Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR*
Hoje quero tratar de um tema de longo prazo, de
natureza “estrutural” por assim dizer. Refiro-me ao declínio do
Ocidente, mais especificamente à sua parte principal – o declínio dos
Estados Unidos, a superpotência que até há pouco tempo dominava o
planeta. Esse declínio tem várias dimensões e se mostra inexorável. Não
obstante, os Estados Unidos, seus aliados e satélites resistem a
aceitá-lo, resistem de forma sistemática e feroz. Como nas tragédias
gregas, a resistência ao destino não faz mais do que acelerar a sus
concretização.
Acostumados, há vários séculos, a dar as cartas, a
ditar regras e a impor as suas vontades, os americanos e europeus fazem
de tudo para negar a realidade, mesmo sendo ela objetiva e implacável. A
queda ano após ano do peso relativo dos EUA e cia. em termos
demográficos e econômicos é clara e cristalina. A população dos países
de alta renda corresponde a apenas 15% da população mundial e tende a
continuar caindo. A economia da China já é maior do que a dos Estados
Unidos há algum tempo, em termos de paridade de poder de compra (a forma
mais correta de fazer comparações internacionais).
Na China, os EUA
encontram o seu maior rival, mais ameaçador do que outros rivais com que
se defrontaram em outras épocas. A União Soviética foi um rival
militar, mas não econômico. O Japão foi um rival econômico, mas não
militar. A China é as duas coisas ao mesmo tempo.
Os chineses, durante muitos anos, proclamaram a
esperança de que a sua ascensão poderia ser pacífica. Não sei se
realmente acreditavam nisso – os chineses são muito dissimulados –, mas
proclamavam o tempo todo o mantra da sua “ascensão pacífica”. Essa
esperança se espatifou no período Trump. Ficou evidente que os EUA estão
dispostos a bloquear e prejudicar o desenvolvimento da China, mesmo que
isso possa trazer danos a seus interesses econômicos de curto prazo. A
palavra de ordem é obstruir, se possível sufocar, a expansão econômica e
política da China. Biden manteve essa política, chegando a
aprofundá-la.
Os resultados têm sido pífios. A economia da China
acusou alguma desaceleração, em parte por causa das sanções econômicas
impostas pelos EUA, mas continua crescendo mais que os países do
Ocidente e mais do que a média mundial. Refletindo o seu crescente
poderio econômico, a China cresce politicamente e se mostra presente em
todas as áreas do mundo, inclusive no Hemisfério Ocidental. Os EUA
esperneiam, mas não conseguem deter a onda chinesa.
E cometem erros palmares, que aceleram o seu declínio
econômico e político. O principal deles foi ter iniciado uma outra
grande confrontação – com a Rússia, em torno da Ucrânia. Superestimando
suas forças e capacidades, os americanos se julgaram capazes de
confrontar a China e a Rússia simultaneamente. A Rússia e a China levam a
melhor até agora. Além disso, a hostilidade dos americanos aproximou
russos e chineses como nunca.
Essas confrontações têm levado os EUA a medidas
extremas, entre elas a militarização do dólar e do sistema financeiro
ocidental para punir severamente os países hostis. O ápice dessa
militarização foi o congelamento de cerca de US$ 300 bilhões de reservas
internacionais da Rússia em represália à invasão da Ucrânia em 2022. Um
abalo importante para a Rússia, mas também para o dólar. Sofreu a
confiança na moeda americana e no sistema financeiro ocidental, já
abalada por medidas do mesmo tipo adotadas contra outros países. Os EUA,
ironia da história, mostram-se os piores inimigos do dólar.
O declínio dos EUA tem uma dimensão especificamente
política, que aparece na baixa qualidade dos seus líderes, na
disfuncionalidade do seu sistema político e na descrença de grande parte
da população nas eleições e nas instituições. A ninguém escapa que o
dinheiro é que governa. A democracia converteu-se em plutocracia. Mais
grave: em kakistocracia o governo dos piores. Alguma dúvida? Basta ver
quem foi presidente da maior potência do planeta em tempos recentes:
George W. Bush (eleito não uma, mas duas vezes), Donald Trump (eleito
uma vez, talvez uma segunda em 2024) e Joe Biden. Impressionante
sucessão de mediocridades.
Para completar o quadro adverso, os EUA arcam com o
imenso prejuízo político de apoiar o comportamento criminoso de Israel
na faixa de Gaza. Até satélites matriculados vacilam um pouco em
acompanhar os americanos nessa empreitada funesta e onerosa. Por que os
EUA se mostram dispostos a incorrer nesse custo extraordinário?
Basicamente por causa de outra antiga disfuncionalidade da plutocracia
americana: a força do lobby israelense, que há muito tem levado a
política externa dos EUA a subordinar-se à política de Israel. Agora,
que Israel parte para o vale tudo, os EUA pagam boa parte do preço.
Nunca esteve tão desmoralizado o discurso ocidental de defesa dos
valores e direitos humanos.
Em uma frase: perda de expressão
econômica, demográfica e política dos EUA; China, Rússia e Israel;
lideranças americanas fracas e despreparadas. Tempestade perfeita. Bye,
bye, Uncle Sam. Os EUA têm muitos recursos e a despedida vai ser longa,
mas já começou.
Não se deve descartar que os EUA e seus aliados ainda
consigam reagir a essas tendências e eventos desfavoráveis. Estão sempre
tentando e lançam mão de todos os recursos, inclusive a violência. As
superpotências são mais perigosas, leitor, quando entram em declínio.
Mas é difícil imaginar que a tendência histórica possa ser revertida.
Americanos, aliados e satélites vão continuar esperneando, mas o seu
destino parece estar traçado.
***
Uma versão resumida deste texto foi publicada na revista Carta Capital.
*O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, foi publicada em 2021.
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