domingo, 28 de janeiro de 2024

500 anos sem Camões (parte 1)

 António Carlos Cortez*

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2024 é o ano em que celebramos, para além dos 500 anos do nascimento de Camões, o fim de 50 anos de fascismo em Portugal. Luís de Camões deveria ser devidamente evocado como uma voz que jamais se deixou domesticar, por muito que os sucessivos regimes - da Monarquia agonizante oitocentista ao republicanismo; da ditadura de Salazar à democracia saída de Abril - se tenham servido do autor de Os Lusíadas para exaltar as suas políticas e ideologias.

Falou-se de tudo a pretexto de Camões: da gesta dos Descobrimentos, dos amores por infantas, de prisões e de exílios, de tenças e de sentenças, de amores por Dinamene, da miséria suportada à custa dum escravo, Jau, esmolando em nome do poeta-mártir nessa Ásia madrasta. Falou-se de uma gruta, de uma ilha, de uma leitura ocorrida em Sintra, perante um rei. Construiu-se de Camões a imagem do ideólogo da “fé e do império”. Fez-se dele o símbolo da resistência entre 1580 e 1640. E de novo Camões, erguido, no quadro mental do Romantismo, a pai da pátria, em 1880. Falou-se dele, já em tempos recentes, como ocidental branco, europeu e católico aberto à experiência do Outro, em jeito de poeta da alteridade, um Camões mais cool requentadamente servido nos pratos indigestos ora dum neo-lusitanismo hipócrita, ora dum europeísmo cínico. Mas, que se faz pela sua poesia? Pelo seu teatro? De que modo Camões é, de facto, hoje um poeta lido por portugueses já nascidos no século XXI, filhos do TikTok e do WhatsApp? Que lhes diz Camões? Salvo as iniciativas isoladas deste ou daquele centro de investigação, desta ou daquela companhia de teatro, deste ou daquele poeta, ou romancista, celebramos 500 anos - mas sem Camões.

Em 2024 multiplicar-se-ão os discursos sobre Portugal, que não exactamente sobre a obra do poeta. O nosso país como arauto de uma fraternidade e de um ecumenismo ímpares; discursos sobre Camões como embaixador do “ser português” que, em 2024, servirá aos políticos para fazerem o auto-elogio, mascarado de agradecimento pátrio, das políticas de integração num país onde nepaleses, indianos, paquistaneses, ucranianos, mas também portugueses, brasileiros, russos, vivem aos magotes, têm trabalhos precários e, mercê das vidas esmagadas, nunca encontrarão poesia alguma no seu quotidiano. O facto é este: Portugal, já em tempo de regresso à Europa, depois do trauma de África e do enclausuramento fascista num rectângulo medieval até 1974; Portugal, em 2024, como em 1986; como em 1933 ou em 1910 - Portugal continua a desprezar as artes e, muito em especial, Camões. 
Lê-lo, compreendê-lo, admirá-lo como autor maior do Quinhentismo europeu e um dos que mais profundamente pensaram sobre a condição humana, essa é, para mim, a verdadeira homenagem que lhe devemos. E este é o nó górdio do nosso intricado problema mental: não lemos Camões num país que se diz de poetas. E, claro, não apreciamos a arte. Disso Camões sabia melhor que ninguém: quem não sabe arte não a aprecia, escreveu, radiografando os poderosos. Nas estrofes 78 a 87 do Canto VII fustiga os que, ingratos, o condenaram “a tamanhas misérias”; vitupera os que, hipócritas, o denegriram (“A troco dos descansos que esperava / Das capelas de louro que me honrassem / Trabalhos nunca usados me inventaram / Com que tão duro estado me deitaram”). Condenação do país em toda a linha, justificadamente. 

Não cantará, nessa nova Proposição, os que procuram a lisonja no seu canto; não cantará os que antepõem o seu interesse ao interesse colectivo; nem cantará “Nenhum que use de seu poder bastante / Para servir a seu desejo feio, / E que, por comprazer ao vulgo errante”- isto é: para agradar à opinião do povo, sempre manipulável - “Se muda em mais figuras que Proteio” (não fará o elogio dos cínicos e dos que mudam de forma, como o deus Proteu, o das mil faces). Tão-pouco exaltará os ambiciosos, os que querem subir “a grandes cargos (…) / Só por poder com torpes exercícios / Usar mais largamente de seus vícios” (84, 3-8). Não eternizará os que exploram “o suor da servil gente” (86, 4), nem os oportunistas e ladrões que “com pouco experto peito” (inexperientes na governação) “Razões aprende[m] e cuida[m] que é prudente, / Para taxar, com mão rapace e escassa, / Os trabalhos alheios que não passa[m].” (86, 6-8).

Um Camões assim lido, com as pausas e a cadência e o tom certos, quem não o ouviria?
Um Camões lúcido e vertical, mas que também assume “em prisões baixas fui um tempo atado”; que sabe que cometeu erros, que houve má-fortuna, que amou (e desamou), vivendo intensamente. Um épico sui generis que na, sua epopeia negra, sabe que já não há heróis, restando-lhe olhar para o passado e a partir desse passado apelar a que saibamos o valor do exemplum.

No ensino, falta-nos Camões. O exemplum. Falta-nos saber o “como diz” dos textos do lírico e do épico. Não o que dizem, mas como dizem esses textos. Saber ler Camões e todos os outros poetas que estão à espera, porque expulsos dos curricula. Ler, com Camões, a poesia de Sá de Miranda e a de Bernardim, sonetos dos barrocos e o verso livre dos neoclássicos; associar Camões ao simbolismo de Pessanha; compreender de que modo Camões ecoa na mitologia dum António Nobre e dum Pascoaes - todos estes autores, como um sem-número de poetas contemporâneos, são desconhecidos dos estudantes. Tudo à espera: poetas, textos, ideias, textos fortes - tanto a que os jovens têm direito e não lhes é dado, como devia ser.

Ler significa, em contexto escolar e universitário (e ler ao longo dos anos), fortalecer o amor à vida em época de fascínio pela morte. Significa até mesmo, lendo Camões, mergulhar nas longas meditações sobre o destino (as dez canções!) e o absurdo; significa fazer o caminho da inter e da transtextualidade: platonismo e neoplatonismo, a arte da pintura no maneirismo, a lição de Horácio: a poesia como pintura. Quer dizer: Camões, como Cesário, poderia ter escrito “Pinto quadros por letras, por sinais” - e isso leva a que, olhando para um seu poema, o leitor tenha de imaginar a cena descrita num vilancete, numa glosa, numa elegia. Poesia de Camões ou o da imagem, o trabalho intelectual guiado pela faculdade da imaginação.

Ler Camões, hoje nas escolas portuguesas, implica admitir que, nestes 500 anos, este não é um autor admirado, ou que suscite a curiosidade da maioria dos alunos. Leccionado no 3º ciclo e no Secundário, o Lírico e o Épico são, normalmente, motivo não de mistério, mas de reacção boçal: “Que seca!”, dizem uns. “Que difícil!”, dizem outros. Entre a aridez e a dificuldade de o trazer ao convívio dos alunos, os professores ora desistem, ora repetem por tentativa-e-erro o ensino da poesia de Camões. Muitos fazem-no da pior maneira: dá-se-lhes uma bateria de poemas (normalmente sonetos) e em turmas de 28, 29, 30 adolescentes, cada aluno apresentará oralmente um soneto ao calhas! Avalia-se (assim se diz) a oralidade e a autonomia do aluno. Mas para quem jamais contactou com um soneto na vida escolar, é esta a melhor forma de ler Camões? Julgo que a classificação de orações a partir das oitavas de Os Lusíadas era, em todo o caso, mais didáctica e pedagógica que esta prática de pôr os alunos a falar (a analisar, dizem) sobre o que não sabem.

Uma das questões prévias que devemos colocar na leccionação da poesia e, sobretudo, da poesia de Camões, prende-se com o facto de a biografia, como lembrava David Mourão-Ferreira, apesar de poder ajudar, não explicar uma obra. E, no caso do nosso poeta, pouco sabemos sobre a sua vida. Onde nasceu? Em que ano, de facto? Se estudos como os de José Maria Rodrigues, de Hernâni Cidade, de Jorge de Sena, de Leodegário de Azevedo Filho, de A. J. da Costa Pimpão, de Aguiar e Silva, de Helder Macedo, de Vasco Graça Moura, Maria Vitalina Leal de Matos; de António Cirurgião, de Américo da Costa Ramalho e de Rita Marnoto, entre tantos outros, esclareceram muito do autor de “Aquela cativa”, mais importantes são pelo que propõem, metodicamente, acerca da linguagem e ideias do autor das Rythmas. 

Houvesse preocupação por se fazerem manuais escolares verdadeiramente apelativos, com textos críticos exigentes, e talvez fosse possível, nas aulas, aprender a comentar a poesia de Camões tendo em conta a produção ensaística. Mas, em toda a linha, salvo excepções, Camões é ainda vítima de novos modos de impressionismo: para as provincianas questões de género, para causticar a sua visão eurocêntrica, colonialista; para enfim, o tresler e pô-lo ao serviço de novas inquisições. Tudo isto sem que se entenda que o passado pede, ao leitor do século XXI, que conheça as categorias mentais, estéticas e éticas dos diversos passados da História.

A poesia é, como arte, o passado feito presente, estoicamente. O trabalho nas aulas deveria estar centrado nisso que Vítor Aguiar e Silva chamava a lógica textocêntrica de toda a lição. Olhar para o trabalho oficinal de Camões ao nível sintáctico. Debruçarmo-nos sobre os engenhosos hipérbatos (“Oh! ocioso e cego pensamento! / Ainda eu imagino em ser contente?” (soneto 91), sobre a polissemia de determinadas palavras (“pena”, “cativa”, “fogo”), compreender a meditação dialéctica da existência, a fina argúcia com que retirou de episódios vividos ou observados, da sabedoria popular ou da sabedoria livresca, determinadas lições, tudo isso - bem lido nas aulas - poderia conquistar novos leitores. O trabalho das imagens, a conceptual arquitectura dos seus versos, lugares onde tensão e contradição do humano são ditos num português que atinge aquela “temperatura” que Ruy Belo dizia ter de haver na verdadeira poesia, isso temos de ser capazes de dar a quem hoje não tem Camões.

Leia-se em voz alta, atentos à prodigiosa imaginação e virtuosismo gramatical, poético, destes versos: “Ah, falso pensamento, que me enganas! / Fazes-me pôr a boca onde não devo, / Com palavras de doudo, e quase insanas! / Como alçar-te tão alto assi me atrevo? / Tais asas, dou-tas eu, ou tu mas dás? / Levas-me tu a mim, ou eu te levo? / Não poderei eu ir onde tu vás? / Porém, pois ir não posso onde tu fores, / Quando fores, não tornes onde estás.”. Não é sublime?
Estou certo de que, bem lido, levando à compreensão o “como diz” de Camões, ele seria nosso, 500 anos depois.


*Professor, poeta e crítico literário

Fonte: https://www.dn.pt/7206960917/500-anos-sem-camoes-parte-1/

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