Camilo Martins de Oliveira*
Entre
a primeira e a segunda cenas do segundo ato da sua ópera Thaïs, Jules
Massenet introduz um "intermezzo" musical que intitulou "Méditation
Religieuse": é nesse momento que se dá a conversão da prostituta em
santa nascente, enquanto Athanaël, o monge que a motivou ao
arrependimento e à busca do amor espiritual de Deus, começa a sofrer a
fortíssima tentação de Eros. A "Méditation" soa-nos aí como o fluir
sereno de uma alma que, renunciando aos prazeres ruidosos do mundo, se
vai refugiando na doçura silenciosa do misterioso amor de Deus. Mas o
mesmo tema musical se repetirá, primeiro, na cena inicial do terceiro
ato, quando Thaïs, ingressando no mosteiro do deserto, diz para sempre
adeus a Athanaël e este, ao som da "Méditation", dolorosamente
compreende que jamais voltará a vê-la. E, depois, já no fim desse
terceiro e último acto da ópera, no dueto final, quando Thaïs entra na
morte e na visão de Deus, Athanaël mais não pode do que gritar o amor
erótico que apaixonadamente o submergiu. Assim, da novela homónima e
intencionalmente anticlerical de Gustave Flaubert, mais do que o libreto
que dela Louis Gallet escreveu para a ópera, é a música de Massenet que
nos encaminha para uma meditação sobre a condição humana, dividida
entre "La Pesanteur et la Grâce" como a definiu Simone Weil. Nesta
história, há duas pessoas que se encontram e seguem em direções opostas,
mas o mesmo mistério marca o destino dos seus percursos.
Afinal,
estamos, como no filme de Joaquim Sapinho, "Deste lado da
Ressurreição". Aqui, entre a terra e o céu, entre o amor humano e a
força telúrica do Guincho, que conduz ao silêncio sombrio, à austeridade
acolhedora para além de qualquer acolhimento sensível de uma serra de
Sintra enclausurada no Convento dos Capuchos, também não é a flagelação
castigadora do corpo de Rafael que o libertará. Frente à tentação da
transcendência, e no silêncio de Deus sobre a terra, as águas iniciais, o
espírito também chama ao Agapè, ao amor dos outros, em que incarnou o
que era o Outro absoluto, para ser tudo em todos. "Deste lado da
Ressurreição" é uma Peregrinação Interior" - diria o nosso António
Alçada Baptista - contada com um pudor manso e secreto: entre a
gravidade e a graça, sentimos, misteriosamente, como Bernanos, que "tudo
é graça". Os vislumbres de amores humanos são, uns, superficiais e
fugitivos, enamoramentos sem mais; mas outros, consubstanciados nas
relações familiares, ganham a densidade (que é outra "pesanteur") que o
amor, a única virtude intemporal, tem de aguentar do lado de cá do
Apocalipse. Lembro-me dessa imagem de S. Tomás de Aquino, aureolado de
sabedoria e santidade, mas com o indicador sobre os lábios, impondo à
boca o silêncio da contemplação. A história de Santa Thaïs é recolhida
das "Vitae Patrum" pelo dominicano genovês Tiago Voragino, que a inclui
na sua "Legenda Aurea". Aí, Athanaël chama-se Padre Panúcio que,
contrariamente ao monge de Flaubert, se mantém fiel à sua vocação e
votos. Mas a versão mais antiga que dela se conhece é em grego do séc.
V, em que o nosso monge se chama Serapião. Esta "vida" pode ser
facilmente comparada a outra, cuja versão mais antiga, em grego também,
data do séc. VII: a de Santa Maria Egipcíaca, cortesã que se converte e
vai viver 47 anos no deserto. Esta hagiografia inscreve-se na tradição
de Maria Madalena, pecadora arrependida, que data dos primeiros séculos
do cristianismo e tem a ver com a conversão pela função salvífica da
penitência. Curiosamente, nas histórias de que falamos, à luxúria da
carne associa-se a acumulação de riquezas, fruto daquela. Todavia,
porque é que a fraqueza carnal será, ao longo da vida bimilenária da
Igreja, mais estigmatizada como pecado do que a ganância ou a injustiça
social? Haverá algum paganismo nessa demonização de Eros? "O pagão - diz
Denis de Rougemont em "O Amor e o Ocidente" na belíssima tradução do
saudoso João Bénard da Costa - não podia deixar de fazer de Eros um
deus: era o seu poder mais forte, o mais perigoso e o mais misterioso, o
mais profundamente ligado ao facto de viver." (Ocorre-me aqui essa
definição de Georges Bataille: "L’érotisme c’est l’afirmation de la vie
jusque dans la mort"...). E, depois de dizer de Agapé, do amor cristão,
que ele é "a afirmação do ser em ato", Rougemont escreve: «Foi Eros, o
amor-paixão, o amor pagão, quem espalhou no nosso mundo ocidental o
veneno da ascese idealista - tudo o que um Nietzsche injustamente
censura ao cristianismo. Foi Eros e não Agapè que glorificou o nosso
instinto de morte e quis "idealizá-lo". Mas Agapè vinga-se de Eros
salvando-o. Porque Agapè não sabe destruir e não quer destruir nem
sequer aquilo que destrói. Não quero a morte do pecador, mas a sua
vida».
* Diplomata internacional prestigiado, escritor, ensaísta e orientalista.
Fonte: https://e-cultura.blogs.sapo.pt/a-proposto-de-deste-lado-da-1255577
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