Um amigo me mandou uma coluna de Martha Medeiros. Fazia tempo que eu não lia um texto dessa cronista gaúcha de sucesso nacional. Martha escreve bem, com leveza e sagacidade. Os assuntos, em geral, não são a minha praia. Ela trata de temas caros a uma camada social sofisticada e moderna à qual não pertenço. Digo isso com a tranquilidade de um sexagenário que aprendeu a respeitar a qualidade alheia mesmo quando se sente estranho ao imaginário em questão. Em termos mais esclarecedores, é muito Moinhos de Vento. Sou Bom Fim.
A coluna que me enviou o Leandro é dez. Martha Medeiros sai do sério e detona, com elegância e pertinência, a turma do Parcão que votou em Jair Bolsonaro por medo do comunismo e por influência da Lava Jato. Como foi possível que alguém preferisse votar no destrambelhado capitão Bolsonaro, conhecido por tiradas racistas e homofóbicas, admirador de ditadura e de torturadores, em vez de apostar no pacato, sóbrio e moderado professor Fernando Haddad, homem, além de tudo, com experiência de gestão. Martha botou a faca na bota: “Não entendo quando dizem que a próxima eleição será difícil. Mais fácil, impossível. Armas versus livros. Culto à alienação versus incentivo ao conhecimento. Facilitações exclusivas para militares e evangélicos versus uma política social que atenda todas as pessoas, de qualquer credo, cor e gênero, de esquerda ou direita”. Bolsonaro X Lula.
Foi isso? Foi bem mais do que isso. A cronista pegou os bolsonaristas raiz ou de ocasião pelo nariz: “A dificuldade chama-se Lula, dirão os que ainda usam o líder petista como desculpa por terem votado num oficial que foi expulso do exército por terrorismo e cujo ídolo é um torturador”. Sobra para todos os que recorreram a tais justificativas para fazer o que queriam: escolher o pior. O papo é reto: “Já alguns bem-informados, que sabiam direitinho o que o PT havia feito pelos mais pobres, também vieram com essa conversa mole de ‘desencanto’, a fim de disfarçarem sua identificação com o capitão machista”. A recomendação final é uma aula de realismo: “A escolha é fácil: voltemos aos governos que nos desiludem como todos desiludem em algum ponto, mas que não colocam a democracia em risco, nem usam nossa fé contra nós mesmos”. O texto de Martha Medeiros saiu em Zero Hora.
Lavou a alma de muita gente. Que lição para tanto jornalista reacionário que anda por aí defendendo o capitão de malícias. Sabe-se que na mídia sempre é possível assumir posições de direita, mas qualquer aceno à esquerda pode resultar em acusação de descumprimento de preceito fundamental: a sagrada neutralidade, especialmente quando esta serve aos poderosos de direita no poder. Em outras palavrinhas, Martha mandou o seguinte recado aos que elegeram Bolsonaro alegando falta de escolha e que poderão repetir a dose: deixem de conversa mole, parem de contar histórias, assumam as suas responsabilidades.
Vi no texto da Martha Medeiros uma ponte entre Moinhos de Vento e Bom Fim. Parece muito melhor que uma “ponte para o futuro”.
Deus nos livre de Michel Temer e de Jair Bolsonaro.
É uma escolha muito fácil.
A escolha da democracia.
*Jornalista. Escritor. Prof. Universitário
CRÔNICA DE MARTHA MEDEIROS
Uma escolha fácil
Martha Medeiros*
Não entendo quando dizem que a próxima eleição será difícil. Mais fácil, impossível. Armas versus livros. Culto à alienação versus incentivo ao conhecimento. Facilitações exclusivas para militares e evangélicos versus uma política social que atenda todas as pessoas, de qualquer credo, cor e gênero, de esquerda ou direita.
Isolamento do resto do mundo versus respeito internacional. Discurso vazio versus diálogo. Fascismo versus democracia. Desgoverno versus governo. Qual a dificuldade de escolher?
A dificuldade chama-se Lula, dirão os que ainda usam o líder petista como desculpa por terem votado num oficial que foi expulso do exército por terrorismo e cujo ídolo é um torturador. Alegam ter sido "obrigados" a colocar o país nas mãos de um homem sem projeto, a fim de se livrarem da corrupção - beleza, agora ninguém investiga mais nada. Tiveram que "tapar o nariz" e votar em alguém que nunca debateu uma ideia, em vez de elegerem, mesmo a contragosto, um professor com experiência em gestão pública. Entregaram nosso futuro de mão beijada para um homem que veio do submundo da política, com seu papinho retrô de moralização dos costumes e que usa Deus como cabo eleitoral para manipular a boa-fé de cidadãos mal-informados - e os mantém mal-informados através da indústria das fake news, a única coisa que progrediu nos últimos quatro anos.
Já alguns bem-informados, que sabiam direitinho o que o PT havia feito pelos mais pobres, também vieram com essa conversa mole de "desencanto", a fim de disfarçarem sua identificação com o capitão machista. Deu nisso. Agora somos o país dos milicianos no poder, dos ministérios conduzidos (em sua maioria) por medíocres, da turma desmiolada que despreza a ciência, dos irresponsáveis que foram contra máscara e vacina em plena pandemia. Sério mesmo que temos uma escolha difícil a fazer em outubro?
Corrigir nosso erro histórico não nos conduzirá direto ao paraíso. Seja quem for o candidato ou candidata que conseguir interromper esse período grosseiro do Brasil, haverá de ser cobrado desde o dia que assumir. Um presidente da República tem obrigações e, quando falha, apanha da opinião pública, como todos já apanharam, é o ônus do ofício. Somos 200 milhões de patrões avaliando a conduta de um funcionário que pleiteia o emprego mais importante do país e que promete um plano eficiente de gerenciamento. Se não cumprir, fora.
A besteira que fizemos em 2018 está custando caro, econômica e moralmente. De que adianta sermos bons cristãos, se hoje estamos alinhados aos tiranos do mundo? A escolha é fácil: voltemos aos governos que nos desiludem, como todos desiludem em algum ponto, mas que não colocam a democracia em risco, nem usam nossa fé contra nós mesmos.
* Escritora, aforista e poetisa brasileira. É conhecida como uma das melhores cronistas brasileiras.
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