As relações humanas
são a vitória mais importante
No passado dia 29 de março, no Vestíbulo da Biblioteca do Vaticano, ocorreu um diálogo entre o cardeal José Tolentino de Mendonça, arquivista e bibliotecário da Santa Igreja Romana, e o treinador de futebol da AS Roma, José Mourinho. Promovido pelo nosso jornal, o encontro sem precedentes entre as duas personalidades portuguesas abordou vários temas, como o valor da educação e do desporto, a importância decisiva das relações humanas em todos os contextos da vida. Falaram também da situação dramática devido à guerra na Ucrânia. A favorecer a conversa, que teve lugar na sua língua materna, foi a ligação que ambos têm com o filósofo português Manuel Sérgio, hoje com quase 90 anos.
CARDEAL TOLENTINO – Queria começar esta conversa consigo, José Mourinho. Para mim é uma felicidade muito grande este encontro aqui consigo na biblioteca. Lembrando, curiosamente, um mestre comum, porque nós temos um mestre comum. E Portugal é de facto, um país curioso, porque um dos nossos pensadores mais originais é um pensador do campo do desporto, da motricidade humana e escreve regularmente não numa revista filosófica, mas num jornal desportivo, A Bola. E queria consigo recordar o professor Manuel Sergio. Sei que é também uma figura muito importante no seu percurso. É sua a nova ideia, o esforço de criar uma nova epistemologia para a motricidade humana. E ele diz que é necessário abandonar o cartesianismo, que divide o homem entre razão e coração, interioridade e alma, e passar o olhar o ser humano de uma forma mais complexa. Ora uma das suas ideias – um dos conceitos que trabalha tão bem – é, de facto, o de priorização antropológica e técnica em que que, digamos, o desporto, o futebol, não é só técnica. Ele diz, não há chutos, há pessoas que chutam, não há saltos, há pessoas que saltam, não há golos, há pessoas que foleiam.
JOSÉ MOURINHO – Não só jogadores.
CARDEAL TOLENTINO - Exatamente.
JOSÉ MOURINHO – Há homens que jogam.
CARDEAL TOLENTINO – Há homens que jogam. Quer falar sobre isso e sobre a importância que tal teve no seu percurso?
JOSÉ MOURINHO - Iniciou quase como uma luta porque eu entrei na universidade de educação física e desporto, completamente ciente daquilo que quero para mim: treino e alto rendimento, com toda a ânsia de aprender aquilo que me interessava. A primeira disciplina que tive no primeiro dia de universidade foi filosofia das atividades corporais, era o nome da disciplina, com o professor Manuel Sérgio. E eu saio da primeira aula e digo, “Para que serve esta disciplina?”. E ele percebeu, em pouco tempo que eu precisava de ser ajudado, precisiva de ser orientado. E efetivamente disse-me e direta: “Quem só percebe futebol, do futebol não percebe nada”. E a partir dali, começamos a desenvolver uma relação que não terminou. É uma relação que ainda continua...
CARDEAL TOLENTINO – Uma amizade...
JOSÉ MOURINHO – E não só uma amizade, um processo permanente de aprendizagem. E um dos maiores desafios que nós enquanto treinadores, condutores de homens, chamemos como queiramos, temos hoje em dia é exatamente como liderar e retirar dele o melhor. O objetivo é o alto rendimento desportivo, mas como retirar o melhor daqueles atletas. Não são atletas, são homens para o Manuel Sergio. E influenciou-me muito, influenciou muito no sentido de que cada pessoa é uma pessoa diferente. Neste caso, cada jogador é um jogador diferente. E cada um deles tem a sua expressão no campo, uma sua expressão ao nível da alta performance. Por consequência, tudo depende, fundamentalmente, de uma empatia que se cria entre dois homens: neste caso, entre um homem mais velho e os jogadores. Este tipo de empatia para mim é fundamental. Eu dou sempre como exemplo quando saí da universidade, ainda antes de entrar n futebol de alto rendimento, eu era professor. E houve um ano em que fui colocado a trabalhar com criança com problemas motores, com problemas psicoemocionais. E eu não estava preparado. Sob o ponto de vista técnico, não estava preparado. Nós na universidade tínhamos diferentes áreas, e a minha área era do alto rendimento. Eu não estava preparado para o que encontrei. Consegui trabalhar bem só com base numa cosa muito simples: amor, empatia, relações humanas e consegui... consegui coisas inimagináveis para mim, que me considerava muito incapaz sob o ponto de vista técnico para trabalhar com aquelas crianças. Conseguimos coisas fantásticas só com base nas relações humanas e eu transferi isto par o meu trabalho dos últimos vinte anos, que obviamente é trabalhar no mais alto nível no desporto. Tive sempre isso como um princípio muito básico. Não digo sempre bem-sucedido. Às vezes não fui capaz.
CARDEAL TOLENTINO - É muito interessante o que diz, José Mourinho, sobre o fracasso. Retomo essa expressão que utilizou, “Nem sempre consegui”. De facto, o conhecimento humano, o conhecimento que temos uns dos outros, é um conhecimento que amadurece também na medida em que nos expomos. E nos expomos não a partir das certezas absolutas, mas no colocamos em jogo e muitas vezes o fracasso, o não-conseguimento, é, digamos, uma etapa fundamental para podermos crescer no conhecimento dos outros. De certa forma, os nossos próprios fracassos e desilusões, a consciência da imperfeição nos ajuda a criar essa tal empatia com os outros porque nos colocamos no seu lugar e vemos as coisas com outra profundidade. Assim podemos gerir bem o conhecimento do humano.
JOSÉ MOURINHO - As experiências boas e as experiencias menos boas não têm preço. Eu às vezes dou comigo a pensar que a única coisa da qual eu não gosto muito no avançar dos anos, é que há uma dorzinha aqui, uma dorzinha ali ou acordo um bocadinho mais cansado. É a única coisa que verdadeiramente não gosto dos meus cinquenta e nove anos. Mas se me comparo como pessoa, como trinador, que são duas coisas diferentes, a pena que tenho é a de não ter há vinte anos atrás a experiência que tenho hoje.
Os portugueses na Biblioteca Apostólica
CARDEAL TOLENTINO – Para um treinador é muito importante esse conhecimento humano...
JOSÉ MOURINHO - Totalmente. Ao nível técnico propriamente dito, entramos praticamente numa situação quase de dejà vu. Aquilo que me aconteceu hoje, já me aconteceu há anos. A dificuldade técnica de hoje já eu a tive há anos. Uma acumulação de experiências e experiência. Mas ao nível humano, cada dia é um novo dia e cada pessoa é uma pessoa nova. Eu recuso-me sempre a comparar jogadores. Já tive tantos ao longo desse vinte anos e cada um é único, ao nível técnico, porque ao nível técnico, podemos encontrar pontos de comparação. Mas pontos de comparação entre pessoas, eu odeio fazê-los. Cada pessoa é uma pessoa. É uma pessoa diferente. E o meu posicionamento perante eles também é diferente porque uma coisa era eu com trinta e cinco anos, ser treinador de jogadores de trinta anos. E outra coisa é com cinquenta e nove ser trinador de jogadores de vinte e cinco. Sinto-me numa posição tão privilegiada e sinto-me tão feliz nessa perspectiva, que verdadeiramente quando um é mais jovem, está no início de uma carreira, não percebe tão bem... Acho que no início nós somos os sabe-tudo. Ou pensamos que sabemos tudo. E quando hoje vejo gerações mais jovens com esse tipo de pensamento, não sou crítico. Eu passei por lá, mas a maturidade é uma coisa fantástica. Enquanto que o desporto de alto rendimento tem momentos de crueldade.
CARDEAL TOLENTINO – Por exemplo...?
JOSÉ MOURINHO - Somos pagos para jogar. Os atletas... não os homens, os atletas, são pagos para ganhar. Estamos a falar de alto, alto rendimento, e às vezes há decisões na gestão de uma equipe, às vezes há uma decisão que têm o seu quê de crueldade, às vezes não há tempo par deixar maturar, não há tempo para deixar crescer.
CARDEAL TOLENTINO – A ditadura dos prazos.
JOSÉ MOURINHO – O erro, o erro pagam-se. O meu erro paga-o. Eu sou despedido, o erro do jogador paga-se. “Não jogas tu, joga o outro.” Há o seu quê de crueldade, mas não podemos deixar que a natureza da nossa profissão se sobreponha àquilo que somos enquanto pessoas. E eu tenho isso muito em conta. É uma coisa em que procuro ajudar e me procuro ajudar a mim próprio a ser melhor. Mas há algo difícil para mim de aceitar, que é o desperdiçar do talento. É uma coisa que ainda hoje, depois de trinta anos de futebol, é difícil para mim, o desperdiçar do talento. Mas às vezes o desperdiçar do talento tem a ver com o percurso de vida que alguns jogadores tiveram. E aí, temos que tentar ser pedagogos até o limite. Mas é como eu lhe digo, o desporto de alta competição, principalmente o futebol, que é o mais industrializado em todos os níveis, tem o seu quê de crueldade.
CARDEAL TOLENTINO – Mas isso é importante: não desistir de ajudar cada um a nascer, a descobrir, a maturar, a desenvolver o seu talento. É interessante porque uma das parábolas de Jesus é precisamente em torno aos talentos e essa necessidade de cada um não enterrar o seu talento, mas maturar no fundo da sua vocação. Porque cada ser humano nasceu com um conjunto de aptidões e competências e pode transformar a sua vida.
JOSÉ MOURINHO – Uma das coisas em que percebo da minha evolução enquanto pessoa é que durante muitos anos, eu ganhava para mim. Eu queria ganhar para mim. E, estou num momento em que continuo a querer ganhar ou mais, mas não para mim. Eu quero ganhar tanto ou mais para os jogadores que nunca ganharam. Quero ajudá-los a... Penso, obviamente, agora muito mais no adepto comum, que sorri porque a sua equipe ganhou, tem uma semana melhor porque a sua equipe venceu. Continuo a ser um animal competitivo, se assim me posso chamar. Continuo a querer ganhar tanto ou mais do que antes. Mas antes focalizava-me em mim próprio...
Tolentino mostrou a Mourinho livro do séc. 15-16 que recolhe "cantigas" medievais, mais de 1200 poemas em língua galego-portuguesa
CARDEAL TOLENTINO – Agora a importância da alegria dos outros, de dar alegria aos outros.Eu creio que tenho uma missão muito bela, esta que o Santo Padre me confiou de ajudar a gerir a sua biblioteca, que é um espelho da história da humanidade, da memória, da cultura... Mas acho que o seu trabalho, José Mourinho, é também alguma coisa de humanamente riquíssimo. O antropólogo Roger Caillois, naquele célebre ensaio sobre os jogos e o humano, diz que o jogo é uma espécie de espelho de tudo aquilo que é humano. E de facto, olhando para dimensão lúdica que o desporto acaba por expressar, tocamos alguma coisa de fundamentalmente humano. Porque as pessoas, por exemplo, quando vão ao estádio de futebol, o adepto comum, não vai apenas, digamos, para esquecer ou para celebrar. Não é por causa de uma pequenina alegria, mas de certa forma, ali, está misturada a ambição de tocar alguma coisa maior, de ir mais longe, de perceber, não sei, um mistério da vida, o seu significado. Não sei se isto para si faz sentido ou não.
JOSÉ MOURINHO – Faz sentido. Eu próprio o sinto. Eu quando... caminho para um jogo, quando saio do hotel, entro no autocarro, quando chego ao estádio, caminho para o balneário, quando o jogo – antes do jogo começar, quando se caminha do balneário para o jogo... Ali existe tanto de espiritualidade naquilo que não é nunca uma rotina. Ainda que se jogue dezenas de vezes no mesmo estádio e que se faça o mesmo percurso duzentas vezes. É um momento que tem qualquer coisa que não se vê, mas que sente tanto. Acho que é de uma beleza enorme. Acho que é um dia, que espero que não seja tão cedo, talvez seja o que mais me faltará: sentir esta dimensão que me leva para direções que nunca partilhei, e que talvez hoje partilho pela primeira vez. Caminhar rumo ao jogo e falar com Ele...
CARDEAL TOLENTINO – Falar com Deus.
JOSÉ MOURINHO – Mas falo com Ele, e acabo sempre por dize... “A minha família é mais importante do que isso. Dá-me aqui uma ajuda se tiveres tempo. Se tivesse que escolher entre este jogo e o bem-estar das pessoas que eu amo, não pensaria duas vezes.”
CARDEAL TOLENTINO – No fundo, trata-se de um desafio entre este jogo e o grande jogo que é a vida, não é?
JOSÉ MOURINHO – Exatamente um para de meses atrás até foi com o Roma que eu cumpri o meu jogo mil. Já estamos muito além deste número. Não há diferença entre o último jogo e o primeiro. Este meu lado é uma coisa muito minha, é uma coisa que nunca é igual. Estou a abrir-me consigo, e indiretamente a abrir-me com o mundo, mas é uma coisa muito íntima. E sem nenhuma dúvida, o futebol não é, como as pessoas pensam, a minha vida. É só uma parte importante da minha vida. E há uma outra parte, que é muito mais importante do que o futebol. E eu, na minha humildade, mas ao mesmo tempo gosto de ter com El uma relação íntima, uma relação de amizade, quase de tu.
CARDEAL TOLENTINO – Uma das coisas que Manuel Sérgio diz, e penso que também seja o seu legado, é que não acredita apenas na palavra superação. Às vezes nós olhamos para o desporto e dizemos: “É uma escola de superação”. Porque se aprende a superar os próprios limites, os próprios medos, a ir mais longe. Isso tudo é verdade. Mas Manuel Sérgio diz: “A palavra superação é inadequada. A verdadeira palavra é transcendência”. E transcendência é uma palavra, digamos, muito mais ampla, que sem dúvida, tem a ver com superação porque nos mostra num movimento intencional de trabalho, de projeção, de confiança, mas ao mesmo tempo é uma abertura ao mistério, à plenitude, ao divino, àquilo que pode dar sentido ao homem. E não é por acaso que nestes últimos anos, o professor Manuel Sérgio acaba todas as entrevistas a dizer que aquilo que mais precisa é de Deus. Isso, a mim, é uma coisa que me toca na relação com ele sempre que tenho oportunidade de o escutar. Acha que esta ligação entre a superação e a transcendência é relevante também para a sua visão?
JOSÉ MOURINHO – É um tema sobre o qual, de modo mais abstrato, em alguns momentos falo com os jogadores. Não entro, obviamente, no campo da religião até porque diante de mim tenho vinte cinco homens com tradições diferentes, crenças diferentes, mas eu chamo-Lhe o sinal +. Eu chamo-Lhe aquilo que pode fazer a diferença. E aquilo que pode fazer a diferença é uma crença comum em quem cada um dirá de si, exercerá o livre arbítrio, acreditas naquilo que quer. Mas o “plus” vem sempre um bocadinho dessa área que não se toca, mas se sente. É abstrato. Eu acho que o nível, por exemplo, de uma preparação para uma competição é um nível altíssimo de pressão, de responsabilidade, onde tens que superar e transcender. Precisamos sempre de qualquer coisa a mais do que aquilo que treinamos, do que aquilo para o qual nos preparámos. Precisamos de qualquer coisa mais. E essa coisa a mais acho que tem muito a ver com a própria espiritualidade, com aquilo que fundamentalmente alimenta para o sinal +. Aquele mais pode ser inclusive pensar nas pessoas que desejam que hoje ganhamos. E quem são estas pessoas? Aqueles que nos amam, aqueles que amam o clube, e os seus simbolismos do clube. Acho que neste momento chave, temos que ir mais fundo e não só agarrar-nos àquilo que é preparação. Não chega o aspecto técnico, tático, físico, preparação mental... É preciso mais. E quando o professor Manuel Sérgio faz essa diferença entre superação e transcendência, acho que é a isto que ele se refere... É uma pessoa sábia, com um vastíssimo conhecimento, e que nos ensinou tanto deixando uma marca.
CARDEAL TOLENTINO – E José Mourinho, podemos falar, se permitir, deste sinal mais na sua vida, na vida desta pessoa e desta história que é sua? Sei que quando trabalhava em Leiria, tinha uma relação especial com Fátima e era um ponto referencial, e que aqui em Roma, passando todos os dias por São Pedro para o trabalho, tem com este espaço um relação, porque o espaço é simbólico, não é apenas um espaço geográfico, é um espaço cheio de sentido, de uma presença. Sei que passar por São Pedro hoje para si é sempre alguma coisa de especial. Quer falar um pouco da sua relação com Deus, do seu caminho espiritual, como é que o traduz?
JOSÉ MOURINHO – A minha relação com Deus traduz-se no meu amor pelos meus. Fundamentalmente... acho que Ele não se chateia, acho que Ele não se chateia por eu direcionar o meu amor por Ele nesta direção. A minha família, os meus amigos, aqueles a quem eu amo, aqueles que me amam a mim, aqueles que continuam conosco, aqueles que já partiram, é aí que eu traduzo, é aí que eu consigo traduzir o meu amor por Deus. Ser solidário até com as pessoas que não conheço, no sentido de me preocupar, de tentar ajudar.
CARDEAL TOLENTINO – Isso a Bíblia também diz na carta de São Tiago. Não podemos dizer que amamos o Deus invisível, se não amamos aqueles que vemos...
JOSÉ MOURINHO – É exatamente isso que eu penso. Se me perguntar se Fátima para mim é especial, eu digo “sim”. Fundamentalmente, a Fátima silenciosa, deserta, que permite um encontro mais íntimo. Por ser uma pessoa bastante conhecida, que as pessoas procuram abordar, não por má fé, obviamente, mas que acabam por perturbar num momento que eu gostaria que fosse para mim próprio. Isso tornou-me uma pessoa que visita Fátima à noite. E ao vir para Roma fez com que eu visite São Pedro de noite também. A máscara ajuda, a escuridão da noite também ajuda e...
CARDEAL TOLENTINO – E o que sente nestes momentos em que está ali em silêncio?
JOSÉ MOURINHO – Converso – estou em silêncio, mas converso muito. E pode ser um bocadinho paradigmático, e se calhar as pessoas que acompanharam a minha carreira, se clhar olham para mim e não veem essa pessoa. É de futebol a última coisa de que eu falo, a última coisa que eu penso, a última coisa que um peço. E, é exatamente aquilo que tentava antes dizer. Eu acho que ser bom pai, ou tentar ser, digo “tentar ser” porque é difícil, é uma coisa difícil de medir. Só as pessoas é que o poderão dizer, mas tentar ser bom pai, tentar ser bom marido, tentar ser bom filho, tentar ser bom amigo. Eu acho que essa tentativa é a maior motivação que uma pessoa pode ter para o seu dia a dia.
CARDEAL TOLENTINO – Está preocupado com este momento do mundo? Vivemos esta guerra na Europa com sofrimento terrível, devastador, depois de dois anos de pandemia. Sentimos que entramos num espécie de túnel de desesperança...
JOSÉ MOURINHO – Sua Santidade o Papa Francisco, diz que a guerra “é um falhanço da humanidade, um falhanço dos políticos”. É exatamente isso que eu penso. Eu poria até um falhanço da humanidade antes de dizer que um falhanço ao nível político, porque os políticos são humanos. São uma expansão da humanidade. Eu acho que um falhanço brutal. São os princípios que se perderam ou que não se desenvolveram. Foi a evolução, foi a evolução do pensamento humano na direção errada. Aquilo que é fundamental, aquilo que é realmente fundamental. É uma coisa difícil de explicar. E é um falhanço a todos os níveis da humanidade. É um falhanço nosso.
CARDEAL TOLENTINO – Mas como disse o Papa Francisco, nós estamos todos no mesmo barco e por isso a saída desta situação tem de ser de facto uma humanidade mais solidária, capaz de criar formas de fraternidade, de inclusão, de interajuda, que verdadeiramente nos permitam construir um futuro novo porque se não, é a lógica do mundo velho que triunfa, a lógica da guerra, que infelizmente acompanha a história da humanidade há tantos séculos. O Papa Francisco é uma figura inspiradora para si?
JOSÉ MOURINHO – É uma figura inspiradora para mim porque eu consigo olhar para ele, e, obviamente, sem nunca ter tido a honra de o conhecer, mas ouço-o e não me canso de ouvir. Ouço-o e revejo-me na sua simplicidade, vejo o Angelus dominical pela televisão, e penso que se ele estivesse na minha igreja em Setúbal, eu ouviria de igual modo. Esse homem não é só o Papa: é um padre, como se fosse o de uma qualquer pequena paróquia do nosso pequeno Portugal. Vejo nele aquela simplicidade e acho que é capaz inclusive de criar empatias com pessoas com fé completamente diferente da nossa.
CARDEAL TOLENTINO – Só uma última consideração sobre a definição do jogo. O jogo é uma experiência humana, organizada por determinadas regras. E essas regras são regras técnicas, lúdicas, têm a ver com as modalidades desportivas, mas são também regras éticas. E, de facto, a ética é central no desporto e, saindo do desporto, enquanto paradigma das relações humanas, para a vida do mundo. Qual a importância, na sua opinião, José Mourinho, da ética destas regras, do conhecimento do outro?
JOSÉ MOURINHO – Acho que é de uma beleza enorme e de uma contribuição enorme para as nossas gerações. O trabalho que se faz ao nível do jogo antes dele ser desporto profissionalizando. Quando os jovens, ainda que algumas vezes não muito talentosos, ainda que algumas vezes visivelmente, de um modo objetivo, se possa dizer não chegará ao alto rendimento, mas a relações do jogo com os mias jovens é uma coisa com contributo absolutamente fantástico. Creio que é tudo uma questão educacional. E nas escolas, nas idades mais baixas, e no desporto de formação, isto aqui tem que ser o eixo central do desenvolvimento porque as crianças que um dia não vão ser adeptos do desporto. Essas crianças que não vão estar em campo, vão estar fora dele. E está tudo em ligação. A criança que no futebol cresce num vestiário com amigos, com quem se cria laços profundos no desporto e no jogo, cresce com outras raças, outras religiões. Quando se torna adulto, esta base ficou. Um jovem italiano que cresceu com um africano que chegou à Itália refugiado de uma destas horríveis situações que nós temos pelo mundo, que cresceu com ele, um dia, na bancada, vai ser racista? Não vai. A escola e o desporto de formação têm um papel muito importante.
· No final do diálogo, o cardeal Tolentino mostrou a José Mourinho um Cancioneiro do séc. XV-XVIII, que recolhe as “cantigas” medievais (Vat. Lat. 4803), mais de 1200 poemas em língua galego-portuguesa. “É uma emoção muito grande – disse o bibliotecário apostólico do Vaticano – poder reconhecer neste livro de há 500 anos, algumas palavras que ainda hoje, em português, continuam a ser fundamentais para nós.
Fonte: Jornal impresso: L´Osservatore Romano – pg. 6 e 7 – terça-feira 12 de abril de 2022, número 15,
Nenhum comentário:
Postar um comentário