domingo, 29 de maio de 2022

Gente como a gente

Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo

Caravaggio 

'Davi com a Cabeça de Golias', famoso quadro de Caravaggio:
 amado pelas mulheres Foto: Alessandro Bianchi/ Reuters

O chamado de Deus ocorre em meio ao contraditório e a todas as ambiguidades de pessoas normais

29 de maio de 2022 

Quem conhece narrativas bíblicas sabe que as pessoas do texto são muito marcadas pela ambiguidade. Na Idade Média dominou a narrativa modelar sobre os santos, as chamadas hagiografias. Os eleitos eram perfeitos desde o berço, nunca tremiam, jamais duvidavam. No texto bíblico, pelo contrário, as pessoas são reais. Abraão mente ao faraó que sua esposa seria sua irmã; um irmão engana o pai com ajuda da mãe (Jacó com o idoso Isaac); o encarregado do culto a Deus, Aarão, é quem cede ao povo e faz o bezerro da idolatria; e, apenas para dar outro exemplo, Jonas fica decepcionado que Deus não destruiu a cidade de Nínive. Existem narcisos feridos, jogos de poder, tramoias e estratégias pessoais. Vale o mote de Nietzsche: humano, demasiado humano. 

O encontro do jovem Davi e o gigante Golias é narrado no capítulo 17 do Primeiro Livro de Samuel. Usando da habilidade com sua funda, o rapaz acerta o guerreiro enorme e o mata. Depois, decepa sua cabeça. Juntamente com o episódio de Judite /Holofernes e Salomé/João Batista, são três cenas fortes de gente perdendo a cabeça na Bíblia para deleite da história da arte. 

Quase sempre, Davi é representado como um adolescente no episódio, com a notável exceção da estátua de Michelangelo. O florentino preferiu a exuberância de um homem forte e jovem. 

Avanço na narrativa. O povo de Israel está feliz no capítulo 18 narrado por Samuel. O gigante atacava a honra de todos e ainda insultava o Deus dos hebreus. A vitória inesperada do jovem tinha provocado euforia. A fama de Davi crescia ao atacar filisteus. As mulheres cantavam que o rei, Saul, tinha matado milhares, mas Davi, dezenas de milhares. Não bastasse a fama crescente do jovem de Belém, a amizade com Jônatas, filho mais velho do rei, era muito forte. 

O jovem Davi matava mais inimigos do que o velho e experimentado rei? Entrava na casa real com uma amizade forte com o herdeiro natural do trono? Era mais amado pelas mulheres de Israel e pelo primogênito do que o próprio Saul? Era demais para o primeiro rei de Israel. 

A reação do soberano foi significativa. Duas vezes arremessou uma lança para matar o jovem filho de Jessé. Errou em ambas. O rei estava em uma rede complexa de sentimentos. Na narrativa, logo após ter tentado cravar Davi na parede, dá a ele sua filha Merab em casamento. O ex-pastor se achava indigno de ser genro de rei. A jovem acabou casando com outro.

Para piorar a ambiguidade, outra filha do rei se apaixonou pelo guerreiro célebre. Davi, de novo, acha honra elevada, porém acaba aceitando o encargo em troca de um gesto de gosto duvidoso para nosso padrão atual: o dote seria o corte de um número expressivo de partes íntimas de filisteus. Era uma armadilha do rei ao futuro genro, que respondeu dobrando a meta e oferecendo duzentos prepúcios ao soberano que demandara cem. 

Uma das coisas que adoro na Bíblia é sua humanidade. As personagens são de imensa riqueza e muitas contradições. Reis violentos e com abalos psíquicos, jovens cheios de fé, amizades improváveis como a de Jônatas com Davi (ou Rute e Naomi como bom exemplo de camaradagem fora do padrão). 

A história do pastor de Belém, Davi, é tomada de gente com inveja, desequilíbrios mentais, desejos, e tentações com a mulher de Urias. Eu me lembro perfeitamente da imensa impressão que tive com o quadro de Pedro Américo no Museu Nacional de Belas Artes. Do que trata o quadro? O primeiro capítulo de I Reis narra o rei Davi com frio, não conseguindo se aquecer por causa da idade. Então, arrumam uma jovem virgem, Abisag, com a função térmica no leito real. Pedro Américo pintou o momento em que um assustado ancião vê uma jovem se deitar com ele. O quadro tem influências do chamado Orientalismo na sensualidade e na opulência erótica de “harém turco” que imagina. 

O texto sagrado se permite liberdades que fariam corar muitos autores libertinos dos séculos 18 e 19. A lição é clara: o chamado de Deus ocorre em meio ao real histórico, ao contraditório e a todas as ambiguidades de pessoas normais. 

“O Senhor é meu pastor, nada me faltará”, proclama Davi como salmista. Ele me conduz e ao me conduzir me protege do rei louco, da inveja, dos excessos de sexo, da briga dos meus filhos pelo trono e de todas as intrigas que minhas fraquezas e as dos outros provocam. Em resumo, gente como a gente. Pessoas que parecem reais enfrentando seus limites e os do mundo, dialogando com o plano divino dentro e inserido até o pescoço no mundo profano. O que eu admiro em algumas personagens é que não falariam ao povo “vocês pecadores”, porém “nós”. Diferentes de tantos de hoje, não se colocariam em um pedestal imaculado julgando todos abaixo. Ao ouvir alguns, lembro-me da reclamação de Fernando Pessoa: “Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?”. Tenho esperança de que mais pregadores consultem a Bíblia e menos seus treinadores midiáticos. “Ó príncipes, meus irmãos! 

 *Historiador e professor brasileiro.

Fonte: 

Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,gente-como-a-gente,70004078792

Nenhum comentário:

Postar um comentário