Crónica de Bento Domingues*
no PÚBLICO
Neste
momento e apesar dos esforços do Patriarca Bartolomeu e do Papa
Francisco, os cristãos não se mostram só incapazes de fazer a paz entre a
Rússia e a Ucrânia, como são eles próprios que estão em guerra,
levantando muros cada vez mais altos.
1.
Os cronistas da actualidade nem sempre precisam de recorrer ao passado.
Não é o meu caso. Por devoção e obrigação, procuro praticar a contínua
correlação crítica entre o complexo acontecer do presente e os textos do
Novo Testamento, situados no tempo e na geografia em que nasceram e
tendo em conta a situação actual dos estudos bíblicos e as novas
interpretações da Bíblia na Igreja. Já foi dito que as próprias
Escrituras crescem com as leituras que delas se vão fazendo ao longo do
tempo. Um célebre autor protestante dizia que o teólogo deve ter numa
mão a Bíblia e na outra o jornal, simbolicamente, o vai-e-vem contínuo
entre o passado e o presente.
Quando
leio os Actos dos Apóstolos, que acontece frequentemente – e, agora, é
leitura contínua neste tempo pascal, apresentada em fragmentos aos
Domingos, – vem-me sempre à ideia de que é um livro que ficava muito bem
em Banda Desenhada.
Dizemos
que se ocupa das aventuras dos começos da história do cristianismo.
Paulo com as suas peripécias, por causa do cuidado de todas as igrejas
suscitadas por ele, é a principal figura desta obra notável.
Na
2.ª Carta aos Coríntios, ele próprio narrou, em sua defesa e da forma
mais irónica e desabrida, o que lhe foi acontecendo: “Ninguém me tenha
por insensato, ou então, aceitai-me como insensato, para que também eu
possa gloriar-me um pouco. O que vou dizer, não o digo segundo o Senhor,
mas como num assomo de insensatez, certo de que tenho motivos para me
gloriar. Já que muitos se gloriam por motivos humanos, também eu o vou
fazer. Na verdade, tão sensatos como sois, suportais de bom grado os
insensatos. Suportais quem vos escraviza, vos devora, vos explora, vos
trata com arrogância, vos esbofeteia. Para nossa vergonha o digo: como
fracos nos mostramos. Mas daquilo de que alguém se faz forte – eu falo
como insensato – também eu me posso fazer. São hebreus? Também eu. São
israelitas? Também eu. São descendentes de Abraão? Também eu. São
ministros de Cristo? – Falo a delirar – eu ainda mais. Muito mais pelos
trabalhos, muito mais pelas prisões, imensamente mais pelos açoites,
muitas vezes em perigo de morte. Cinco vezes recebi dos Judeus os
quarenta açoites menos um. Três vezes fui flagelado com vergastadas, uma
vez apedrejado, três vezes naufraguei e passei uma noite e um dia no
alto mar. Viagens a pé sem conta, perigos nos rios, perigos de
salteadores, perigos da parte dos meus irmãos de raça, perigos da parte
dos gentios, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar,
perigos da parte dos falsos irmãos! Trabalhos e duras fadigas, muitas
noites sem dormir, fome e sede, frequentes jejuns, frio e nudez! Além de
outras coisas, a minha preocupação quotidiana, a solicitude por todas
as igrejas! Quem é fraco, sem que eu o seja também? Quem tropeça, sem
que eu me sinta queimar de dor? Se é mesmo preciso gloriar-se, é da
minha fraqueza que me gloriarei. O Deus e Pai do Senhor Jesus, que é
bendito para sempre, sabe que não minto. Em Damasco, o etnarca do rei
Aretas mandou guardar a cidade dos damascenos para me prender. Mas fui
descido num cesto, por uma janela, ao longo da muralha, e assim escapei
das suas mãos” [1].
Neste
autorretrato, não pode falar dos seus companheiros nessas aventuras.
Essa é a matéria do livro dos Actos que é preciso ler na íntegra. Aqui,
só destaco alguns passos do nascimento do universalismo cristão.
2.
Era normal que Paulo e companheiros tivessem começado por mostrar aos
outros judeus que o Nazareno crucificado não era um derrotado. Tinham-se
enganado acerca do verdadeiro messias. Podiam, no entanto, como lhe
aconteceu a ele, converter-se ao caminho, à verdade e à vida de Jesus.
Era por essa razão que tentavam, em todas as situações e nas próprias
sinagogas, mostrar a novidade e a verdade que Ele representava, com
razoável sucesso. Era um judaísmo cristão que estava a nascer.
Pedro
foi pioneiro de uma viragem decisiva sem se dar conta: “quando
principiei a falar, o Espírito Santo desceu sobre eles [os gentios],
como sobre nós, ao princípio. Recordei-me, então, da palavra do Senhor,
quando Ele dizia: João baptizou em água; vós, porém, sereis baptizados
no Espírito Santo. Se Deus, portanto, lhes concedeu o mesmo dom que a
nós, por terem acreditado no Senhor Jesus Cristo, quem era eu para me
opor a Deus? Estas palavras apaziguaram-nos e eles deram glória a Deus,
dizendo: Deus também concedeu aos gentios o arrependimento que conduz à
Vida!” [2].
Este apaziguamento
foi sol de pouca dura, porque nem todos concordavam com a narrativa de
Pedro. Entretanto, o cenário complica-se. Paulo entra em acção: contou
ele aos cristãos de Antioquia, de onde tinha partido, um acontecimento
extraordinário: o que Deus fizera com eles [discípulos] e, sobretudo
algo de espantoso, como abrira aos gentios a porta da fé [3]. Deixo para
outra crónica a problemática que provocou o primeiro concílio da Igreja
nascente. Não posso, no entanto, esquecer que foi também em Antioquia
que, pela primeira vez, os discípulos começaram a ser tratados pelo nome
de cristãos.
3.
Como diz a Carta aos Efésios, foi longo o caminho para derrubar o muro
que separava os judeus dos gentios: “Lembrai-vos de que nesse tempo
estáveis sem Cristo, excluídos da cidadania de Israel e estranhos às
alianças da promessa, sem esperança e sem Deus no mundo. Mas em Cristo
Jesus, vós, que outrora estáveis longe, agora, estais perto, pelo sangue
de Cristo. Com efeito, Ele é a nossa paz, Ele que, dos dois povos, fez
um só e destruiu o muro de separação, a inimizade: na sua carne, anulou a
lei, que contém os mandamentos em forma de prescrições, para, a partir
do judeu e do gentio, criar em si próprio um só homem novo, fazendo a
paz e para os reconciliar com Deus, num só Corpo, por meio da cruz,
matando assim a inimizade” [4].
Nunca devemos esquecer esta grande referência cristã. Ela significa que aquilo que parece impossível pode tornar-se realidade.
Ao
longo da história, foram muitas as rupturas entre aqueles que se dizem
cristãos. Desde o século XIX, o movimento ecuménico tem tentado a união
dos cristãos nas suas diferenças. Neste momento e apesar dos esforços do
Patriarca Bartolomeu e do Papa Francisco, os cristãos não se mostram só
incapazes de fazer a paz entre a Rússia e a Ucrânia, como são eles
próprios que estão em guerra, levantando muros cada vez mais altos.
Diz-se
que as guerras nascem de muitas causas, mas sobretudo do instinto de
mandar, de dominar e de se apropriar daquilo que é de todos. Com elas
ganham os fabricantes e os comerciantes de armamentos cada vez mais
sofisticados e destruidores. Se desejássemos trabalhar para estancar as
fontes da violência, que provocam cada vez mais violência, seria
possível responder facilmente, a nível local e mundial, ao que falta às
populações em termos de habitação condigna, em educação e investigação
para o acesso de todos aos melhores serviços de saúde.
Será possível mudar a cultura do ódio em cultura da paz?
Frei Bento Domingues no PÚBLICO - Frei Bento Domingues, O.P., de seu nome Basílio de Jesus Gonçalves
Domingues, é um religioso da Ordem dos Pregadores, por muitos
considerado um dos maiores teólogos portugueses, apesar das suas
posições heterodoxas.
[1] 2Cor 11, 16-33. Ver também o cap. 12 sobre as suas experiências místicas
[2] Act 11, 15-18
[3] Act 14, 21-27
[4] Ef 2, 11-16
Fonte: https://pela-positiva.blogspot.com/2022/05/derrubar-ou-construir-muros.html?utm_source=feedburner&utm_medium=email
Nenhum comentário:
Postar um comentário