Por Daniel Feix
Um dos mais prestigiados críticos de cinema do país, Luiz Zanin Oricchio reflete sobre as mudanças na relação dos espectadores com os filmes e com a arte em geral
Primeiro presidente da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), Luiz Zanin Oricchio é uma referência da atividade no país. Jornalista, ele cursou Filosofia, formou-se em Psicologia e tem pós-graduação em Psicologia Clínica, com viés em Psicanálise. Atua há décadas no jornal O Estado de S.Paulo, tendo lançado livros como Cinema de Novo: um Balanço Crítico da Retomada (2003). No final de 2023, reuniu, em A Arte da Crítica, textos que trazem reflexões sobre esse ofício de pensar a produção artística. Por consequência, são pensamentos sobre a própria produção, na relação que estabelece com o espectador, que hoje, em muitos casos, parece cada vez mais propenso à dispersão. Na entrevista a seguir, ele responde sobre a relação entre os filmes, os críticos e o público e, ao final, dá algumas dicas de produções recentes, brasileiras e estrangeiras, feitas para o cinema ou o streaming.
“Viver no mundo pós-moderno é viver no ruído e no turbilhão de imagens em movimento, do gigantismo do Imax a uma telinha de celular. Tudo é cinema.” Você escreve isso logo nas páginas iniciais de A Arte da Crítica. Tudo é cinema mesmo?
Acaba sendo, não é? Claro que existe a experiência cinematográfica ideal – sala grande, de preferência lotada, às escuras, boa projeção, bom som. É uma experiência coletiva, em que as pessoas, mesmo inconscientemente, interagem. O riso contagia. A emoção se transmite entre as pessoas. É o cinema completo. Temos de lutar para que essa experiência seja preservada. Mas não podemos esquecer que os novos hábitos são de preferência pelas telas menores, domésticas – do streaming na TV de casa às telinhas do smartphone. Não dá para ignorar essa realidade. E, sim, a experiência cinematográfica passa por aí também. De forma diferente, talvez não tão intensa, para um público talvez menos concentrado e mais dispersivo, mas, apesar de tudo, passa por aí. Acho que não há volta atrás.
Disse que parecia pretensioso porque podia dar a impressão de ser uma espécie de manual da crítica de cinema. E é o avesso disso. É, talvez, um antimanual, veículo para inquietações e dúvidas de um crítico já veterano que escolheu pensar sobre esses problemas por escrito. Por outro lado, entendo que a crítica é mesmo uma arte, uma prática, que implica na existência de um certo saber, uma certa bagagem, alguma experiência. Um saber fazer que se aprende ao longo de toda existência e nunca estará completo. Mesmo num momento de desvalorização social, acho a crítica de arte uma modalidade nobre, necessária e muito difícil de ser feita. Eu a incluiria como uma das atividades “impossíveis” de que falava Freud. Ele citava educar, governar, psicanalisar. Acho que criticar uma obra também é uma dessas tarefas impossíveis, sempre incompleta e portanto sempre desafiadora.
A crítica perdeu espaço em meios tradicionais, mas as reflexões sobre os produtos culturais abundam, em canais diversos, compartilhadas via internet. Como você avalia esse movimento recente da construção do pensamento sobre a arte e a cultura?
Um momento muito rico, porém muito instável e dispersivo. À imagem do nosso tempo. Truffaut (cineasta francês) já dizia que toda pessoa tem duas profissões – a sua própria e a de crítico de cinema. Isso antes da internet! Imagine o que ele diria hoje, com a proliferação de blogs, sites, redes sociais, canais de influencers e tudo o mais, tudo isso falando ao mesmo tempo de filmes, séries etc. A nossa era é de confusão em todas as áreas da experiência humana, com milhões de vozes que se erguem em torno de todas as questões, da política à física quântica, e gritam – metaforicamente – para serem ouvidas. A crítica cinematográfica não escapa a esse ambiente caótico, a essa balbúrdia contemporânea do hipercapitalismo, em que cada um é colocado na posição de empresário e publicitário de si mesmo. Talvez não tenha havido época mais avessa à reflexão do que a nossa, com tudo que ela implica de serenidade, trabalho, minúcia. Nesse ambiente distópico, acho que a crítica ainda pode exercer a função iluminista de propor uma reflexão serena, aberta, democrática, profunda e com respeito ao interlocutor. Quantas pessoas vão ouvir essa voz? Essa é a questão.
A nossa era é de confusão em todas as áreas da experiência humana, com milhões de vozes que se erguem em torno de todas as questões, da política à física quântica, e gritam – metaforicamente – para serem ouvidas.
Você defende que a crítica perdeu a “centralidade no ambiente cultural” que teve nas últimas décadas do século 20. A que se deve isso, na sua opinião?
Como disse na resposta anterior, acho que é uma questão histórica, do ambiente cultural em seu todo. Nossa época é imediatista, superficial e muito confiante em respostas simples, mesmo para problemas complexos. Essa época não se coaduna muito com especulações filosóficas, pesquisas históricas muito amplas, reflexões aprofundadas sobre temas cruciais. O grande público não está muito interessado nisso, e os veículos de comunicação perceberam esse desinteresse e passaram a outras prioridades. É uma questão de mercado, ou do que se supõe seja o desejo da maioria dos consumidores.
Se toda crítica é uma autobiografia, como escreveu Oscar Wilde, referenciado por você, o que o atual estado da crítica revela sobre quem escreve as críticas?
Gosto muito da frase do Wilde porque acho que ela contém uma grande verdade. Mas é preciso tomar cuidado com ela. Não defendo que o crítico deva fazer autobiografia ao escrever sobre um filme. Quem quiser escrever sobre si mesmo que o faça numa autobiografia, ou em autoficção, se achar melhor. A sacada de Wilde é que, ao escrevermos sobre uma obra, estamos necessariamente mobilizando o conjunto da nossa experiência pessoal – tudo o que lemos, vimos e ouvimos ao longo da vida, e até mesmo nossas experiências mais íntimas e mesmo inconscientes. Tudo é jogado lá, no contato com a obra, e a crítica, portanto, será sempre uma atividade subjetiva, nesse sentido. Agora, mesmo sabendo disso, o crítico deve tentar estabelecer uma certa distância entre a obra e si mesmo, de modo a não confundir as duas dimensões – a sua, pessoal, e a do artista, expressa na obra. Dito isso, é claro que, se você estudar o conjunto de textos de um crítico, vai ter uma boa ideia de como ele é e como pensa. Está tudo no texto, desde que ele seja um crítico para valer e se coloque nesse texto.
O francês Jean-Michel Frodon, que é citado no livro e esteve em Porto Alegre em 2019 para o seminário justamente intitulado O Estado da Crítica, defende que a crítica de arte tem um estatuto próprio. Não chega a ser um gênero textual, mas tem características que a diferenciam de todos os demais tipos de texto. Você concorda? E, mais do que isso, será que com as novas formas de expressão da crítica (vídeos curtos, posts em redes sociais e mesmo podcasts) isso de algum modo se altera?
A questão é se a escrita se coloca numa prateleira à parte em relação aos outros meios de comunicação. Entendo que sim. Penso que existe algo estruturante no ato da escrita. E também na leitura. Tive uma professora de filosofia, a Marilena Chauí, que dizia: “Se você pensa que conhece muito bem determinado assunto, tente pôr isso por escrito e vai ver que não conhece tão bem assim”. A escrita, à medida que vamos escrevendo, vai propondo problemas – e caminhos – que não conhecíamos a priori. No livro eu conto uma anedota, bem conhecida entre nós, que resume um pouco isso. Dois críticos saem do cinema e um pergunta ao outro: “Gostou do filme?”. O outro responde: “Não sei. Ainda não escrevi sobre ele”. Dito isso, acho que há mesmo um lugar privilegiado para a escrita na arte da crítica. Há quem fale em crítica como gênero literário mesmo. Não sei. Só sei que a escrita envolve também a busca por um estilo, pela “voz” própria de cada um, na qual, depois de muito trabalho, conseguimos por fim expressar nosso ponto de vista. Mas não vejo por que discriminar outras formas de expressão. Todos nós, críticos, mesmo os de origem jornalística, como é meu caso, também falamos sobre filmes. Seja numa reunião informal, num debate, numa mesa-redonda, numa aula, numa palestra. Ou em nosso canal no YouTube, em nossos sites, em vídeos curtos no Instagram. Grandes críticos foram também ótimos oradores sobre filmes, como Paulo Emílio Salles Gomes ou Jean Douchet. Há um programa de rádio francês, Le Masque et la Plume, semanal, com discussão entre críticos dos lançamentos de literatura, cinema e teatro. É transmitido ao vivo, diante de uma plateia em Paris. Faz sucesso desde 1955! Dá para imaginar? Eu mesmo tenho uma participação semanal na TVT (TV dos Trabalhadores), falando sobre os lançamentos de cinema. Quando estou em um festival de cinema, participo de onde me encontro, falando sobre o festival em questão. São outros modos de falar de cinema.
O público médio anda cada vez mais disperso e desatento. É possível que o bombardeio constante de informações tenha contribuído para essa dificuldade de concentração. Não apenas isso, mas a troca contínua de mensagens tornou-se uma obsessão das pessoas. É possível que nosso cérebro não esteja preparado para tanta comunicação, que se torna ruído. De qualquer forma, o isolamento em uma sala de cinema parece ter se tornado algo desconfortável para muitas pessoas. Pegar o celular para ver se tem algum recado pode ser uma forma de aliviar essa ansiedade.
A experiência do cinema mudou. Hoje as pessoas veem mais filmes em casa, distraem-se mais com o celular. Parece que o processo de imersão já não é indispensável em muitos casos. Em contrapartida, cresce o gosto do público pelas narrativas seriadas com suas temporadas extensas e mesmo filmes com mais de três horas de duração. Não é um paradoxo? O que está acontecendo?
A gente se queixa de que os filmes estão cada vez mais longos, mas depois maratona sem qualquer problema uma série com 12 episódios e quatro temporadas. Tudo é relativo e depende da expectativa de cada um. Nos habituamos aos 90-100 minutos das sessões comerciais, como se essa duração fosse natural e obrigatória. Não é. Depende do que a obra tem a dizer e da maneira de dizê-lo. Basta pensar nos filmes quilométricos de Béla Tarr ou Lav Diaz. Ou, para ir um pouco ao passado, de Berlin Alexanderplatz (1980), de Fassbinder, com 15 horas de duração e que na verdade é uma minissérie da TV alemã. Essas experiências vêm se multiplicando no presente. Olivier Assayas fez seu Carlos, o Chacal (2010) em três episódios com total de seis horas eletrizantes. Depois montou uma versão reduzida para o cinema, sem o mesmo efeito dramático. Na Mostra de São Paulo de 2022 vi Externo Notte, de Marco Bellocchio, retorno do diretor ao caso Aldo Moro, com 300 minutos divididos em quatro capítulos. Uma série curta ou um filme longo? Só sei que é apaixonante e não se sente o tempo passar. Martin Scorsese tem feito filmes longos como O Irlandês e Assassinos da Lua das Flores. Oppenheimer, de Christopher Nolan, foi sucesso de bilheteria, apesar de suas três horas e pouco de duração. Apesar ou por isso mesmo? Talvez o público sinta que tema tão complexo e controverso como a criação da bomba atômica e os dilemas morais envolvidos no uso da ciência para fins bélicos pede mais tempo para ser exposto e debatido. Mas é verdade que o público médio anda cada vez mais disperso e desatento. É possível que o bombardeio constante de informações tenha contribuído para essa dificuldade de concentração. Não apenas isso, mas a troca contínua de mensagens tornou-se uma obsessão das pessoas. É possível que nosso cérebro não esteja preparado para tanta comunicação, que se torna ruído. De qualquer forma, o isolamento em uma sala de cinema parece ter se tornado algo desconfortável para muitas pessoas. Pegar o celular para ver se tem algum recado pode ser uma forma de aliviar essa ansiedade.
Em entrevista em GZH publicada há dois anos, o crítico Pedro Butcher afirmou que a tendência para os produtos audiovisuais não hegemônicos, hoje, é ficarem restritos a um nicho. “O capitalismo, no seu estágio atual, tende a acabar com o que é intermediário no âmbito do consumo”, disse, associando esse processo a outras transformações sociais em curso. Será que o futuro será isso mesmo, filmes muito populares e filmes pouquíssimo populares, sem o que costumávamos chamar de “filmes médios”?
Essa busca pelo “filme médio” é uma aspiração antiga do cinema brasileiro. Ouço falar nela desde que comecei a escrever sobre cinema e sinto que está cada vez mais difícil de encontrar. No todo, concordo com o Butcher sobre essa divisão. A busca por um cinema popular de qualidade é um grande desafio a ser enfrentado nos próximos anos. Podemos esperar talvez pelo próximo filme de Walter Salles e Daniela Thomas, Ainda Estou Aqui, e pelo novo Auto da Compadecida, com Matheus Nachtergaele e Selton Mello. Neste ano, uma surpresa foi Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho, e Elis & Tom, dois documentários que se aproximaram dos 100 mil espectadores, o que, para esse gênero, é uma proeza. São exceções. Vamos ocupando frestas no circuito, essa é a verdade.
A experiência da sala de cinema vem sendo desestimulada, inclusive por produtores – alguns deles hoje são as próprias plataformas de streaming. Como você vê a ideia de que a sala de cinema, talvez, poderia servir apenas a certos tipos de filme?
As grandes redes de cinema, como Cinemark e Cinépolis, se alimentam dos blockbusters. Para elas não há risco. Funcionam em perfeita sintonia com as produtoras, embora haja disputas entre salas e plataformas de streaming que não desejam respeitar janelas de exibição. Mas eles, que são grandes, se entendem. O problema são as salas pequenas, cinemas que apostam em programações mais diversificadas e que incluem os chamados “filmes de arte”. Estes trabalham muito pressionados pelo preço dos filmes e um público mais arredio. Enquanto não houver iniciativas mais radicais, como a criação de salas a preços populares, esse setor vai sofrer. E talvez definhar. O processo de elitização dos cinemas já se completou há muito tempo. O desafio agora é manter abertas pelo menos as poucas salas remanescentes com programação mais eclética.
O que você tem visto, entre filmes e cinematografias, que mais chamou sua atenção nos últimos tempos?
Entre os estrangeiros, destaco: 1) Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese. Um mergulho nos fundamentos da nação americana através da análise dos crimes cometidos contra os indígenas Osage, no início do século 20. Mestre Scorsese em plena forma. Brilhante. 2) Folhas de Outono, de Aki Kaurismaki. Na luz de inverno de Helsinki, o encontro melancólico – mas também esperançoso – de dois outsiders. Kaurismaki propõe uma depuração de sentimentos para torná-los mais verdadeiros. Emoção sem chantagem. 3) Pacifiction, de Albert Serra. Benoît Magimel interpreta um ambíguo funcionário francês na Polinésia. O filme adota o ritmo de torpor da decadente presença colonial francesa no Pacífico. Adequação perfeita de forma e conteúdo. Dos brasileiros: 1) Mato Seco em Chamas, o cinema pulsional de Adirley Queirós, mostrando uma Brasília em chamas num trabalho transversal entre ficção e documentário. 2) Capitu e o Capítulo. Julio Bressane, o mestre do cinema brasileiro de invenção, em mais um diálogo com Machado de Assis, cheio de originalidade e beleza. 3) Retratos Fantasmas. Kleber Mendonça Filho fala de sua casa, da sua cidade com seus cinemas perdidos e, assim, fala de todos nós e de nossas cidades igualmente perdidas. Filme estupendo, de muitas camadas, uma delas em diálogo com o cinema fantástico. 4) Elis & Tom – Só Tinha de Ser com Você, de Roberto Oliveira e Jom Tob Azulay, registra os bastidores da gravação de um dos maiores álbuns da música brasileira. Entre linhas, ou melhor, entre notas, fala também de um tempo, de um país e de uma relação com as artes que se modificaram muito nos últimos anos. O filme é uma epifania e conduz tanto ao encantamento quanto a uma dolorosa reflexão histórica, um balanço do que fomos e não somos mais. 5) Marinheiro das Montanhas. Uma comovente viagem, narrada em primeira pessoa, na qual o diretor Karim Aïnouz vai em busca de suas raízes familiares, na Argélia. Além disso, gostei muito das séries nacionais Os Outros (Globoplay) e Cangaço Novo (Prime Vídeo), feitas com competência técnica e olhar atento para nossos impasses sociais. O Faz Nada (Star+) é uma série argentina que achei muito divertida. Dirigida por Mariano Cohn e Gastón Duprat, traz o que os hermanos têm de melhor, roteiro apurado, diálogos irônicos e grande elenco. Da mesma dupla, também achei muito boa a série Meu Querido Zelador (Star+). Seja ao contar a história de um crítico gastronômico arruinado, seja ao entrar na pele de um zelador de prédio astucioso, a dupla lança um olhar irônico e crítico sobre a sociedade argentina e suas contradições.
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/cinema/noticia/2024/01/talvez-nao-tenha-havido-epoca-mais-avessa-a-reflexao-do-que-a-nossa-diz-autor-de-a-arte-da-critica-clr6qcqs10046013yxim61e1e.htmlhttps://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/cinema/noticia/2024/01/talvez-nao-tenha-havido-epoca-mais-avessa-a-reflexao-do-que-a-nossa-diz-autor-de-a-arte-da-critica-clr6qcqs10046013yxim61e1e.html
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