Foto: Museu do Louvre
A Liberdade Guiando o Povo (1830), de Eugène DelacroixO futuro será sempre um tecido delicado entre nossas decisões e o complexo acaso do universo
Entramos em um ano bissexto. Para os otimistas, um dia a mais de oportunidades. Melancólicos lembrarão o não recebimento extra pelo dia 29 de fevereiro. Sobre ambos, a imprecisão matemática da Terra, que completa sua translação ao redor do Sol – 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos. Ajustar o ano civil ao ano solar é um esforço antigo.
Sigo no afã de seduzir você, querida leitora e estimado leitor, a seguir vivendo o novo tempo com boas expectativas. Haverá Jogos Olímpicos em Paris, neste Ano da Graça do Senhor de 2024. Pela terceira vez desde que foram recriados, a capital francesa sediará a disputa. Mascote? Um boneco derivado do “barrete frígio”, carapuça vermelha, símbolo da liberdade e usado pela mulher que representa a República Francesa: Marianne. Importante: os phryges possuem versão paraolímpica, com uma prótese na perna. Críticos, sempre abundantes e ressentidos, já recordam que a maioria dos bonecos terá produção chinesa. Conservadores trouxeram um dado peculiar: a forma remete a um clitóris. Bem, podemos ficar tranquilos: a possível metáfora corporal não será identificada pela maioria dos homens.
O ano de 2024 pode ter outra surpresa na terra do Asterix: está prevista a reabertura da catedral de Notre-Dame, refeita após o dramático incêndio em abril de 2019. Há alguns anos, eu estava em Paris com um grupo de amigos. Decidimos, em uma manhã muito fria, visitar a catedral. Um deles, tendo marcado encontro amoroso, recusou o programa cultural, alegando: “A igreja está aí há 800 anos. Vai ficar mais um tempinho”. Tomado pelo fogo erótico, ele não poderia imaginar que outras chamas consumiriam a residência do Corcunda famoso. Moral da história: sexo pode ser mais fácil do que a ocasião de conhecer patrimônio da humanidade. Bem, finalmente ele poderá voltar a Paris e refletir com a cabeça mais fria.
Lembro quão complexo foi reaprender geografia no fim do século 20. A URSS fragmentou-se em vários países, a Tchecoslováquia e a Iugoslávia fizeram brotar novas capitais. Em 2024, a Indonésia deve inaugurar a sua nova. Jacarta deixa de sediar o governo do arquipélago e brilhará Nusantara na ilha de Bornéu. Os planos de inauguração são para 17 de agosto, dia da independência do país. O Egito também segue um projeto similar de retirar a sede administrativa da superpovoada Cairo, sem data prevista de conclusão das obras.
Agitação política em 2024: eleições municipais. Nossos mais de 5,5 mil municípios escolherão seus representantes para o Executivo e para o Legislativo. Nas cidades, ocorre a política mais orgânica de todas, com proximidade entre candidatos e eleitores. Podemos idealizar, lendo Aristóteles e sua defesa da pólis, como unidade de democracia e realização da felicidade, ou podemos nos divertir com o lado Odorico Paraguaçu, edil ficcional da obra de Dias Gomes. Sua cidade, querida leitora e estimado leitor, é mais Aristóteles ou mais Sucupira? Aliás, quem se lembra bem do fim da novela O Bofe e a estreia da primeira novela colorida no Brasil, O Bem-Amado, em 1973, já teria prováveis condições legais de ser dispensado do comparecimento às urnas, se assim o desejar. Mesmo com mais de 70 anos, votar é sempre uma chance de contribuir para a felicidade da sua urbe. Odorico estará sempre à espreita, aguardando uma chance.
Por mais que anunciemos algumas coisas, existe um conceito filosófico que se chama contingência. Há sempre um princípio de imprevisibilidade nos dias à frente. O futuro será um tecido delicado entre nossas decisões e o complexo acaso do universo. Lutaremos com estratégias, as coisas responderão por vezes em redes de causa-efeito e, em muitas outras ocasiões, em um mosaico de incertezas. No ritmo bizarro do que não é impossível com aquilo que não é necessário, escreveremos (ou seremos base da escrita) de um ano inteiro de fatos e de surpresas. Nossos esforços podem aumentar a chance matemática; jamais estabelecem a causalidade absoluta e exata. O problema aqui não é acreditar em destino ou na Divina Providência. Mesmo que ambos existam, são incognoscíveis para nós.
Um ano-novo é como viajar para longe com um bebê de oito meses de idade. Você leva fraldas extras, remédios comuns, alguns incomuns, telefones de emergência do pediatra, roupas leves e pesadas, bicos, papinhas a mais, leite em pó, chá e tudo aquilo de que o rebento sempre necessita, misturado a coisas que ele possa a vir a precisar e mais as que lhe disseram necessárias. Malas de bebês são enormes, recheadas de medos e de angústias. Eis que, longe de todas as redes protetoras de segurança, saem os dentinhos imprevisíveis. Caos de novo! O ano que começa é um bebê cheio de esperanças, mas tenha certeza disto: será marcado pela imprecisão. Ame a vida à frente, como se ama um bebê fofo e imprevisível. Há razões para a angústia. Escolha os motivos da alegria. Aposte em um ano bom e com muitas ações de transformação. Feliz ano-novo!
* historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros
Fonte: https://www.estadao.com.br/cultura/leandro-karnal/o-conceito-filosofico-de-contingencia-ha-sempre-imprevisibilidade-nos-dias-a-frente/
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