém uns 20.000 sacerdotes e levitas -- os levitas eram uma ordem inferior
de clérigos, que ajudavam os sacerdotes em vários serviços, como apresentar os
animais e a lenha para o altar. Embora hoje os historiadores estejam de acordo
em reconhecer que é um número exagerado, Flávio Josefo escreveu que numa Páscoa
em Jerusalém foram degolados 255.600 cordeiros. Atendendo ao sangue que corria
no meio do calor, entende-se a expressão forte do profeta, quando faz Deus
dizer que é um fedor que chega aos céus.
Jesus veio proclamar que Deus
é bom, que está farto de sacrifícios, e foi mesmo o enfrentamento com o
sacerdócio judaico uma das razões da sua crucifixão. Deus é amor. Se há
definição para Deus, ela só pode consistir na acção de amar: Deus é aquele que
ama. Deus está do lado da Humanidade. Deus criou não para a sua maior honra e
glória, mas para a alegria e a realização plena dos homens, das mulheres, dos
jovens, das crianças. Deus é Pai/Mãe e só quer a felicidade de todos. Deus não
está irado com a Humanidade. Portanto, não precisa de ser aplacado com
sacrifícios.
A revolução é, pois, esta: os
homens e as mulheres não têm que ter medo de Deus. Ora, se não precisam de ter
medo, são livres e não escravos. Então, libertos do medo, não metem medo.
Porque não haja ilusões: quem tem medo mete medo. Deve-se ter medo de quem tem
medo: por paradoxal que pareça, o medo desencadeia toda a forma de violência.
Que a rejeição dos sacrifícios
por parte de Jesus constituiu uma revolução prova-se também pelo facto de, a
partir de alusões já no Novo Testamento, se ter dado à própria morte de Jesus
uma interpretação sacrificial: essa morte era a paga a Deus pela dívida
contraída pela Humanidade com o pecado dos primeiros seres humanos. A ofensa
cometida contra Deus era infinita, e, assim, a reparação também tinha de ser
infinita. Por isso, Deus não poupou o próprio Filho: a sua morte sangrenta foi
exigida para aplacar Deus na sua ira e assim Deus reconciliar-se com a Humanidade.
Foi deste modo que Deus-amor
voltou a ser o Deus-Moloch sanguinário e bárbaro. Mas, se Deus é sádico e exige
sangue, os homens podem fazer o mesmo -- e aí está a religião enquanto
legitimadora de tanto sangue derramado e de tanta violência cometida, desde
sempre. Aí está hoje uma invasão injusta com uma guerra hedionda, brutal,
torturadora, que não poupa civis nem mulheres nem crianças, que atira cadáveres
para valas comuns, que humilha a Onu, que não teme o perigo de uma guerra
nuclear, com a ameaça do fim da própria Humanidade, e é uma invasão e uma
guerra provocadas por quem se diz cristão, apoiado pelo seu líder religioso,
contra cristãos…
O Deus que mete medo e apavora
está ao serviço do poder: é fácil subordinar quem vive afogado em medo. Quanto
poder religioso e político não foi beber no medo! Pregou-se o medo para poder
subjugar e dominar homens e mulheres, povos inteiros. Se o medo for medo de
Deus, já se está vencido.
Sim, Jesus sacrificou-se até à
morte e morte de cruz, mas não foi Deus que exigiu a sua morte. Pelo contrário.
Jesus, cuja é mensagem é que Deus é Amor, não desistiu, apesar de saber as
consequências dela por palavras e obras, foi coerente até ao fim, morreu para
dar testemunho da Verdade e do Amor, mandado crucificar pela coligação de
interesses religioso-imperiais, postos em causa pelo Deus que Ele pregava.
Morreu crucificado, para proclamar bem alto e para sempre que Deus não quer
crucificados. Ser discípulo de Jesus quer dizer fazer como Ele fez e o que Ele
fez: significa libertar os crucificados, os oprimidos, contribuir de todos os
modos para a dignificação de todos.
No dia em que a mensagem de
Jesus chegar à cabeça e ao coração e à acção dos seres humanos, já não haverá
medo de Deus. O que então habitará no mais íntimo será a reconciliação consigo
e com os outros, e a compaixão e a misericórdia, que é o que Deus quer. E até
haverá a graça do perdão, para perdoar o imperdoável -- o perdão sem condições,
que já não pertence à ordem do jurídico nem do político. Aí, no perdão do
imperdoável, é a razão humana enquanto capacidade de cálculo que cessa. Como
escreveu o filósofo Jacques Derrida, perdoar o imperdoável aponta para algo que
está para lá da imanência, "qualquer coisa de trans-humano": "na
ideia do perdão, há a da transcendência", pois realiza-se um gesto que já
não está ao nível da imanência humana. Aí, começa o domínio da religião.
"A partir desta ideia do impossível, deste 'desejo' ou deste 'pensamento'
do perdão, deste pensamento do desconhecido e do transfenomenal, pode muito bem
tentar-se uma génese do religioso."
Anselmo
Borges
Padre
e professor de Filosofia
Escreve de
acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado
no DN | 14 de maio de 2022
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