Anselmo Borges*
O senhor Elliot fora operado a um tumor. Embora a operação tenha sido considerada um êxito, depois dela as pessoas começaram a dizer que o senhor Elliot já não era o mesmo - sofrera uma mudança de personalidade drástica. Outrora um advogado de sucesso, o senhor Elliot tornou-se incapaz de manter um emprego. A mulher deixou-o. Tendo desbaratado as suas poupanças, viu-se forçado a viver no quarto de hóspedes em casa de um irmão. Havia algo de estranho em todo este caso. De facto, intelectualmente continuava tão brilhante como antes, mas fazia um péssimo uso do seu tempo. As censuras não produziam o mínimo efeito. Foi despedido de uma série de empregos. Embora aturados testes intelectuais nada tivessem encontrado de errado com as suas faculdades mentais, mesmo assim foi procurar um neurologista. António Damásio, o neurologista que Elliot consultou, notou a falta de um elemento no reportório mental de Elliot: ainda que tudo estivesse certo com a sua lógica, memória, atenção e outras faculdades cognitivas, Elliot parecia não ter praticamente sentimentos em relação a tudo o que lhe acontecera. Sobretudo era capaz de narrar os trágicos acontecimentos da sua vida de uma forma perfeitamente desapaixonada. Damásio ficou mais impressionado do que o próprio Elliot. A origem desta inconsciência emocional, concluiu Damásio, fora que a cirurgia da remoção do tumor cortara as ligações entre os centros inferiores do cérebro emocional e as capacidades de pensamento do neocórtex. O pensamento de Elliot tornara-se igual ao de um computador: totalmente desapaixonado.
Citei livremente Daniel Goleman em Inteligência Emocional. Afinal, o ser humano não é redutível à lógica.
No que se refere à moral, Max Horkheimer, um dos fundadores da Escola Crítica de Frankfurt, deixou escrito que não é possível fundamentar a moral de um modo exclusivamente lógico. Isso foi visto também por Herbert Marcuse. Já no hospital, confessou ao seu amigo Jürgen Habermas: "Vês? Agora sei em que é que se fundamentam os nossos juízos de valor mais elementares: na compaixão". Aqui, tenho inevitavelmente de perguntar, ao ver aquela tragédia horrorosa da Ucrânia, com mulheres e crianças a fugir no total desamparo: o responsável por aquela guerra não se deixa abalar por um mínimo de compaixão?
Com Espinosa, terá sido Hegel o filósofo que levou mais longe o racionalismo: "o que é racional é real; e o que é real é racional", escreveu. Mas Ernst Bloch objectou que o processo do mundo não pode desenrolar-se a partir do logos puro. Na raiz do mundo tem de estar um intensivo da ordem do querer. Bloch, como Nietzsche e Freud, foi beber a Schopenhauer. Este foi um filósofo que sublinhou do modo mais intenso que, na sua ultimidade, a realidade não é racional, pois há uma força que tem o predomínio sobre os planos e juízos da razão: a vontade.
Aí está um dos motivos fundamentais por que, como já aqui escrevi várias vezes, na tentativa da explicação dos fenómenos humanos, a nível individual e social, temos sempre a sensação de que há uma falha no encadeamento das razões. No ser humano, há a pulsão e o lógico, o afecto e o pensamento, a emoção e o cálculo, o impulso e a razão. O próprio cérebro, que forma certamente um todo holístico, tem três níveis; Paul D. Mac Lean fala dos três cérebros integrados num, mas também em conflito: o paleocéfalo, o cérebro arcaico, reptiliano, o mesocéfalo, o cérebro da afectividade, e o córtex com o neo-córtex, em conexão com as capacidades lógicas. A luz racional é afinal apenas uma ponta num imenso oceano inconsciente e também tenebroso.
Por isso, não só não conseguimos uma harmonia
permanente como é necessário estar constantemente de sobreaviso contra a
ameaça de descalabros e catástrofes mortais.
Por outro lado, porque o ser humano não é redutível à lógica
computacional, é capaz de criações artísticas divinas, do amor gratuito,
do luxo generoso.
É necessário permanecer atento à realidade humana na sua infinita complexidade. Aí está, por isso, por exemplo, a exigência de unir a inteligência e a bondade. Não basta a bondade, uma bondade cega, o sentimento em bruto. A bondade tem de ser inteligente, esclarecida. Na Igreja, prega-se frequentemente a bondade. Mas não basta. Desgraçadamente, devido a toda uma mentalidade dogmática, de rigidez doutrinal, na Igreja não há o hábito de fazer perguntas, de preparar para o juízo crítico. No entanto, se o crente está referido a Deus, que é infinito, não é sua obrigação interrogar, fazer perguntas ilimitadamente? Não é "a pergunta a piedade do pensamento", como disse Martin Heidegger?
Mas, na Igreja, reina, frequentemente, o imobilismo, uma tradição estagnada, que tem medo do novo. Prega-se a obediência, citando São Paulo: Cristo obedeceu até à morte e morte de cruz. Porém, nunca se explicou que a sua obediência não foi uma obediência cega e resignada. Pelo contrário, obedecendo a Deus, a quem chamava Pai - Abbá, com o sentido de ternura filial: Papá (Pai querido) - , fê-lo subvertendo o poder religioso e político estabelecido, que oprimia os homens e as mulheres, precisamente em nome da obediência religiosa. O Deus seu Pai quer a libertação. Por isso, a obediência de Cristo foi a subversão de uma ordem opressora, que impedia os homens e as mulheres de viver na dignidade e na liberdade.
Com bondade generosa e inteligência lúcida, podíamos e devíamos fazer da Terra uma casa comum mais bela, mais iluminada, para habitar.
*Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/unir-a-bondade-e-a-inteligencia-14874314.html 21/05/2022
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